A UFABC (Universidade Federal do Grande ABC) está situada no Século XIX. Palavra de quem entende do assunto. Valmor Bolan é Doutor em Sociologia, conselheiro da OUI (Organização Universitária Interamericana) no Brasil e membro da Comissão Ministerial do Prouni/Mec. Também é consultor de Instituições de Ensino Superior. O especialista é aliado histórico nas críticas à UFABC. "Uma IES (Instituição de Ensino Superior) que tenha por missão precípua repassar conhecimentos científicos e tecnológicos existentes (e não inclua produção de novos conhecimentos) não é bem-vinda. Aliás, é a mentalidade que domina as políticas do Ministério da Educação em termos de Ensino Superior" -- afirma Valmor Bolan.
O centro dos problemas apontados ao longo dos anos por este jornalista -- e também pelo especialista -- é o entendimento dos acadêmicos que a missão da instituição é universal, não regional. Valmor Bolan afirma que até recentemente a universidade brasileira rejeitava qualquer contato com as empresas, "sob a alegação de que representavam o capitalismo tão odiado pela comunidade acadêmica". E vai mais longe: afirma que na universidade pública predomina sentimento generalizado de superioridade. "Há amplo consenso interno de que pouco ou nada pode-se aprender com aqueles que vivem extramuros, extraclausura".
A Universidade Federal do Grande ABC, instalada em Santo André há mais de quatro anos, continua sendo, de fato, "no" Grande ABC, por conta do divórcio com as demandas de desenvolvimento regional. O senhor chegou a rotular a UFABC de barriga de aluguel. Há saída para esse distanciamento ou se trata de um vespeiro político-educacional do qual todos fogem para manter interesses intocáveis?
Valmor Bolan -- Trata-se de líderes educacionais que têm mentalidade focada em modelo único de universidade. A única universidade possível, segundo eles, é a Humboldiana, gestada na Europa na segunda metade do Século XIX. É a Instituição de Ensino Superior (IES) que tem a tradicional tríplice função: Ensino, Pesquisa e Extensão. Outro tipo de IES, para eles, não é desejável ou então é de segunda categoria ou ainda semi-universitária. Uma IES que tenha por missão precípua repassar conhecimentos científicos e tecnológicos existentes (e não inclua produção de novos conhecimentos) não é bem-vinda. Aliás, é a mentalidade que domina as políticas do Ministério da Educação em termos de Ensino Superior. Instituição de Ensino Superior que inclua expressões como "atender ao mercado" (que não significa outra coisa que ouvir a sociedade produtiva em suas demandas de mão-de-obra), que favoreça a empregabilidade do aluno, a sua inserção regional e que tais, é vista como deslocada no e do mundo acadêmico. Entendem que sua missão é universal, não regional e que estão a serviço do universo e não da comunidade restrita. Tanto que quando contestávamos a falta de diálogo dos planejadores da UFABC com a comunidade regional, nos respondiam que o modelo que iria ser implantado era quase perfeito, pois tinha sido construído com a audiência de especialistas internacionais e de grandes universidades brasileiras, como a Unicamp. Não passávamos de estorvos e plebeus educacionais. Em suma, o distanciamento desses acadêmicos terminará somente quando mudar essa mentalidade elitista de universidade que, a bem da verdade, começa a mudar também em alguns setores de universidades públicas.
Um dos pontos dos insensíveis à causa da regionalidade no campo acadêmico é que confundem propositadamente ou não a importância de ações interdependentes de municípios próximos com provincianismo. Como o senhor observa essa tentativa de manipular conceitos? Mais que isso: não seria a federalização curricular da UFABC um disfarce mal-ajambrado para a manutenção de uma estrutura teórica sem objetividade prática de suporte ao desenvolvimento econômico?
Valmor Bolan -- Até recentemente a universidade brasileira rejeitava qualquer contato com as empresas sob a alegação de que representavam o capitalismo tão odiado pela comunidade acadêmica -- alunos e professores, de modo especial. Aliás, o corpo discente era basicamente formado por filhos da burguesia urbana e dos grandes donos de terra. Portanto, a universidade estava exclusivamente a serviço do conhecimento e não da infraestrutura material da sociedade. Platonismo puro. Desenvolvimento econômico? Regional? Pior ainda. De alguma forma, ainda há resquícios dessa mentalidade. Mesmo porque é muito mais cômoda a discussão teórica da economia, da filosofia, da sociedade interna corporis do que submeter-se a ouvir a plebéia extra-universitária.
Não lhe parece que estamos vivendo anos de trevas em vez de transparência quando se tem o seguinte quadro: em vez de uma UFABC aberta a instituições do Grande ABC, estabelecendo-se diálogos comprometidos com o futuro, sofremos com uma barreira que cerceia qualquer iniciativa que vise a prestação de contas do que se faz a cada ano. É culpa da sociedade regional ou esse é um padrão autoritário e prepotente da direção das universidades públicas do País? A comunidade acadêmica não está nem aí mesmo com os contribuintes que, em última instância, garantem a sustentação dos estabelecimentos?
Na universidade pública predomina sentimento generalizado de superioridade. Há um amplo consenso interno de que pouco ou nada pode-se aprender com aqueles que vivem extramuros, extraclaustra. Aliás, é nos fechados mosteiros medievais que surgem as primeiras universidades, que serviram de modelos para as universidades, sobretudo as ocidentais, durante tantos séculos. Contribuintes? Num passado não tão distante os estudantes faziam greve em função de aumento no valor das refeições além de R$ 1,00. Desde então os contribuintes nada contavam nem eram (e são) consultados. Há poucos dias um reitor de uma das tradicionais universidades federais me confessava que o orçamento que subsidia refeições aos estudantes contempla alguns milhões de reais. Será que muitos dos estudantes abonados merecem comer de graça ou quase de graça, além de estudar de graça? Nós, contribuintes, fomos consultados se estamos de acordo em subsidiar ou doar comida a estudantes que vão à universidade de carro do ano? Não seria de se perguntar, por outro lado, se é justo muitos jovens ricos estudarem em universidades gratuitas, sem pagar um tostão, enquanto a maioria dos jovens pobres ou pouco abonados deve pagar os estudos em IES privadas.
Por que a UFABC resiste em regionalizar o currículo se outras universidades federais que surgiram no País adotaram projetos acadêmicos em linha com o desenvolvimento econômico das regiões onde estão instaladas? Na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), grande parte das graduações está associada à matriz produtiva regional, enquanto alguns dos cursos mais tradicionais, como direito e pedagogia, foram adaptados à realidade e às demandas das comunidades que as orbitam. Fomos cirurgicamente selecionados para cultivar um empreendimento educacional arrogantemente nacional ou nos perdemos mesmo num provincianismo que nos retira qualquer possibilidade de reação que possa sensibilizar as autoridades acadêmicas e governamentais?
Valmor Bolan -- Provavelmente os dirigentes da UFFS e da Ufopa representam uma mentalidade emergente que, infelizmente, não chegou ao Grande ABC. Não há dúvida de que a classe política do Grande ABC não nos ajuda na luta por uma universidade pública comprometida com a regionalidade. Nos parece que nossos prefeitos, vereadores e partidos políticos não perceberam ainda a importância de uma universidade federal como agente e âncora de um projeto de desenvolvimento regional e de modo especial como indutora de inclusão social através do preparo de muitos jovens que venham a liderar um processo de consolidação econômica regional de modo que pelo menos as empresas já existentes não deixem o Grande ABC por falta de mão-de-obra qualificada.
A UFABC, segundo dados do Ministério da Cultura, registra os maiores índices de evasão escolar, relativos às três primeiras turmas. Segundo essas informações, são 42% de alunos que deixam a instituição. Estamos diante de um fracasso inquestionável do modelo adotado, como se já não fosse suficiente a disritmia curricular?
Valmor Bolan -- A UFABC é, a meu ver, a mais importante iniciativa no Grande ABC no século XXI. Não podemos, pois, perder essa grande oportunidade de fazer avançar mais a região mediante a formulação de um belo projeto acadêmico-pedagógico com a participação de todas as lideranças dos mais diferentes setores da sociedade. Ainda há tempo de a UFABC dar uma guinada: 42% de evasão supera qualquer índice de evasão de uma IES particular. É duas vezes a média nacional de evasão das IES Particulares, nas quais as perdas são predominantemente motivadas por razões financeiras. A referida evasão deveria ter motivado um mea culpa por parte de seus dirigentes e de seus professores. Por que o MEC, patrão da UFABC, não tomou nenhuma medida? No sistema particular de ensino tal ocorrência provocaria uma profunda reflexão, senão uma mudança geral dos dirigentes. Quem responderá pelas pesadas perdas financeiras provocadas por tão alta evasão?
O Partido dos Trabalhadores e a rede de entidades sociais ou não que formam o que os especialistas chamam de sustentação institucional do governo Lula da Silva reagiriam de forma diferente à indiferença completa que os caracteriza se a UFABC fosse implantada por um governo tucano e se mantivesse o mesmo alheamento curricular às necessidades do Grande ABC?
Valmor Bolan -- É difícil imaginar como se comportariam se fossem os tucanos a implantar a UFABC. Entretanto, a omissão da parte do PT regional e de outras entidades denuncia baixa conscientização sobre o papel histórico que a UFABC teria que ter na região. De qualquer forma, fica claro que a tentativa de inovação feita no modelo curricular dos cursos da UFABC não funcionou provavelmente pela falta de aderência à realidade regional, que precisa de respostas simples às demandas na elaboração do projeto pedagógico. A UFABC não pode ser boi de piranha para experimentações cerebrinas nas reformulações curriculares.
É uma boa ou uma má notícia o que o Ministério da Educação divulgou em 2010 dando conta de que em quatro anos o número de vagas em universidades federais do País cresceu 63%, abrindo-se em números absolutos 77 mil vagas? O ministério comemorou o fato de que pela primeira vez começaram os investimentos em cursos noturnos, programas para reverter evasão e ociosidade e aumento de produtividade dos professores. Temos apenas números ou há mesmo uma revolução implantada?
Valmor Bolan -- Não chega a ser uma revolução, mesmo porque são muitas as universidades estaduais e municipais que implantaram há tempo os cursos noturnos. Entretanto, é uma iniciativa elogiável e que deve ser acelerada, uma vez que poderá permitir aumento no ingresso de estudantes das classes médias inferiores e de profissionais que precisam de um segundo curso visando atender aos novos desafios que se impõem numa sociedade cada vez mais dependente de ciência e tecnologia, que se alteram com alta velocidade.
Um recente estudo do Banco Mundial constatou mais uma vez que o Brasil está ficando para trás na comparação com outros países em desenvolvimento quando se trata de produzir conhecimento novo e de convertê-lo em resultados práticos. As principais causas são o Ensino Básico precário, universidade distante do setor produtivo, voltada mais para o conhecimento teórico do que para o prático, e tradição de importar e adaptar tecnologias em vez de criá-las. Tudo isso, que é repetidamente apresentado a cada temporada, terá fim algum dia?
Valmor Bolan -- É paradoxal tomar conhecimento de que o Brasil foi um dos países que mais cresceu na última década em matéria de produção científica e, ao mesmo tempo, toma-se conhecimento de que a aplicabilidade da referida produção científica é muito baixa.
Que importância têm as escolas técnicas federais e estaduais à elevação da capacidade dos trabalhadores brasileiros?
Valmor Bolan -- Muita importância, devido às funções práticas desses tipos de escola não atraírem a clientela mais rica. Por essa razão, ajudam muito no esforço nacional de inclusão social e econômica dos segmentos mais humildes. Têm boa aderência aos sistemas de produção e qualidade geral comprovada. É pena que se constituam em pequena ilha de qualidade e adequabilidade num imenso território de Ensino Básico medíocre e não profissionalizante. Os governos precisam ser mais ousados na área do Ensino Profissionalizante. Além disso, é preciso que sejam mais criativos na implantação de cursos profissionalizantes que atendam ao surgimento de novas profissões em função de rápidas transformações tecnológicas que levam à caducidade algumas atividades.
Levantamento do Núcleo de Inovação Tecnológica da Unesp, com base em dados do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, aponta que as universidades representam hoje 0,78% do total de depositantes de patentes no País, que conta com cerca de 50 mil pesquisadores. Esse é o melhor retrato do descalabro das relações universidades-empresa?
Valmor Bolan -- É também indicador de que muito de nossas pesquisas têm pouco de aplicabilidade e frequentemente servem apenas para ilustrar os denominados pesquisadores do sexo dos anjos. É uma demonstração de que o Poder Público tem de criar um novo modelo de Universidade Pública, a Universidade Tecnológica, que vise mais às aplicações de curto alcance, atendendo, pois, às características econômicas das regiões em que serão implantadas. Por outro lado, é mister multiplicar os Centros de Pesquisa Cientíco-tecnológica que possam nutrir as universidades tecnológicas regionais no atendimento de demandas específicas. Aliás, tal iniciativa iria fixar os jovens em suas regiões.
Um outro estudo, agora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) registra que apenas 1,9% dos 26 mil doutores empregados está na indústria, enquanto 66% permaneciam na universidade. Outros 18% estão empregados no setor público. Estamos formando doutores para a burocracia?
Valmor Bolan -- Isso ocorre porque, inclusive no âmbito da Pós-graduação stricto sensu (Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado), a ligação da academia com o segmento empresarial é baixa. Formam-se doutores por outros doutores pesquisadores para serem os novos doutores pesquisadores do futuro. Saem então 20% para as atividades profissionais do setor público e privado, mas a maioria é absorvida endogenicamente pelas próprias universidades. Quantos desses doutores-pesquisadores efetivamente pesquisam e, os que pesquisam, obedecem a prioridades de um plano nacional de desenvolvimento científico-tecnológico, baseado nas reais demandas da sociedade, especialmente a econômica? Ou a maioria deles segue o que lhes dá na telha? Para onde vai nosso precioso dinheirinho?
Como o senhor analisa a projeção de que a meta de ter 16 mil doutores formados anualmente até 2012 dificilmente será alcançada? Pior ainda: só 3,9 mil doutores formados por ano são das engenharias, o que torna o número de profissionais insuficiente para atender à demanda.
Valmor Bolan -- O número de doutores vem crescendo velozmente no Brasil. Na secunda década de 1970 ,quando defendi minha tese de doutorado, o Brasil não tinha mais que 6.000 doutores. Hoje chegamos a uma produção anual de 11.000 doutores. É significativo, mas ainda é pouco e, sobretudo, é pouco planejado para obedecer às prioridades do mercado nacional.
Mais um indicador de que a situação é desalentadora: alunos de ciências da computação, matemática e administração estão entre os que mais abandonam o Ensino Superior, segundo pesquisa com dados do Ministério da Educação. A evasão média nessas áreas é de 28%. A média nacional é de 22%, percentual que tem variado pouco na década. Uma das explicações é a falta de informação na hora da escolha no vestibular, quando se dá frustração com o conteúdo do curso e com as perspectivas de emprego. Nossos jovens estariam decidindo cedo demais o que pretendem ser no futuro?
Valmor Bolan -- Os estudos sobre evasão no Ensino Superior não colocam em primeiro lugar a má escolha do curso por parte do aluno. Há obviamente múltiplas razões para evasão escolar. No sistema particular, a financeira é uma delas. Entretanto, a evasão é muito mais devido à inadequabilidade dos projetos pedagógicos às aspirações do aluno e à falta de aplicabilidade do que se estuda. Portanto, o problema da evasão é mais provocada pela má qualidade da Instituição escolar do que da do aluno. É por falta de aproximação do mundo dos professores ao mundo dos alunos.
O senhor concorda com especialistas que consideram que o grande problema da educação no Brasil é que a cobertura oferecida pelo sistema é muito pequena, com apenas 13% dos jovens de 18 a 24 anos matriculados em instituições de Ensino Superior? Desse total, apenas 3% estão em instituições públicas, contra uma média geral de 32% na América Latina e 60% nos Estados Unidos e países da Europa.
Valmor Bolan -- O maior problema do Brasil é a má qualidade do Ensino Básico Público, inclusive a enorme falta de vagas nas creches e Pré-escola. A evasão entre o início do Ensino Fundamental e o fim do Ensino Médio é brutal. Supera 50%. A evasão e a má qualidade do ensino no Ciclo Básico constituí a grande tragédia nacional, que não nos permite pensar num futuro brilhante para o Brasil. Aqui também a UFABC poderia ter um papel catalisador a serviço do sistema de ensino/aprendizagem das escolas do Ensino Básico na região. A percentagem de jovens que frequenta as instituições de Ensino Superior em idade universitária é dramática. Perdemos para Bolívia e Paraguai. Sem uma guinada radical nas políticas de incentivo ao Ensino Superior, inclusive incrementando a adoção de modelos múltiplos e variados de universidades e a oferta de cursos superiores profissionalizantes de curta duração, o Brasil terá dificultado o plano de desenvolvimento futuro. Sem um povo efetivamente educado e aculturado não haverá desenvolvimento sustentável. Não há Plano de Aceleração (PAC) que pare de pé se o cidadão não tiver cérebro para geri-lo e mantê-lo hígido.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira