Entrevista Especial

De Lula a Marinho, trajetória
de transformações sindicais

LARA FIDELIS - 05/04/1998

Vinte anos separam Luís Inácio Lula da Silva e Luiz Marinho no comando do Sindicato dos Metalúrgicos do Grande ABC. Nessas duas décadas, reivindicações mudaram e instrumentos de pressão evoluíram sensivelmente, mas o foco dos dois sindicalistas continua o mesmo: a defesa dos direitos do trabalhador.


Se em 1978 fazer greve era praticamente cotidiano no movimento sindical, em 1998 rodadas de negociação compõem o modo mais eficiente de resolver problemas.


Se antes o principal inimigo era a ditadura, hoje o adversário é invisível e atende por nomes complicados para boa parte da massa trabalhadora: globalização, robotização e outros termos comuns à virada de século.


Mas, ao completar 20 anos do chamado Novo Sindicalismo, originado na histórica greve de 12 de maio de 1978 na Saab/Scania, em São Bernardo, o balanço para Lula e Marinho é mais positivo que negativo: “Do ponto de vista econômico é possível que não conquistamos tudo, mas do ponto de vista da cidadania conquistamos tudo que um ser humano precisa — respeito à nossa dignidade” — afirma Lula.


Entre Lula e Marinho não há apenas 20 anos de acontecimentos, dos quais muitos são parte importante da história do Brasil. Há a fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT), legenda criada após a reforma partidária de 1979 e que, 10 anos depois, por pouco não levou Lula ao comando do País nas primeiras eleições diretas para presidente após o regime militar.


Surgiram também três nomes de peso no sindicalismo nacional: Jair Meneguelli, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, e Heguiberto Navarro, o Guiba. Cada um — avaliam Lula e Marinho — governou o sindicato segundo a demanda do momento, porém — ainda segundo ambos — todos com grande fome de negociar, mesmo na década de 1970, quando empresários, governo e trabalhadores não mantinham quase nada do diálogo aberto atualmente. “Somos todos filhos do mesmo útero, só que cada um jogou de acordo com o jogo do adversário” — compara Lula.


Lula, 52 anos, é de uma época em que o sindicalismo era menos organizado, mas lutava com mais paixão. Também enfrentava obstáculos maiores e perigosos como repressão, tortura, prisão. Marinho, 39 anos, entrou na Volkswagen em 1978, no auge das greves que marcaram o surgimento do Novo Sindicalismo, e logo se engajou no movimento. Hoje, protagoniza período de união entre Sindicatos, Poder Público, entidades e comunidade em busca de revitalização da região, através de entidades como Fórum da Cidadania e Câmara Regional. Entretanto, precisa de habilidade e serenidade para comandar base com 117 mil metalúrgicos — no final dos anos 1980 eram 200 mil — ameaçados principalmente pelo fantasma do desemprego.


Antecipando as comemorações dos 20 anos do Novo Sindicalismo, Lula e Marinho receberam LivreMercado para analisar semelhanças, diferenças e evoluções do movimento nesse período. Também falaram de conjuntura econômica, perspectivas para o futuro e, principalmente, contaram histórias, muitas histórias.


Qual o saldo de 20 anos do chamado Novo Sindicalismo, nascido no Grande ABC, mais precisamente na Scania? Temos mais motivos para comemorar as conquistas ou para lastimar eventuais perdas? O que era a relação Capital versus Trabalho no final da década de 1970 e o que é hoje?


Lula – Os acontecimentos de 1978 resultaram em dados positivos não apenas para os metalúrgicos do Grande ABC, mas para a democracia brasileira, para a sociedade brasileira. Foi a partir do momento em que os trabalhadores resolveram entrar em greve que conseguimos consolidar o processo de democracia em outras categorias e na sociedade como um todo. Nesse aspecto, o movimento de 1978 foi extremamente importante. Não teríamos conseguido alcançar o processo democrático não fosse a mobilização dos trabalhadores que começou no Grande ABC e se alastrou pelo Brasil.


A relação capital-trabalho na década de 1970 era mais conflitiva. O antagonismo aparecia com maior visibilidade. Era tudo muito estranho. Escudados pelo Regime Militar, empresários não queriam conversar com trabalhadores. Em muitas fábricas, não havia facilidade para fazer negócio. Muitas vezes queria negociar e tinha de recorrer ao Ministério do Trabalho. As empresas não queriam conversar. A Lei de Greve era muito invocada, a Lei de Imprensa era muito invocada, a Lei de Segurança Nacional era muito invocada. Vivíamos num regime extremamente autoritário em que valia efetivamente a força do Exército, da Marinha, da Aeronáutica. Não valia a força da democracia, da classe operária.


A relação capital-trabalho não estava civilizada como hoje. Era muito difícil. Vou dar apenas um exemplo: em 1980, quando entramos em greve, o único empresário que resolveu negociar foi o Salvador Arena, da Termomecânica. Pelo fato de ter negociado — dando exatamente os 12% que a gente reivindicava –, ele me telefonou dizendo que o Golbery (do Couto e Silva, na época chefe da Casa Militar) tinha estabelecido um processo de perseguição, de pressão em cima da empresa dele. Foi o único empresário que negociou na greve de 1980. Ficamos 41 dias parados. Voltamos a trabalhar sem nada.


Acho que uma das conquistas daquele movimento foi o amadurecimento político dos trabalhadores e das pessoas. Aprenderam que negociar não é bicho-de-sete-cabeças: é algo necessário e de gente que tem consciência democrática. O que conquistamos com isso? Do ponto de vista econômico, é possível que não conquistamos tudo que deveríamos. Mas do ponto de vista da cidadania, conquistamos tudo que um ser humano precisaria: respeito à nossa dignidade. Passamos a nos gostar, a nos respeitar, a nos admirar enquanto conjunto de trabalhadores. Acho que isso vale mais do que 100% de aumento.


Marinho – Temos saldos positivos a comemorar, principalmente depois de meados dos anos 1980, quando transitamos para a democracia. O saldo principal desse período foi conquistar um processo democrático. Num segundo momento foi avançar com a democracia no chão da fábrica, porque também havia relação de ditadura. Isso que o Lula falou de os empresários chantagearem, ameaçarem, era consequência da Lei de Segurança Nacional, da Lei de Greve, da Lei de Imprensa. Isso se refletia na ditadura da chefia do chão da fábrica. O trabalhador precisava pedir autorização ao chefe para ir ao banheiro. E com controle do tempo. Nem pensar de expressar discordância sobre método e processo de trabalho. Era meramente cumprir ordens, a lei do chicote, a lei da chibata.


Quando se conquista a democracia no institucional e na relação capital-trabalho, constrói-se uma relação como a de hoje. Antigamente era preciso fazer greve para iniciar uma negociação. Hoje há alguns canais de diálogo, principalmente a partir da conquista das comissões de fábrica, dos delegados sindicais. Há negociação cotidiana no chão da fábrica, no dia-a-dia, para evitar que o acúmulo de problemas acabe gerando conflitos na relação capital-trabalho.


Acima de tudo, também tem a conquista do grau de consciência dos trabalhadores. É esse, na verdade, o maior patrimônio desse período. Muitas vezes a Imprensa pergunta o que aconteceu de diferente de lá para agora: “Agora há menos greve, vocês conversam mais, o sindicato está mais moderno, é amadurecimento, é influência pessoal sua, como é?”. Costumo dizer que o sindicato passou por processo de evolução extraordinariamente grande. Não tenho o que falar antes do aparecimento do Lula porque não conheci os dirigentes. Mas, a partir do Lula, houve processo de evolução, passando por Meneguelli, Vicentinho, Guiba e chegando a mim, cada um cumprindo papel importante nessas etapas. Costumo dizer que o Lula e o Meneguelli não tinham com quem negociar. Não havia efetivamente canais de negociação. Então, o sindicato precisava trabalhar para romper amarras com a relação de ditadura.


Lula – Vou dar alguns dados importantes para compreender essa evolução. Outro dia perguntaram ao Pelé, se voltasse a jogar bola hoje, seria o extraordinário jogador da década de 1970. Ele falou: “Eu acho que não, porque o preparo físico já não permite tanta facilidade de mexer com a bola”. Com o movimento sindical é preciso avaliar cada luta, no contexto em que se deu. Em 1980, estávamos cassados e a Volkswagen tentou criar uma comissão de fábrica para destruir a representatividade da diretoria do Sindicato. Tivemos que passar um ano indo na porta da Volkswagen, desrespeitar os acordos que a empresa fazia com a comissão de fábrica. O Marinho, na época, era companheiro de fábrica, era peão de fábrica. A gente tinha de ir todo dia na porta da fábrica e dizer que a empresa fez acordo que não valia nada com a comissão de fábrica. Hoje a Volkswagen mantém relação extraordinária com o sindicato.


O Antônio Ermírio de Moraes de 1980, só pra se ter idéia, também era assim. Em 1980 houve greve na petroquímica dele, em São Miguel Paulista, e eu e o Suplicy (Eduardo Suplicy, hoje senador) tentamos uma reunião. Ele falou o seguinte: “Não tem conversa, não tem comissão de fábrica aqui porque não vou permitir que trabalhador mande na minha fábrica”. Da mesma forma, em 1980, surgiu a idéia do voluntariado. Quando a Volkswagen tentou mandar embora 11 mil, 12 mil, estávamos estudando uma coisa chamada critério de dispensa. Era uma metodologia utilizada na Suécia, onde não falavam em estabilidade de emprego; era critério de dispensa. Quando se vai mandar embora um conjunto de trabalhadores por motivos econômicos, manda-se os que vão sofrer menos com a dispensa: quem tem casa própria, o mais jovem de firma, solteiro, aposentado. Estávamos discutindo isso no sindicato e, de repente, surgiu esse negócio da Volkswagen. Procuramos o Jacy Mendonça (executivo de RH da Volks) e dissemos: “Ao invés de mandar embora 11 mil, por que não estabelece o voluntariado?”.


Era um período em que não se tinha 15% do diálogo de hoje. Muitas vezes, tinha-se diálogo, mas ao negociar era uma sessão de mentiras e ameaças. Lembro de dezenas de encontros que fazíamos no Hotel Binder em que os empresários diziam que o Exército ia invadir, que o Golbery ia intervir. Não era como hoje, em que a comissão de fábrica senta lá e faz uma reunião, uma negociação. Houve evolução. Evoluíram os trabalhadores, evoluíram os empresários e evoluiu a democracia, porque os empresários não têm a salvaguarda das Forças Armadas. Ia à Volkswagen em 1980 e tinha Coronel Rudge, Tenente Simões. Ia na Ford e era major não-sei-das-quantas. Ia na Mercedes-Benz e também major-não-sei-das-quantas. Hoje, se tiver essas pessoas, pelo menos não aparecem. Então mudou, para melhor.


Que desafio é mais complicado: enfrentar os militares durante a reorganização do movimento sindical no final dos anos 1970 ou enfrentar a atual batalha da globalização?


Lula – O período da repressão militar foi mais difícil porque já tínhamos dificuldade de enfrentar os empresários. Enfrentar os empresários e ainda aguentar o aparato militar era muito complicado. Mas foi exatamente nesse período que surgiram figuras como Marinho, Meneguelli, Vicentinho e tantos outros. Porque, diferente de hoje, quando o Marinho vai na porta da Volkswagen e fala: “Gente, duas horas da tarde todo mundo aqui na Via Anchieta que vamos fazer uma caminhada”, ou quando manda o diretor dele chegar na Ford e colocar cinco mil jornais em cima da linha de montagem e o jornalzinho vai andando para a peãozada pegar, em 1980 ele mesmo, para levar uma Tribuna Metalúrgica (jornal editado pelo sindicato) para dentro da Volkswagen, precisava amarrar na barriga e colocar a camisa por cima ou amarrar na canela para o segurança não ver. Antes, alguém entrar na empresa com jornal do sindicato era demissão na hora, não tinha conversa. A evolução é extraordinária. Essa evolução permitiu o surgimento da CUT e do PT.


Quais as principais diferenças entre as lideranças sindicais de hoje em relação ao surgimento do chamado novo movimento sindical, no final dos anos 1970, levando-se em conta o aspecto conceitual das relações Capital versus Trabalho? Quais as semelhanças e diferenças entre Lula, Marinho, Meneguelli, Vicentinho e Guiba?


Lula – Não é possível fazer essa comparação. Hoje a Imprensa tenta mostrar que um era mais negociador, outro era mais grevista. Nunca existiu isso. Na verdade, todos sempre fomos famintos para negociar. A situação política é que era diferente. Negociar depende das partes. Em 1978, fizemos acordo com a Scania e propus o fim da greve. Todo mundo foi trabalhar e fomos para a Delegacia Regional do Trabalho assinar o acordo. Chegamos lá e estavam Ford, Mercedes e Volkswagen. Deram uma dura no representante da Scania e o acordo foi rompido. Conclusão: os trabalhadores pensaram que os traímos, que não tínhamos feito acordo coisa nenhuma. Tudo porque a Anfavea pressionou a Scania para não negociar sozinha. Voltamos com cara de tacho. Montaram esquema de segurança violento na Scania, não tínhamos mais acesso à peãozada. Só conseguimos recuperar 15 dias depois por causa da greve da Ford. O sindicalismo naquele instante era assim. Era menos organização e mais paixão. Tinha companheiro que queria fazer guerra.


A categoria teria menos paixão hoje?


Lula – Tem mais consciência política, está mais madura. Cada peão tem no mínimo 50 greves nas costas. Se for ver, essa peãozada já trocou de emprego umas 10 vezes nos últimos 20 anos. Todo mundo tem experiência sindical. Então, o pessoal não precisa mais fazer grandes discursos. Há clareza do que pode acontecer numa greve, se o momento é bom ou não. Acho que no fundo todos nós, Meneguelli, eu, Guiba, Vicentinho, temos muita coisa em comum com o Marinho, assim como o Marinho tem muita coisa em comum com todos nós. Acho que somos comida do mesmo prato, da mesma panela, filhos do mesmo útero. Cada um jogou de acordo com o jogo dos adversários.


Vivi a ditadura militar; o Marinho vive a globalização que o coloca numa situação muito mais complicada. É outro tipo de ditadura. Naquele tempo brigava e sabia que o comando do Exército era ali atrás do Ibirapuera, da Assembléia Legislativa. Hoje, o Marinho briga com inimigos invisíveis. Às vezes, as decisões da política econômica que vêm para a Volkswagen não são da Volkswagen. Os inimigos são às vezes até mais fortes, usam armas diferentes e utilizam a robotização como instrumento de pressão. E aí é preciso mais habilidade, mais aprendizado. A categoria tem de evoluir. É esse o papel que o Marinho joga hoje.


Qual a sensação de dirigir realidades tão diferentes? Com Lula, havia a greve como força de negociação. Com Marinho, há permanente ameaça de cortes de trabalhadores, que inibe paralisações. Como conviver com realidades tão opostas?


Marinho – O movimento sindical não são os metalúrgicos do Grande ABC, o Marinho, o Lula, o Meneguelli, quem quer que seja. O movimento sindical no mundo trabalha com a demanda atual. Se o Lula lá atrás tentasse fazer da forma que tentamos fazer agora, certamente não teria resultados. Da mesma forma, se fizermos agora como fazíamos nos anos 1970, nos anos 1980, também não daria certo. O movimento sindical coloca hoje na agenda negociar novos produtos. Por quê? Mais moderno hoje? Menos moderno lá atrás? Nada disso. É que lá atrás não estava colocada essa demanda. Era uma época que tinha emprego. O cidadão saía da Volkswagen e entrava na Ford, na Scania, nas autopeças e vice-versa. Hoje, por conta da globalização, por conta de não se saber quem é o inimigo, o adversário, é diferente.


Talvez não valha a comparação com o período da ditadura militar porque com a ditadura é prisão, é morte, é tortura. Muita gente acha que é forçar a barra dizer que agora é pior do que na época da ditadura. Mas o pós-ditadura certamente é o período mais complicado do movimento sindical, por causa da alta do desemprego sob os efeitos da modernização, de novas tecnologias, das novas organizações de trabalho, da transferência de empregos para outros países através de produtos importados. É evidente que o sindicalista precisa compreender um pouco de tudo isso para poder fazer boa negociação. É muito complicado. Muitas coisas no movimento sindical não têm respostas. Como muitas vezes não tinham lá atrás.


Mas digo que a diferença é essa: os Sindicatos trabalham com demandas momentâneas. Lá atrás a demanda era romper com a ditadura, era conquistar o direito à negociação, à expressão do chão da fábrica, o direito de entrar com o jornal na fábrica, criar um canal de negociação cotidiano, as comissões de fábrica ou algo parecido. Até a gestão do Meneguelli, o dirigente sindical ficava preso no seu posto de trabalho na fábrica. Se saísse perdia salário ou era demitido por justa causa. Havia muitas demissões por justa causa. Há garantia no emprego ao dirigente, mas tem demissão por justa causa, por faltas graves. Até hoje é assim.


Lula – É importante lembrar que não é uma evolução de todo movimento sindical brasileiro; é uma evolução deste sindicato como ponta de lança, e de outros. Quem for ao Sindicato dos Metalúrgicos de Betim vai perceber que na relação com a Fiat eles estão como éramos naquele tempo. Hoje, não podem nem aproximar o carro de som na porta da empresa, que colocou cano de ferro para não deixar o ônibus encostar. Nem todos os sindicatos conquistaram o que os metalúrgicos daqui alcançaram nesse período.


Resumindo e voltando à questão do Pelé: tenho dúvidas se o Marinho conseguiria ser o Lula de 1978 e muito mais dúvida ainda se eu conseguiria ser o Marinho de 1998. São momentos tão distintos. Daqui 20 anos poderá ter outro companheiro aqui no sindicato e o Marinho estar sentado ao lado falando a mesma coisa que estamos conversando agora. Naquele tempo, por exemplo, quando a Volkswagen ameaçava mandar 10 trabalhadores embora, eles já queriam fazer greve, greve geral. Era greve por tempo indeterminado. Hoje não: eles sabem que em função das circunstâncias, da evolução tecnológica, as empresas mandam embora e muitas vezes se fica de mãos atadas, não se tem o que fazer.


A valorização da negociação e consequente redução das greves não pode ser encarada por muitos como desmobilização, como falta de vontade de lutar ou mesmo acomodação por medo dos trabalhadores de perder o emprego?


Lula – Li entrevista do Marinho no jornal O Estado de São Paulo em que a manchete era como se ele dissesse que não é necessário fazer tanta greve. De pronto, concordo com essa tese, porque greve não se faz para provar quem é mais combativo. Greve é instrumento utilizado em momentos excepcionais. E tem de se usar no momento adequado porque muitas vezes não dá resultado positivo. Deve ser o último instrumento, não o primeiro. Mas, lamentavelmente, ainda tem dirigentes sindicais no Brasil que vêem na greve um fim em si mesmo.


Marinho – O essencial é estar preparado para a greve, ter organização para realizá-la. Por exemplo: em 1996, dirigentes das autopeças falavam que não iam negociar com o sindicato. Alguns empresários insinuaram que, por conta do desemprego, não tínhamos condições de fazer greve. Numa conjuntura como essa e com reposição da inflação baixa, achamos que tínhamos de pensar numa forma diferente de organizar o movimento, demonstrar que tínhamos condições de realizar greve, elegermos as empresas que iríamos parar. Paramos um dia, retomamos o trabalho e falamos: “Se não negociar em uma semana, vamos parar por tempo indeterminado”.


Com isso, mostramos aos empresários que, se quisermos, paramos. Mas não queremos. Queremos negociar. Aí surgiu a negociação. Foi greve inteligente. Se não fizéssemos isso, no mínimo teríamos uma semana de greve até maturar a negociação. Seria uma semana de horas não trabalhadas que os trabalhadores perderiam no orçamento daquele mês. Hoje, há evolução principalmente através do processo de organização, que é fruto das greves de 1978, 1979, 1980. Não é negar aquelas greves. Muito pelo contrário: aquelas greves são patrimônio, são importantes.


Com a experiência acumulada ao longo do tempo, é preciso testar novos métodos de organização, novas formas de mobilização. O recente enfrentamento com a Volkswagen foi grande, mas realizamos um dia de greve que chamamos de manifestação. A Volkswagen ia demitir como consequência de uma política que está gerando problemas na economia. Então, o movimento é contra a Volkswagen e de pressão ao governo. Queremos discutir com o governo o problema da economia, da política industrial. Questões que, me parecem, lá pelos anos 1970 não estavam colocadas nessa discussão geral. A discussão geral principal era o enfrentamento com a ditadura.


Lula – Deixa dar um exemplo. Sempre fomos contra piquetes. É interessante essa cultura nossa. Nos melhores momentos das greves, sempre dizia: “Se vocês querem parar e acham que a gente deve ir na porta da fábrica para ficar apanhando da polícia pra vocês não entrarem, então vocês são homens ou sacos de batata?” Decidiu parar? Fica em casa. Mas aí tivemos que fazer o primeiro piquete, em 1979, na porta da Resil. Não deixávamos ninguém entrar. A empresa tinha feito proposta razoável e a gente não aceitou porque a massa não quis. Ficamos um monte de dias sem negociar, e aquela proposta que a gente tinha recusado já era extraordinária e acabou ficando boa. Quando a empresa chamou para negociar, ficou todo mundo cercando a empresa. Prá negociar, tinha de entrar o dono. Então liberamos o portão para o dono da empresa entrar. Para pagar o salário, o vale, precisavam que liberássemos os funcionários para fazer os holerites. Liberamos os funcionários para fazer os holerites. Conclusão: o acordo que tínhamos recusado 14 dias antes foi motivo de festa aqui no sindicato até as quatro horas da manhã. Os mesmos trabalhadores que recusaram o acordo vieram aqui no sindicato e fizeram uma festa em que gastaram o aumento em cerveja.


Muitas pequenas indústrias de autopeças desapareceram no Grande ABC nesse período de 20 anos, por motivos os mais diversos. O sindicato também teria participado desse processo, ao estender a esse segmento as reivindicações e conquistas alcançadas junto às grandes empresas, de condições extremamente diferentes?


Lula – Vou dar uma visão possivelmente antiga do processo. Na década de 1980, a gente não discutia muito essa coisa de terceira revolução industrial, revolução tecnológica. Não tinha esse discurso de que as empresas vão embora do Grande ABC por causa do sindicato. Isso é tudo coisa da globalização, não é coisa nossa. Nunca tínhamos ouvido ou lido nos jornais que tal empresinha de parafuso foi embora do Grande ABC porque o sindicato faz muita greve. Isso é coisa recente, da década de 1990.
Acho até que da gestão Guiba ou Vicentinho para cá. Um fato concreto é que de vez em quando um companheiro fala que tal fábrica foi embora. Foi embora porque produz peça para a Fiat e vai para Betim. Por que tem de ficar em São Bernardo se produz para a Fiat? E assim vale para outros setores.


Acho que as empresas não vão embora por causa do salário dos trabalhadores nem por causa da combatividade. Para empresários civilizados, ter na sua base territorial um sindicato do nível do de São Bernardo é sobretudo uma tranquilidade. É sobretudo a certeza de que se vai conversar e de que o resultado dessa conversa será respeitado na mesa de negociação, de que o que a diretoria acordar a categoria confia. Portanto, o empresário que fica dizendo que está procurando outro lugar por causa do sindicato no mínimo é uma pessoa não civilizada, atrasada, antidemocrática. O que eles não têm coragem de dizer é que estão fugindo de São Bernardo porque querem menos impostos, terreno de graça, querem verdadeiras fortunas para gerar 10, 12 empregos em outra cidade. É isso que os move, é a guerra fiscal entre municípios, entre Estados.


Marinho – Uma coisa é conquistar 15% de aumento. Só que as pequenas empresas não pagam os mesmos salários das grandes e o reflexo não é exatamente igual. Criaram uma visão de que o movimento sindical é agressivo e portanto, responsável pela evasão. É uma guerra quase que unicamente ideológica que se criou de combate ao movimento sindical, principalmente o movimento sindical cutista do Grande ABC. A Prefeitura de Santo André, na gestão anterior do Celso Daniel, fez pesquisa com empresas que saíram e a ampla maioria apontou causas como o preço do terreno, a atração de fornecedores da Fiat em Betim e os impostos. Eram essas questões e não os sindicatos. Uma minoria insignificante fez referências ao sindicato como elemento decisivo para sair da região. Isso é bobagem.


Outra questão é o fato de a região ter, assim como a Capital e a Grande São Paulo, salários superiores aos de outros locais do País. Mas é fato também que o custo de vida é maior aqui. Se todo mundo trabalhar com a lógica de que é possível os grandes centros criarem o mesmo patamar de salários das regiões cujos salários são menores, certamente vamos provocar queda no mercado de consumo. E queda de consumo é queda de produtos, de empregos.


Está provado que a debandada do Grande ABC é muito mais devido à infra-estrutura. O Estado não investe na região há quantos anos? Há quantos anos não tem um centavo de verba federal para investimento na região? É praticamente insignificante o retorno dos impostos gerados na região para reinvestimento aqui. Fundo de Garantia, FAT, todos os recursos gerados na região não retornam para o Grande ABC. Estamos pedindo apenas um terço dos recursos gerados aqui. Que voltassem para investimentos. Se tivéssemos isso nos últimos 20 anos, não teríamos uma única favela, a condição precária de saúde, de segurança pública.


Que o Grande ABC precisa contribuir para o desenvolvimento de outras regiões do País é claro, é obrigação, porque o investimento do País foi centralizado aqui, atraído pelo Porto de Santos, pela proximidade com a Capital. Mas é preciso reinvestimento na infra-estrutura, o que, aliás, é um debate que a Câmara Regional está fazendo. É o motivo pelo qual nasceu a Câmara Regional. Por problemas na infra-estrutura, e não por conta do movimento sindical. Aliás, consultorias especializadas ajudaram a criar imagem negativa do Grande ABC para atrair investimentos para outras regiões do País. Essa questão precisamos esclarecer. Os órgãos de comunicação, por determinado período, contribuíram decisivamente para criar essa imagem. De forma equivocada, porque estava jogando contra seu próprio patrimônio.


O sindicalismo contribuiu ou não para o processo de esvaziamento industrial do Grande ABC? Têm razão quem diz que houve muito exagero nas relações Capital versus Trabalho? Os patrões eram cabeças tão duras que mereciam mesmo ser execrados?


Lula – Havia interesses políticos. Por ocasião da Constituição de 1988, quando discutíamos os direitos dos trabalhadores no capítulo das questões sociais, havia da parte dos meios de comunicação do Brasil a idéia de que era absurdo o que queríamos conquistar porque era prejudicial à geração de empregos, as empresas iriam embora. Esse interesse aumentou ainda mais no governo Collor, ou seja, de tentar mostrar que éramos empecilho ao desenvolvimento do País, que as greves atrapalhavam, que as negociações atrapalhavam, que os salários dos metalúrgicos atrapalhavam. Ao invés de ficarem preocupados com os milhões que ganhavam R$ 100, começaram a criticar os poucos que ganhavam R$ 500. Porque no Brasil sempre prevaleceu a maldita mania de querer nivelar por baixo.


É verdade que algumas empresas foram embora, diminuiu a categoria. Mas também é verdade que outros setores surgiram na região. O setor de serviços cresceu muito, o comércio cresceu barbaramente. E por que o comércio cresceu aqui? Porque isso aqui tem renda per capita da Espanha. Vivemos num País de Terceiro Mundo com renda de País de Primeiro Mundo. Ou seja: o Grande ABC tem renda per capita de US$ 12,7 mil. Isso dá um poder de compra extraordinário. Não é à toa que tem Wal-Mart dando bordoada no Carrefour, que dá no Eldorado, que dá no Mappin, que dá não-sei-onde. Daqui a pouco tem mais shopping do que gente para comprar. Isso demonstra que, apesar da queda da oferta de emprego na área metalúrgica, outros setores da economia cresceram e o poder aquisitivo dos trabalhadores se mantém num nível superior à média dos brasileiros.


Marinho – Outro dado é que muitas empresas fecharam ou estão fechando por conta de problemas de política econômica do governo, de política industrial. Isso é fato. O Grande ABC é o terceiro mercado de consumo do País. Se comparar com as cidades de São Paulo, Osasco e Guarulhos, a impressão é de que perderam mais empresas e empregos que a região. Se olhar a participação do Grande ABC no PIB, crescemos, não diminuímos. Há contradição, está certo? Pelo ganho de produtividade, por tudo isso. Mas crescemos. Se pegar dados de anos anteriores, vamos perceber que o Grande ABC cresceu e a Capital diminuiu a participação no PIB do Estado; São Paulo, portanto, perdeu mais.


O grande problema, sem dúvida, é o fechamento de empresas. Ainda tem muitas asfixiadas que, certamente, vão fechar. A partir do governo Collor, especialmente com o aperfeiçoamento do governo FHC, as autopeças e o setor automotivo como um todo tiveram problemas. Tinha alíquotas de importação para carros e autopeças. O governo jogou tudo lá prá baixo. Começou a entrar muito carro e o governo jogou a alíquota do carro pronto para 70%, metade para as montadoras, mas para as autopeças apenas 2%. Protegeu as indústrias que montam carro numa visão equivocada. Falamos que era um equívoco, porque beneficiou somente as montadoras que, com alíquota baixa, começaram a impor processo de asfixia às autopeças. Se a alíquota estava em 32%, tinha que ir reduzindo de forma gradativa até chegar em 9%, 11% ou 15%. Não jogar para 2% e ir aumentando devagar.


Esse processo equivocado destruiu o setor de autopeças no Brasil. Empresas poderosas que teriam sobrevivido sob política industrial correta, casos de Cofap, Metal Leve e outras de porte, com tecnologia e produtos de alta qualidade, não aguentaram. Tiveram de entregar os pontos para o capital internacional. Vários produtores de máquinas no Brasil fecharam fábricas e abriram escritório de representação de máquinas da Alemanha, da Itália. Isso também aconteceu com o segmento têxtil, de brinquedos, de calçados, de alimentação.


Um alto executivo do Grupo Brasmotor disse há algum tempo que montadoras de veículos contaminavam o mercado de trabalho no Grande ABC. Afirmou que os salários e conquistas trabalhistas acabam se espalhando para os demais setores e encareciam a mão-de-obra. O que dizer desse efeito irradiador? Estariam tentando transformar o sindicalismo em bode expiatório?


Marinho – É uma forma de se defender, de não querer aplicar as conquistas. Há muito tempo os acordos são diferentes. Às vezes tinha o acordo global, mas os trabalhadores das montadoras contavam com outras conquistas, seja o 14º salário nos finais de ano ou outros tipos de conquistas. Nunca foi exatamente igual entre trabalhadores de autopeças e das montadoras, por exemplo.


Lula – E quando foi igual foi nivelado por baixo.


Marinho – Isso é forma de justificar a saída de uma unidade da Multibrás. Esse é o fato. Muitas vezes, as pessoas falam uma coisa para justificar uma ação. É o caso da GM, no Rio Grande do Sul. Recebeu não só o terreno, mas a montagem da fábrica e mais alguma coisa.


Lula – Foi estatizada.


Marinho – Como aconteceu com a Mercedes Benz em Juiz de Fora, com a Volkswagen em São José dos Pinhais, com todas as empresas que estão se instalando no Brasil sob uma guerra fiscal absurda, ignorante, imbecil. Porque isso vai gerar grande problema no futuro. E mais: se o dinheiro que o Rio Grande do Sul está gastando para instalar a GM fosse direcionado para desenvolver tecnologia para gerar pequenas empresas, criaria muito mais empregos do que com a GM e fornecedores que vão segui-la.


Lula – Em 1974, a gente não falava em globalização da economia, nem em terceira revolução industrial, não falava em evolução tecnológica. Ou seja, quando tínhamos apenas um enfrentamento capital e trabalho em função da luta econômica, dezenas de vezes tentamos negociar de forma separada, por categoria econômica. Negociar com a indústria automobilística, com a indústria de autopeças, com a indústria de fundição. A gente entendia que tinha diferenças de poder entre empresas. A gente queria fazer essa diferenciação e eles nunca aceitaram. Mandava pauta de reivindicação para o Sindicato das Indústrias de Fundição, eles mandavam para a Fiesp. Mandava para as indústrias automobilísticas, elas mandavam para a Fiesp. Então, juntava tudo.


E por que juntava tudo? Porque a indústria automobilística, que era a ponta de lança no processo de negociação, tinha interesse em ter a indústria de fundição e a indústria de laminação juntas na pauta de reivindicação, para nivelar por baixo. A gente pedia 10 para a indústria automobilística e qual era o argumento deles? “Não podemos dar 10 porque vai quebrar a pequena indústria. Só podemos dar cinco”. E aí davam por baixo. Eles, na verdade, é que sempre conseguiram nivelar por baixo.


Somente a partir de 1978 é que começou um processo de negociar por fábrica, por categoria, porque aí dependia muito da luta específica que os trabalhadores tiveram. Mas as grandes empresas sempre utilizaram as pequenas como escudo para não atender às reivindicações dos trabalhadores. Quem for na maioria dos Sindicatos brasileiros vai ver que ainda tem uma reivindicação: envelope de pagamento. É o fim da picada: estamos na revolução da informática e ainda temos de colocar na pauta de reivindicação holerite para o trabalhador.


Por que o sindicalismo brasileiro, como de resto em boa parte do mundo, não perde a característica de corporativismo e resolve atuar também de forma mais elástica, inclusive com movimentos de pressão para ajudar a resolver problemas que não lhe digam diretamente? Sindicalismo e corporativismo são expressões indissociáveis?


Lula – Vamos ter em conta o seguinte: empresários agem de forma mais corporativa que trabalhadores. A diferença é que o corporativismo dos trabalhadores se apresenta aos olhos da população nas greves, nas caminhadas, nas passeatas. E muitas vezes o corporativismo do empresariado não existe porque é feito na calada da noite, nos jantares em Brasília, na casa do ministro, no almoço com o presidente. Para nós é corporativismo, para eles se chama lobby. Já é uma coisa mais sofisticada.


O corporativismo é sadio. Só não é sadio quando deixa de pensar no País como um todo. E o Sindicato de São Bernardo até nisso tem evoluído. Temos tido consciência de que o papel do Sindicato, embora sem abrir mão da representação específica da sua categoria, é falar um pouco mais com a sociedade. Temos de ter preocupação, por exemplo, em apresentar para a sociedade o que queremos de política industrial, de política tributária, não apenas para nossa região mas para o País. Este sindicato já tem essa preocupação e já a tem apresentado. Aliás, acho que é o próximo passo do movimento sindical brasileiro. É o que chamo de Sindicato-cidadão. Não é mais o sindicato que representa apenas os interesses do trabalhador dentro da fábrica. Representa os interesses do trabalhador-cidadão. Ou seja: a mesma importância que a gente dá a uma assembléia na porta da fábrica para defender o emprego, damos a uma assembléia no bairro para discutir política de saúde, política habitacional, política de transportes e outras políticas que são de interesse dos trabalhadores.


Os metalúrgicos do Grande ABC, que comandam a Central Única dos Trabalhadores, correram riscos de perder a liderança para os bancários. É possível que num futuro não muito distante a CUT venha a ter uma diretoria não predominantemente metalúrgica? O que isso representaria para o futuro dos metalúrgicos?


Marinho – A diretoria não é predominantemente metalúrgica. A direção da CUT é dividida entre várias categorias. A maior parcela da CUT é ligada ao funcionalismo público. Com relação à presidência, é outra história. Não vejo problema da presidência ser ligada a qualquer outra categoria que não sejam os metalúrgicos do ABC. Isso é natural, pode acontecer. Afinal de contas, qualquer entidade que está representada na CUT pode chegar à presidência da CUT. O Vicentinho colocou a idéia de deixar a presidência da CUT para concorrer a deputado federal. Se isso acontecesse hoje, seria mais provável que os bancários assumissem a presidência da CUT. E o próprio Vicentinho, quando colocou a possibilidade de sair, sabia disso.


Lula – Não há nenhuma determinação filosófica de que a CUT tem de estar nas mãos dos metalúrgicos. O que acontece é que o Sindicato de São Bernardo, historicamente, é um Sindicato de ponta e produziu bons dirigentes sindicais. Esses dirigentes sindicais obviamente assumiram a CUT. Mas a CUT pode ser dirigida por qualquer outro companheiro. Basta que tenha representatividade e maioria no congresso da CUT.


Marinho – Inclusive, se o Vicentinho sair e entrar um bancário, seria um bancário com nosso apoio, não seria em guerra conosco. O que não está definido é que, no próximo congresso da CUT, se o Vicentinho eventualmente não continuar, será um bancário. Assim como não está definido que seja um metalúrgico do Grande ABC. Pode ser um bancário, um metalúrgico do Grande ABC, um petroleiro, como pode ser um rural, um professor. Não tem absolutamente nada definido.


Como vocês encaram a afirmativa de que há embutido na planilha das empresas, além do Custo Brasil, também o Custo ABC? Como se encara o fato, anunciado pelos empresários, de que o trabalhador do Grande ABC custa até 60% mais que o de outras regiões industrializadas há menos tempo? Os sindicatos devem estar preparados para derrubar custos, como o que aconteceu no acordo com a Volkswagen, ou a reação é outra e vamos ter mesmo casos como os da Ford, cujos trabalhadores não aceitaram redução direta e indireta de salários? Qual modelo vai vingar?


Marinho – Cometeríamos erro se entrássemos na onda de que é preciso reduzir direitos dos trabalhadores por conta dessa história do Custo ABC. O que precisamos é a lógica que temos trabalhado na Câmara Regional. Precisamos melhorar as condições do Grande ABC, melhorar a infra-estrutura. Por exemplo: o Porto de Santos volta a ser uma boa para o Grande ABC se tiver qualidade, custo, agilidade. Pode ser fator a favor do Grande ABC em relação a outras regiões. Mas é preciso modernizar o Porto, chegar mais rápido. É preciso que o governo invista para terminar a segunda pista da Imigrantes. A malha ferroviária precisa ser melhorada. O Rodoanel precisa atender de forma satisfatória a região, para melhorar as condições de transporte e de trânsito. Precisa resolver os problemas das enchentes.


Isso sim tem sido custo muito maior para o Grande ABC do que as conquistas dos trabalhadores. Precisamos antecipar investimentos na mão-de-obra para que de fato a gente torne o Grande ABC um nível de excelência do País. Através disso, de qualidade melhor, a gente pode compensar as conquistas dos trabalhadores.


O que será do trabalhador do Grande ABC?


Marinho – O que vai ser do trabalhador do Grande ABC e do mundo, melhor dizendo. Não dá para dizer exatamente. Depende do futuro. Se falarmos daqui a 50, 70 anos, talvez devemos pensar no sindicato virtual, de forma diferente. Não sei qual será a relação de trabalho no futuro. Já num futuro próximo, certamente teremos empregos diminuídos em função da tecnologia, mas o Grande ABC continuará sendo pólo industrial importante do País. Junto com isso, as atividades que chegam na área de comércio, de serviços. Penso que temos potencial para geração de empregos nas áreas de lazer e turismo. O Grande ABC tem potencial para gerar empregos sem abrir mão da indústria.


Lula – Sobre a questão do Custo Brasil, fico deprimido. O que há 20 anos era tido como conquista social virou Custo Brasil. O que era chamado de seguridade social virou Custo Brasil. Pergunta para os donos do Wal-Mart, do Eldorado, do Mappin e do Carrefour se querem diminuir o poder aquisitivo dos trabalhadores do Grande ABC. Se diminuir o poder aquisitivo, diminui o comércio e aumenta o desemprego. Não resolve o problema da indústria. A indústria não tem um bando de trabalhadores porque o cara ganha mil por mês; é porque não cabem três trabalhadores, um em cima do outro. A capacidade produtiva está superada em função do mercado. Se reduzir o salário do Marinho de R$ 1,2 mil para R$ 600, a empresa não vai contratar outro, porque não cabe. Entretanto, se diminuir o salário dele, vai diminuir o emprego na loja, na vídeo-locadora, no bar da esquina.


Esse pensamento precisaria mudar na cabeça do empresariado brasileiro e do governo. Aquilo que chamam de Custo Brasil deveriam chamar de renda, que volta imediatamente para eles. Nenhum trabalhador desses está comprando carro importado. Está comprando o que comer. A Via Anchieta foi construída em 1948. Continua aí. A Imigrantes foi inaugurada em 1974. Continua tudo igual. O Marinho falou dos investimentos possíveis se um terço dos impostos ficasse aqui, mas nem precisa tudo isso. Se 10% de tudo produzido na região fosse reinvestido aqui, poderíamos ter muito mais infra-estrutura, muito mais condições de desenvolvimento, inclusive ter um centro de pesquisas, uma universidade forte, uma grande rede hospitalar. Nem isso o Estado investiu aqui.


É muito difícil dizer como será o trabalhador do futuro. Não se sabe nem para a empresa, nem para os metalúrgicos. Mas acho que vai levar muitos anos ainda para essas pessoas não precisarem do metalúrgico, do jornalista. As coisas não vão acabar; vão, obviamente, se modernizar. Entra num jornal moderno, numa gráfica moderna, e vê uma linotipo lá. Vê como o cara trabalha hoje e como trabalhava no passado. O que aconteceu em 30 anos foi uma revolução. Acabou o linotipista, mas o jornal continua saindo e o jornalista é necessário para fazer o jornal. Acho que isso também vai acontecer com os metalúrgicos. Vai diminuir, vai aperfeiçoar. Outro dia entrei na Volkswagen junto com o Marinho. Não tem muito a ver com meu tempo. Acho que cada vez mais as novas gerações estarão profissionalmente mais preparadas, tecnicamente mais qualificadas e aptas a exercer outras funções.


Tenho dúvida se as condições serão melhores. Lembro que, em 1963, com diploma de torneiro mecânico, tinha mais garantia de emprego do que os estudantes que saem da Metodista têm hoje no Brasil inteiro. A não ser o estudante de Medicina, mas o estudante de Jornalismo, de Direito… As pessoas saem com diploma universitário e não têm a certeza de emprego que eu tinha em 1963, quando era torneiro mecânico. Não sei se vai ser melhor para ele enquanto trabalhador. Possivelmente tenha de ganhar muito menos que um torneiro mecânico ganhava 20 anos atrás. Agora, ele é mais qualificado, tecnicamente mais preparado, culturalmente muito mais preparado, mas o mercado de trabalho oferece menos para ele do que oferecia para nós.


Não sei se os metalúrgicos viverão daqui para frente a glória que vivemos na década de 1960. Ser metalúrgico na década de 1960 era ser o bam-bam-bam da vila, o cara que tinha a primeira casa, o primeiro carro, a primeira geladeira. Era a mulher que ia na feira e voltava com o carrinho cheio. Era a casa de mais fartura. Até 1970, trocava de carro todo ano. Hoje acabou. Hoje, apesar do carro estar barato, os caras vendem em 40 e tantos meses. Mas a verdade é que a situação está difícil. As oportunidades estão rareando. Para ter emprego para todo mundo, a gente teria que globalizar os juros. Globaliza o poder econômico, globaliza os interesses das multinacionais. Mas os problemas sociais são estatizados.


O Estado é que tem de cuidar. Globaliza o lucro, mas o trabalho não é globalizado. Porque a GM pode vir para o Brasil e não precisa nem de passaporte. Mas se o Marinho for com a carteira profissional dele para os Estados Unidos, é deportado porque vai encher o saco, não vai arrumar emprego.


Na verdade, a globalização foi pensada para defender interesses dos sete países mais ricos do mundo, que determinam a economia mundial. E sobretudo interesses do lucro, não do trabalho. Acho que haverá de acontecer alguma coisa no próximo século para garantir emprego para os milhões, que serão bilhões, de desempregados nesses próximos anos. A lógica do projeto de desenvolvimento desse final de século não prevê todo mundo no mercado de trabalho. E isso é muito grave. Quem não está no mercado de trabalho não tem política de seguridade social que garanta sobrevivência, não tem sequer a renda mínina do Suplicy. Pergunto: o que esse cidadão vai ser? Esse é o desafio para os próximos governos.


Como vocês observam o Fórum da Cidadania? É uma prova de que o Grande ABC finalmente acordou para questões institucionais?


Lula – Sou entusiasta do Fórum e tenho tentado fazer publicidade dele onde posso. Descobri nas Caravanas da Cidadania, tentando fazer projetos alternativos, que efetivamente a comunidade não participa de nada nas cidades. É inacreditável. Descobri que prefeito não participa de nada, que vereador não participa de nada, que ninguém é chamado a dar palpite sobre a própria cidade. Chegava nas Câmaras de Vereadores e perguntava: “Prefeito, por acaso o senhor já encomendou algum estudo para uma política industrial, uma política de desenvolvimento para a cidade?” Ele respondia: “Ah, eu quero agradecer a presença do Sr. Luís Inácio e muito obrigado”. Aí pegava um vereador: “Vereador, o senhor é presidente da Câmara e alguma vez a Câmara discutiu política de desenvolvimento para a cidade?”. “Eu quero agradecer o Luís Inácio, muito obrigado”.


Quando as pessoas começam a se juntar e a discutir perspectivas de saída para sua própria cidade, começam a se preocupar com emprego coletivamente: é o dono da indústria, é o presidente do sindicato, é a dona-de-casa, é a pessoa da Igreja, da favela, o dono do jornal, quando todos começam a ter a mesma idéia de encontrar saída coletiva para os problemas, obviamente aumenta a possibilidade de a gente acertar. Aumenta, inclusive, com o envolvimento do Poder Público. Os resultados são muito pequenos, mas os avanços que o Fórum dá, que essas discussões que envolvem a comunidade dão, é coisa extraordinária. Mesmo como forma de coletivizar a tomada de decisões, para não ficar apenas na mão do Poder Público.


O desemprego não é um problema do Sindicato de São Bernardo: o desemprego é problema do comércio, da Prefeitura, do governo do Estado, das empresas que produzem o que os trabalhadores vão comprar. A comunidade não está acostumada a participar porque nunca foi chamada.


A política brasileira historicamente é paternalista. Então o povo foi educado a compreender que não tem que se organizar, que não tem que lutar, ou seja, foi educado assim: fica em casa que o Estado lhe dá. Então o Estado começa a fazer cesta básica, tíquete de leite, tíquete refeição, tíquete não-sei-das-quantas. A miséria vai crescendo e ao invés de se discutir a miséria vai-se arrumando penduricalhos para minimizar os efeitos da miséria. É uma relação paternalista entre Estado e sociedade e temos de acabar com isso. Somente quando a sociedade perceber que organizada pode conquistar mais, a gente começa a mudar.


Marinho – O Fórum da Cidadania é importante para organizar várias áreas da sociedade. Pessoas e entidades podem se expressar através do Fórum. É uma entidade que nasceu em 1994 com muita importância para o Grande ABC, como forma de vários segmentos da sociedade terem direito à expressão, inclusive na Câmara Regional, que, para mim, é o principal acontecimento da região. A Câmara Regional conseguiu juntar as várias opiniões da região, seja de empresários, de trabalhadores, de entidades que se organizam no Fórum. O Fórum é uma entidade importante, mas o principal acontecimento da região é a formação da Câmara Regional.


Lula – Também é preciso lembrar que o Brasil é governado da Avenida Paulista. É só pegar a agenda do presidente da República. Em 365 dias do ano, quantas reuniões teve com trabalhadores, com sem-terra, com pequenos produtores rurais, com o movimento popular? Não se encontram cinco no ano todo. Como se pensa de acordo com o chão que os pés pisam, continuamos governando para a mesma minoria que manda no País há muitos anos. É por isso que a pobreza aumenta.


Eles não souberam aproveitar nem o crescimento do poder aquisitivo com o fim do imposto inflacionário. Porque o povo começou a comprar à prestação e esgotou. Logo, logo, o setor de eletrodoméstico, que teve um boom de vendas, vai começar a quebrar, porque ninguém vai comprar rádio todo dia, televisão todo dia, toca-fitas todo dia. Eles não tiveram capacidade de consertar, de rearranjar um projeto de estabilização da economia, e agora estamos aí: pendurados em cima da lâmina. Dependendo do que acontecer nas Bolsas do mundo, quebramos ou não.


Existem duas formas de metropolização. A primeira, da Baixada Santista, sacramentada pela Assembléia Legislativa, que torna a questão garantida do ponto de vista jurídico. A segunda, do Grande ABC, através da Câmara Regional, cuja informalidade não assegura valor jurídico. Qual das duas agrada mais?


Lula – Não conheço o modelo de Santos.


Marinho – Não sei exatamente como funciona o modelo de Santos, mas aqui eles consideram que o Grande ABC participa da Região Metropolitana e, portanto, está ligado à Grande São Paulo. Essa é a diferença. Agora, pode-se ter área metropolitana e não ter participação ativa dos atores. O Grande ABC, apesar de não ser considerado Região Metropolitana, constrói através da Câmara Regional espaço próprio na forma de se organizar e nas facilidades que tem de se organizar.


É preciso pensar na melhor forma de desenvolvimento regional, seja na área da política, da economia, até de uma minipolítica industrial. Regras que venham resolver o problema do conjunto de municípios. É possível pensar numa política regionalizada de saúde, de transportes, de segurança. Se resolver um problema em São Bernardo ou Santo André na área da saúde e não resolver nos outros municípios, certamente os moradores vizinhos vão migrar para aquele bom atendimento de saúde. Não sei qual o nível de participação em Santos. Parece que não tem o nível de participação que conseguimos construir no Grande ABC.


O sindicato sempre tratou de emprego, de empregados, mas o que estamos vivendo hoje nas regiões metropolitanas são situações desesperadoras de falta de emprego. Como conseguir combinar os investimentos em tecnologia, que rebaixam os números de empregados, e a necessidade de criar novas vagas de trabalho?


Marinho – Há necessidade de formar um centro tecnológico, uma universidade onde se aprenda tecnologia. É uma necessidade para a região ter condições competitivas, inclusive para gerar negócios e empregos. Isso pode ser compatibilizado. O desenvolvimento econômico do País tem de estar preocupado com o problema do emprego. O governo não pode falar que isso é problema do mercado, que a modernização gera desemprego e que não pode fazer nada. O Estado tem obrigação real nesse negócio. Se quisermos gerar empregos precisamos de algumas decisões políticas. Decisão política de mexer na economia, de distribuir renda para elevar o poder aquisitivo de outras regiões.


A distribuição de renda, e de reforma agrária, de políticas sociais. A jornada de trabalho pode ser reduzida para aumentar a geração de emprego. É claro que o País não tem condições de reduzir a jornada de uma vez, mas o governo pode anunciar que quer que a economia chegue ao ano 2002 fazendo 39 horas por semana. As partes vão trabalhar para se adaptar e chegar lá com competitividade. É uma forma de gerar novas oportunidades, novos empregos e proteger os que tem.


Por que o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC nunca se meteu de forma institucional nessa questão de guerra fiscal, anomalia de um Estado federativo que atinge em cheio os trabalhadores? Como se explica que disparidades de custos tão elevadas, e que colocam o Grande ABC permanentemente em posição de desvantagem, não tenha tido até agora um claro manifesto do sindicato?


Marinho – O sindicato se meteu, o sindicato falou, o sindicato escreveu, o sindicato se posicionou contra a guerra fiscal. Agora a guerra fiscal não é meramente uma guerra que alguns Estados resolveram praticar. É uma guerra que está na lógica da política neoliberal que o governo federal adotou. O Brasil não pode ser considerado neoliberal, mas o governo tem queda, tem práticas neoliberais. Aliás, o governo federal tanto não trabalha para lutar contra a guerra fiscal que muitas vezes até parece que a incentiva.


Qual é o perfil ideal para o próximo presidente do Brasil?


Lula – É melhor perguntar para o Marinho (risos).


Marinho – O Lula coordenou várias indicações de propostas, como política alimentar, agrária, de desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha, da Zona da Mata, da Amazônia… Enquanto o Fernando Henrique viajou o mundo, o Lula viajou o País conhecendo problemas e experiências internas de geração de empregos. Em cada região que a Caravana da Cidadania passou procurou desenvolver projetos alternativos para essas questões. Tenho certeza de que o perfil está colocado numa figura que conhece como ninguém ou como poucos nosso País, os problemas que tem e as alternativas que serão necessárias. Estamos falando do Lula que, a depender de mim, a depender de nós, será o presidente da República no próximo período. Não como todo-poderoso que vai enfrentar os desafios e ter soluções para tudo. Mas como aquele que consegue uma prática de que é preciso um processo de negociação, de participação dos trabalhadores, dos empresários, do Poder Público, para gerar alternativas que venham a responder às demandas. Como, por exemplo, estamos fazendo aqui no Grande ABC. Ele precisa de participação democrática, de participação dos trabalhadores e dos empresários. Por essa razão penso que estamos à frente do perfil adequado para dirigir o País.


Lula – Esse humilde candidato agradece.


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