O professor José Pastore, 62 anos, titular da Faculdade de Economia e Administração da USP, Universidade de São Paulo, não é exatamente um convidado especial dos sindicalistas. Autor do livro Encargos Sociais no Brasil e no Exterior e também de Flexibilização dos Mercados de Trabalho e Contratação Coletiva, José Pastore trafega em mão de direção oposta à da quase totalidade de representantes dos trabalhadores e de intelectuais de esquerda. E não poderia ser diferente, porque ele provavelmente é o especialista em legislação trabalhista que mais se opõe à herança deixada pelo governo Getúlio Vargas, período em que o Estado-todo-poderoso dava as cartas e jogava de mão.
Que sindicalista ou intelectual de esquerda gosta de ouvir falar na necessidade de flexibilização das relações trabalhistas? “Para sobreviver e crescer, as empresas precisam usar outras modalidades de trabalho além do emprego em tempo integral e por prazo determinado”– diz o professor Pastore. Esse diagnóstico tem efeito sacrilégico junto ao público que defende a estabilidade das regras trabalhistas nos moldes do Estado Novo.
José Pastore não foge de polêmicas. A mais retumbante envolve o conceito sobre encargos sociais. Ele argumenta que os encargos atingem 102,06% sobre o custo da mão-de-obra no Brasil. Seus opositores dizem que os encargos não chegam a 40%. Quem está certo?
O empreendedor, principalmente o micro e o pequeno, cujo poder de fogo é infinitivamente menor do que o encontrado nas médias e as grandes empresas, certamente não deixará de dar razão ao especialista. Afinal, de uma forma ou de outra, sem a semântica própria de quem geralmente não sente na pele o peso de tributos, os micros e pequenos empreendedores sabem exatamente quanto sai do caixa de suas empresas em forma de custos diretos ou indiretos com cada trabalhador.
A flexibilização das relações trabalhistas, característica dos norte-americanos que conflita com a realidade francesa, por exemplo, é a única saída para que o Brasil reduza as taxas de desemprego e se prepare para a competição global de forma menos traumática que a atual?
José Pastore – A flexibilização é uma necessidade em face da revolução tecnológica, das mudanças nos métodos de produzir e da concorrência globalizada. Para sobreviver e crescer, as empresas precisam usar outras modalidades de trabalho além do emprego em tempo integral e por prazo indeterminado — ou seja, trabalho por projeto, subcontratado, terceirizado etc. Os países onde essas novas modalidades não se acomodam na legislação atual são induzidos a flexibilizar e isso está acontecendo em toda parte, inclusive no Brasil, embora, entre nós, tudo vai muito devagar.
Como o senhor se sente lendo nos jornais que sindicalistas pretensamente progressistas reivindicam a redução da carga horária de trabalho sem a contrapartida de redução dos salários? É possível competir internacionalmente com tal proposta?
Pastore – A redução da jornada pode gerar novos postos de trabalho, mas pode também destruir os atuais. Tudo depende de como é feita. Quando a negociação ocorre no nível das empresas que procuram compensar as despesas do acréscimo de mão-de-obra através de redução de salários, flexibilização das jornadas e trabalho aos sábados e domingos, as perspectivas de geração de emprego são promissoras. Mas quando a negociação é feita setorialmente, tais perspectivas já se reduzem bastante porque é difícil fazer compensações que abranjam todo o setor. Quando a redução é feita por lei ou por constituição, o desastre é certo. A redução vai destruir empregos e acelerar mecanização e automação.
O executivo público Pedro Paulo Martoni Branco, da Fundação Seade, disse recentemente que a maior parte dos ganhos de produtividade, decorrentes de novas tecnologias e novos métodos gerenciais, está sendo incorporada pelas empresas como lucro e que, diante dessa constatação, é possível sim reduzir a carga horária sem reduzir salários. Essa proposta tem sentido?
Pastore – A maior parte dos ganhos de produtividade do setor industrial foi repassada ao povo na forma de redução de preços, que caíram cerca de 25% ao longo do Plano Real. Foi isso que permitiu o enorme aumento do poder aquisitivo das camadas mais pobres.
Por que há tanta discussão em torno do verdadeiro custo da mão-de-obra no Brasil? O senhor defende, com dados, que os encargos atingem 102,06%, enquanto porta-vozes de Sindicatos e acadêmicos asseguram que não chegam a 40%. Eles dizem que não se pode confundir encargo social com rendimento do trabalho. Qual é a melhor explicação para essa polêmica? É questão puramente de semântica?
Pastore – A polêmica sobre o conceito de encargos sociais fica esclarecida quando se examina a natureza das despesas que a lei manda as empresas pagarem. Pela Constituição atual e pela CLT, toda contratação legal implica no pagamento das despesas que constam do gráfico. Muitos rejeitam a utilização do conceito de encargo social para os grupos B e C, preferindo chamar essas despesas de salário indireto. O fato é que os componentes desses grupos e de todos os demais que somam os 102% são impostos por lei. São compulsórios, inegociáveis e têm natureza tributária. Por isso são encargos e não salários.
Considerando-se o conceito defendido pelo senhor e a dura realidade do mercado internacional de mão-de-obra, em que posição estaria o Brasil em termos de custos no setor? Nossos executivos de grandes empresas, especialmente as montadoras de veículos, têm razão quando dizem que o somatório de custos com mão-de-obra no Grande ABC, incluindo-se aí todos os encargos, não nos dá mais vantagem comparativa?
Pastore – Usando a mesma classificação acima, os encargos sociais no Brasil são de 102%. Na Europa, variam entre 14% e 79%. Na Argentina são 70%; no Uruguai, 50%; no Paraguai, 40%; no Japão 11,8%; nos Tigres, 10% (em média); nos Estados Unidos, apenas 9%. Em todos esses países, com exceção do Paraguai, os salários médios são mais altos do que no Brasil.
O Brasil optou na década de 40 por um sistema de altos encargos e baixos salários. Teremos de decidir se vamos ficar com esse sistema por muito mais tempo ou se desejamos pagar mais salários diretos, negociar melhor e aumentar a produtividade. Ou seja: temos de decidir entre um sistema de muita legislação e pouca negociação e outro de muita negociação e pouca legislação.
Pesquisa da Fundação Seade constatou que está cada vez mais difícil para os jovens ingressar no mercado de trabalho. O desemprego de quem tem entre 18 e 24 anos cresceu 21% no ano passado, como consequência da reestruturação do processo produtivo que eliminou cargos que antes funcionavam como porta de entrada dos jovens. Há alternativa para isso?
Pastore – Uma coisa é certa: a flexibilização da legislação trabalhista, sozinha, não cria empregos e muito menos bons empregos, os quais dependem de vários fatores; sobretudo de pesados investimentos nos setores público e privado. O País precisa voltar a crescer na base de 6 a 7% ao ano para criar bons empregos.
O senhor acredita no fim do emprego alardeado pela obra da crítica literária Viviane Forrester, que se tornou best-seller na França ao denunciar a atual inutilidade do trabalho e do trabalhador? A autora escreveu, entre outras coisas, que no mundo atual, das multinacionais, do liberalismo absoluto, da globalização, da mundialização, da virtualidade, o trabalho concebido como o conjunto de emprego mais assalariados é conceito obsoleto, um parasita sem utilidade. O trabalhador seria supérfluo e está condenado a passar da exclusão social à eliminação total. O que acha daquela obra?
Pastore – O mundo está assistindo um encolhimento da categoria emprego e uma expansão das outras modalidades de trabalho. Estados Unidos, Holanda, Inglaterra, Japão, os Tigres Asiáticos, enfim, todos os países que partiram para a flexibilização estão gerando muitas oportunidades de trabalho, dentre as quais emprego, mas não de forma exclusiva.
Os Estados Unidos têm apenas 4,5% de desemprego; Holanda e Inglaterra, menos de 6% – enquanto que o restante da Europa mais rígida tem 12% em média (na Espanha é 22%); o Japão tem 3%; os Tigres têm 2%. A juventude terá mais chance de trabalho na medida em que os investimentos aumentarem, a educação melhorar e a lei flexibilizar.
Acadêmicos como Márcio Pochmann, professor do Instituto de Economia e diretor-executivo do Cesit, da Unicamp, dizem que ao contrário do Brasil, nos países desenvolvidos, por conta de sistema de contratação coletiva, convive-se com a presença de organização sindical no interior de cada empresa, fiscalizando as atitudes dos empregadores e definindo cargos, conteúdo de funções e hierarquia de salários, jornada de trabalho, critérios de demissão e contratação, entre outros. Que países desenvolvidos são estes e qual a realidade que os cerca hoje diante da globalização?
Pastore – Os Sindicatos estão em crise em quase todo mundo. Na Europa a filiação despenca em toda parte. Nos Estados Unidos há apenas 14% da força de trabalho sindicalizada e que negocia coletivamente e mesmo assim a maioria é de servidores públicos. Em contrapartida, em todos os países desenvolvidos crescem as novas formas de participação dos trabalhadores nas atividades das empresas, incluindo-se desde o acompanhamento de informações e planos até o rateio de lucros e resultados. Decresce a participação sindical nesses mecanismos. Os Sindicatos estão buscando um novo caminho. Parece que as atividades de educação e treinamento são muito promissoras. Mas ainda é cedo para saber de que forma os Sindicatos sobreviverão no futuro.
Qual sua posição a respeito da participação nos resultados?
Pastore – A participação nos lucros ou resultados é mecanismo muito útil no terreno da flexibilização, mas precisa ser bem feita, ou seja, atrelada em metas exequíveis e mensuráveis. Quando é concedida na base do cala boca, se transforma em um 14º salário; portanto, mais um encargo social. Infelizmente, isso está acontecendo na maioria das empresas até o momento, embora seja evidente uma reversão gradual dessa tendência em direção a sistema mais compensador para os dois lados.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira