Sociedade

NOSSO SÉCULO XXI E A
REALIDADE DE TURMAS

DANIEL LIMA - 19/11/2024

O Grande ABC tem a turma do poder e a turma do dinheiro. As duas turmas se articulam e se retroalimentam. A terceira turma adora ficar perto das duas turmas. Uma quarta turma, que abunda, não dá bola para as três turmas. Resultado final? Sociedade Servil Desorganizada sob controle das três turmas, uma cadeia de improdutividades e de permissibilidades.

O alheamento levado às urnas mantém mais fortes e praticamente intocáveis as turmas do poder e do dinheiro. E a terceira turma alimenta o sonho de passar para uma das turmas da frente. Isso não é capital social nem aqui e muito menos na China autoritária.

Isso é uma irreversível porta aberta a mais dispersão e esgarçamento da cidadania, além de empobrecimento econômico e cultural. O capital social,   em forma de Município, Empreendedores e Sociedade,  não está no mesmo barco de perspectivas.

O Estado Municipalista ganha de lavada. Os Empreendedores sabem que não têm companhia confiável. E a Sociedade assiste a tudo com penetras prontos a aumentar a terceira turma, vestibular às turmas subsequentes. Nem todo mundo da quarta turma aceita a quarta turma, mas não pensa em turmas equilibradas. Quer também o andar de cima repleto de obstáculos. O Clube dos Bem-Aventurados dispensa apetrechos meritocráticos. Basta relacionamento.

O leitor deve compreender esse texto como parte de um todo que está muito longe de se completar. Não existe horizonte que contemple um final feliz.

PEDAÇO DE UM TODO

Em alguns pontos serei até levemente ou mais repetitivo sobre o estágio em que se encontra o Grande ABC. Mas é preciso atiçar a memória porque haverá sempre do alto das duas turmas privilegiadas e da turma de ávidos oportunistas quem tentará vender algo diferente. A indolência da maioria dos moradores da região colabora para isso.

Não adianta contraporem que essas quatro turmas – de poderosos, de ricos, de oportunistas e de omissos -- não são privilégios e pestes exclusivas do Grande ABC. Claro que não. O Brasil é uma sinfonia fina à perpetuação de iniquidades. Entretanto, o que acontece no Grande ABC é muito mais grave.

Essas turmas tendem à perenidade com agravos. O que seria perenidade com agravos? Os poderes dos podres poderes serão cada vez mais poderosos, os poderosos do dinheiro serão cada vez mais endinheirados, a camada de oportunistas será sempre mais densa e o distanciamento do povo dos interesses do próprio povo vai se calcificar.

A história regional de separatismos municipalistas, de regionalidade mentirosa, de proximidade físico-territorial com a dominante Capital e a necessidade da sociedade correr atrás da própria sobrevivência como rescaldo de 40 anos de destruição industrial sem reposição setorial, depois de pelo menos 30 anos de protecionismo estatal, tudo isso tem a dimensão de  uma fornalha que consome  esperança e dignidade.

CONHECIMENTO REGIONAL

Escrevo com o conhecimento especial de quem é um atento observador do Grande ABC há mais de 50 anos. Só para se ter uma ideia do que isso significa (e não esqueçam que se há algo que cultivo como sustentação de minha própria vida motivacional é observar atentamente a cena regional) nenhum dos prefeitos eleitos e quase todos que estão no cargo atualmente têm de idade o que tenho de jornalismo. A imbecilidade de regionalista possivelmente não me desclassificaria.

Mais que de jornalismo: de jornalismo combativo, pronto para suportar as dores de escrever o que alguns desses frequentadores dessas turmas mencionadas detestam, porque os ferem na covardia e na incompetência com que desenvolvem aparatos de sofisticação de desinteresse coletivo.

Escrevo sobre o futuro do Grande ABC que sempre chega com a mesma serenidade e convicção com que, há 35 anos, ao lançar a revista de papel LivreMercado, antecessora e agregadora deste CapitalSocial, apontei os estragos da desindustrialização que já se delineava. Enfrentei malversadores éticos sem temor.

ACERTOS LASTIMÁVEIS

Foram inúmeras as situações que, lamentavelmente, me consagraram não como um ganhador da loteria de resultados aleatórios, como são as loterias em geral, mas como um apontador de horizonte com base em elementos fatuais, estatísticos e indelevelmente incontroláveis diante da omissão quase que totalmente generalizada dos integrantes perenes das duas primeiras turmas.

Como profissional de jornalismo que praticamente sozinho vem alertando com fundamentação o quanto o Grande ABC se esfarela economicamente e também socialmente desde muito tempo, sem ter muitos exemplos de cidadania tanto municipal quanto regional, me sinto com responsabilidade ampliada.

Nem poderia ser diferente.  Além desse idiota não se encontram idiotas semelhantes aos borbotões. Longe disso. Não falta indignação, é verdade, mas entre custo e benefício de retaliações, o silêncio é a melhor companhia.

DIVISOR DE ÁGUAS

O livro “Complexo de Gata Borralheira”, que coordenei a edição juntamente com a também jornalista (brilhante, por sinal) Malu Marcoccia, em 2001, é um divisor de águas na literatura regional. É uma ilha em meio a uma tempestade sociológica tratada com desdém por todas as turmas.

Nada, absolutamente nada, sacode a poeira da indolência regional de modo a dar sequer meia volta rumo a transformações. O que se poderia imaginar como ferramenta de redefinições de agentes públicos e privados da região, sob a régua e o compasso de uma sociedade viva, atuante, de fato se tornou o inverso: a tecnologia portátil de comunicação, entre vários fatores, incrementou de vez o destino previsível do Grande ABC.

Se antes a regionalidade era um farrapo diante do municipalismo autárquico, agora que o mundo é o limite , os frequentadores erráticos ou de fim de semana , chamados de habitantes, mal querem saber do que se passa em termos mais valiosos.

A atenção está voltada ao varejismo egoísta de zeladoria da Administração Municipal enquanto se observa o cenário nacional com vivido interesse. O vácuo está se consolidando como erva daninha.  

POLÍTICA NACIONAL

Tudo isso quer dizer que, além da falta de cidadania mesmo municipalista, quanto mais regional, adicionamos ao portfólio de desesperança a intromissão concentradora de atenção do ambiente político-econômico nacional.

As redes sociais da região que costumo frequentar como voyeur estão em condições normais de tempo de consulta e temperatura de participação maciçamente ocupadas pela política nacional. Retirando-se grupos na maioria dos casos próximos aos prefeitos, muitos dos quais incrustados em gabinetes de ódio, a quase totalidade volta-se a embates de direita versus esquerda.

Alguém ainda não atentou à gravidade dessa situação? Acrescentamos uma camada de terra a mais no caixão de questões regionais e acompanhamos a fome com que a turma do alheamento se debruça em cardápios estranhos às especificidades que mais nos interessam.

Talvez a origem psíquica deste texto, e psíquica não é exagero, seja o fato de estar este jornalista recuperando um dos projetos mais fabulosos de que participei há duas décadas. Para tanto, volto a citar, contei com a participação mais que indispensável da jornalista Malu Marcoccia na coordenação daquilo que chamamos de “Nosso Século XXI”.

NOSSO SÉCULO XXI 

Os leitores de  CapitalSocial espalhados em grupos e nas listas de transmissão do aplicativo WhatsApp passaram a receber desde a semana passada recortes dos participantes daquele projeto. Foram 29 profissionais das mais distintas áreas na primeira edição, em 1998. A segunda edição reuniria, na edição de 2008, 35 articulistas.

Aquela primeira edição da maior obra coletiva da literatura regional lotou o Clube Atlético Aramaçan, em Santo André. Mais de duas mil pessoas compareceram à festa de lançamento e de autógrafos. Foi a última vez que Celso Daniel, um dos convidados a expressar nas páginas de Nosso Século XXI o que seria o Grande ABC deste século, participou de evento público. Quarenta dias depois, em 20 de janeiro, foi sequestrado.

Ao apertar o botão que aciona a reprodução diária da primeira página de cada documento para a história, caiu a minha ficha, mais uma vez por sinal, do quanto desde então, passando pelo respiro de 2008, perdemos a capacidade de contar com referenciais de agentes com percepções sobre o que significaria viver no Grande ABC.

É insofismável que o Grande ABC perdeu a bússola para  reunir um grupo de pensadores ou executores, ou as duas coisas, independentemente de cores ideológicas. A dispersão acentua-se a cada novo degrau de avanço da tecnologia de bolso.

DISTÂNCIA MAIOR

Acentua-se a cada nova temporada gregoriana a distância entre quem tem poder, quem tem dinheiro, quem tem dinheiro e poder, e também  áulicos que correm atrás de migalhas, ou da expectativa de se juntarem às turmas de cima, e, finalmente,  quem é apenas e unicamente habitante, morador, contribuinte, menos cidadão.

Não há cidadania que resista à falta de massa crítica de quem comunga explicitamente dos mesmos pensamentos, ideias e propostas. Uma maioria silenciosa jamais será outra coisa senão uma massa de descarte, quando não de uso abusivo que lustra biografias medíocres.

Fico imaginando o quão frustrado estaria ao fim de uma nova década – ano de 2035, por exemplo – quando este texto (vamos dispensar centenas de outros) for colocado em xeque diante da realidade sacramentada. Não tenham dúvida de que novas decepções não faltarão. Estaremos invejando o hoje quando esse amanhã chegar.

MATERIAL PROMISSOR

Afinal, não foi assim que, naquele 1998, ante a massa de textos que viraram livro histórico, depositávamos expectativa de que o mais incisivo e por que não dizer cruel articulista de Nosso Século XXI correria o risco de dar com a cara na porta de transformações positivas?

Revisitar cada uma das 288 páginas daquela obra coletiva seria um trabalho extraordinário se levado a cabo também em forma de uma nova obra, agora com análise criteriosa em forma de balanço.

Como se passou tanto tempo e a memória não retem tantas informações, a única maneira para produzir um diagnóstico mais próximo possível daqueles articulistas talvez partisse dos primeiro trechos como âncora do conjunto publicado: ou seja, os respectivos títulos. Afinal, qual foi o tom prevalecente das manchetes de cada convidado? Seria possível definir  juízo de valor sustentável ante cada enunciado?

É disso que vamos tratar numa próxima edição. Mais que isso: vou sugerir o que seria uma participação extraordinária envolvendo insumos daqueles articulistas.


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