Administração Pública

Quem ganha e quem perde com
a multiplicação do bilhete único?

DANIEL LIMA - 07/06/2013

Faço a pergunta e respondo: quem ganha ganhos diferenciados são os donos das empresas de transporte, as administrações públicas e os usuários. Quem perde? Barbada, barbadíssima: como sempre, quem perde e perde feio é a classe média convencional, a mais escorchada pelos impostos, e também a gestão pública no sentido mais abrangente da expressão, com olhos e mentes no futuro menos imediato da próxima eleição.

 

O bilhete único (e assemelhados) é o sonho de qualquer administrador público que pensa e age no curto prazo. E também dos magnatas do transporte coletivo. Afinal, quem não gostaria de ter um curral eleitoral disponível na próxima eleição? E quem não se delicia com uma demanda garantida e sempre crescente, paga regiamente pelo Poder Público, num sistema que escorraça qualquer conotação de produtividade empresarial?

 

O que mais causa espanto é que ninguém ainda se tocou para acabar com a farra geral em nome de uma política muito mais que populista. A sacralização do bilhete único está na ordem do dia. Publicam-se informações quase no mesmo tom de uma homilia papal.

 

Bilhete único, mesmo que não seja único, porque, como nos casos dos sistemas implantados na Província do Grande ABC, são bilhetes apenas de ida, virou pó de pirlimpimpim para aumentar o cacife de aprovação de gestores públicos muitas vezes medíocres na produção de riqueza sustentada.

 

Pelo menos entre as classes populares, o bilhete único soa como música aos ouvidos dos usuários. Mal sabem os contribuintes que entre um ponto de acesso e um de desembarque há mais mistérios que entre o céu e a terra.

 

Desvios incontroláveis

 

Tanto que ainda outro dia descobriu-se e denunciou-se um esquema fraudulento de industrialização de receitas no transporte coletivo de Mauá. Manipularam a operação tecnológica e com isso se ampliou consideravelmente o contingente de usuários fantasmas, ou seja, as receitas das empresas concessionárias.

 

Quem, afinal, controla as parafernálias que supostamente identificam os volumes de passageiros, base sobre a qual os administradores públicos repassam dinheiro de impostos aos empresários do setor? Tudo indica que houve contrariedades em Mauá na distribuição dos valores paralelos a determinar a alcaguetagem. E onde não há contrariedades a denunciar? Certamente onde as contrariedades não valem a pena ser denunciadas, porque há gestores de malandragens consensuais mais competentes que em Mauá.  

 

Quem conhece bem o mercado paralelo de financiamento eleitoral que, segundo especialistas, é duas vezes superior à contabilidade oficial ilusoriamente refletida no jogo de prestação de contas, indica três vertentes a liderar a aproximação incestuosa entre empresários e o mundo político: o setor imobiliário, as empreiteiras de obras públicas e o transporte coletivo. Uma quarta atividade, do setor de lixo, ameaça as três mais citadas.

 

Acreditar que o bilhete único de montanhas cada vez maiores de dinheiro está fora da órbita de interesses nem sempre republicanos é ignorar o ambiente que une políticos e empresários do setor quando tratam do assunto. Vê-los sorrindo ao final de um encontro é carimbo que faltava ao empacotamento de vantagens muitas vezes inconfessáveis.

 

Desastre anunciado

 

Quem antecipou o desastre orçamentário do bilhete único foi Luiz Celio Bottura, ex-presidente da Dersa e consultor em engenharia urbana. Numa entrevista à Folha de S. Paulo em junho de 2004, a propósito do projeto na administração petista de Marta Suplicy, na Capital, ele antecipou que quanto mais o programa desse certo, maior seria a arapuca financeira que a Prefeitura teria de enfrentar. “Na medida em que os usuários forem se adaptando ao novo esquema, vão se organizar melhor para usufruir do benefício de viajar por duas horas em vários ônibus pelo preço de apenas uma passagem”. E continuou: “Por essa tese, o número de viagens tende a crescer cada vez mais, enquanto a receita com passagens deve cair. Quanto maior o sucesso de bilheteria, menor a arrecadação. Isso será uma bomba de efeito retardado, que não passa da próxima administração”. Como se observa, o especialista acertou em cheio. Só errou ao sugerir a desativação do bilhete único, bastante rentável aos administradores públicos e aos donos do transporte coletivo, cujas planilhas de custos não têm qualquer intimidade com filantropia.

 

Luiz Célio Bottura foi mais fundo naquela reportagem publicada há nove anos na Folha de S. Paulo. Antecipou também uma realidade prática. Disse que o sistema é um incentivo para que as pessoas façam mais viagens. Em vez de esperar seu ônibus, os usuários, segundo ele, pegam o primeiro que aparece e vai mais ou menos para a mesma região, para depois entrar em ônibus cheio. “Ninguém quer entrar em ônibus cheio. A pessoa faz duas ou três baldeações para viajar mais confortável”.

 

A projeção do especialista se confirmou no ano seguinte, quando estatísticas do sistema de transporte mostravam que as médias de passageiros por veículo ou por quilômetro rodada se tornaram as maiores em 10 anos. Em 1999, durante o governo de Celso Pitta, cada ônibus transportava 362 usuários por dia. Já no mesmo mês de 2004 esse número era 64% superior – 592. Em janeiro de 2005 a situação se repetiu. Em comparação com 2002, o salto ultrapassou 50%. Na prática, segundo aqueles estudos, as baldeações saltaram de 20% para 50%.

 

Traduzindo os números: as empresas de transporte elevaram consideravelmente a clientela e as receitas, porque o sistema é financiado pelos cofres públicos. Possivelmente não exista melhor negócio do que ter ônibus rodando com a garantia de demanda do bilhete único. Seria algo como abrir uma loja de pet shop e contar com subsídios do governo a determinados tipos de produtos. Quando quem paga a conta é o outro, alguém ganha e alguém perde.

 

Faltam detalhamentos dos números atualizados sobre as características de uso do bilhete único em São Paulo. Mas há dados do passado que ajudam a clarear o presente. De acordo com a Secretaria Municipal dos Transportes de São Paulo, em maio de 2004, quando começou a funcionar o sistema, o número de bilhetes em circulação era de três milhões por mês. Em novembro de 2006 chegava a 68 milhões.

 

Não há quem resista à atratividade popular do bilhete único. Em 2008, candidato à reeleição à Prefeitura de São Paulo, o então prefeito Gilberto Kassab anunciou que a partir de 28 de julho a validade do bilhete único seria ampliada de duas para três horas, tempo em que os passageiros poderiam fazer até quatro viagens pagando a então tarifa de R$ 2,30. A estratégia, segundo denunciou a Folha de S. Paulo, repetiu a iniciativa da ex-prefeita Marta Suplicy que, em 2004, lançou os benefícios do cartão também às vésperas das eleições, quando sofreu críticas dos opositores por conta dos impactos econômicos. Não é por outra razão que Marta Suplicy tem na periferia da Capital um lote considerável de votos.

 

O custo orçamentário do bilhete único avança de forma avassaladora. Somente nesta temporada o prefeito petista Fernando Haddad deverá despender R$ 1,2 bilhão para sustentar a iniciativa de Marta Suplicy. Um preço altíssimo para manter o eleitorado popular mais próximo. Acabar ou alterar substancialmente o conceito de bilhete único seria uma catástrofe ao mandachuva de plantão. Somente à medida que implantou o bilhete único mensal, pelo qual o usuário pagará uma tarifa única e poderá fazer quantas viagens de ônibus quiser durante um mês, custará R$ 400 milhões de subsídios à Prefeitura de São Paulo.

 

Extremos dominantes

 

A gênese do imbricamento lucrativo entre gestores públicos e empresários do setor de transporte integra o contexto analítico de Marcos Mendes, doutor em economia e consultor legislativo do Senado que, em recente artigo ao jornal Valor Econômico, traçou com perfeição uma característica histórica da sociedade brasileira: a desigualdade de renda e de patrimônio e suas relações com as medidas governamentais.

 

 Após a transição para a democracia, em 1985, a classe política gradativamente percebeu que a maioria dos votos está entre os pobres: sem atender os interesses imediatos desse grupo não se ganha eleição. Daí à expansão do gasto público e a dificuldade em conter seu crescimento: aumentos reais para o salário-mínimo, expansão da aposentadoria rural, universalização da saúde, etc. Iniciou-se vigorosa “redistribuição para os pobres”. Por outro lado, os muito ricos dispõem de poder financeiro para influenciar as decisões governamentais, de onde decorrem: proteção comercial para a indústria, crédito subsidiado para empresas escolhidas a dedo, políticas de desenvolvimento regional capturadas pelos ricos das regiões pobres, fundos de pensão de estatais prontos a financiar projetos “geniais” de pessoas bem conectadas, agências reguladoras frágeis que facilitam a vida dos grupos regulados. Essa “redistribuição para os ricos” também custa dinheiro e pressiona o gasto público e a dívida pública, além de impedir a livre concorrência e envenenar o ambiente de negócios – escreveu Marcos Mendes.

 

Como tantos programas públicos em parceria com a iniciativa privada, o bilhete único não resistiria a uma blitz minuciosa porque exala uma combinação de interesses que vão muito além do atendimento de transporte público mais barato aos usuários geralmente mais pobres. Muito dinheiro está sendo desviado de programas sociais diversos porque a santificação midiática do bilhete único entorpece o senso crítico. Está tão escancarado que o bilhete único é bom demais para ser verdade que não se compreende a razão de não ter merecido, ainda, um exame detalhadíssimo dos mecanismos contábeis que o retroalimentam. As falcatruas em Mauá são mais que provavelmente apenas um grão de areia a sugerir que o buraco é muito mais embaixo. 

 

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