Entrevista Especial

Ainda estamos
com um pé atrás

MALU MARCOCCIA - 05/01/2001

Se não houver decisão e perseverança na construção de experiências regionais, não adianta patrocinar palestras, estudos e comitivas atrás de soluções para a revitalização do Grande ABC -- vai direto ao assunto Maria Carolina de Azevedo Souza, do Instituto de Economia da Unicamp. A economista e professora coordenou o Diagnóstico da Competitividade do ABC encomendado à Universidade de Campinas pelo Sebrae (Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa) sobre as cadeias de móveis, plásticos e autopeças. Exatamente dois anos depois de apresentado, pouco se avançou em relação ao diagnóstico, que recomendou mais ações cooperadas, constituição de clusters e diversificação de nichos.


 


"Não temos tradição no Brasil de debates públicos de problemas, menos ainda para implementar ações" -- tenta justificar a economista, que não deixa de dar um puxão de orelhas na baixa velocidade dos passos no Grande ABC: "Pesquisas significam pouco se não saírem do papel com participação de quem foi pesquisado". Estudiosa de pequenas empresas e clusters industriais, Maria Carolina de Souza não acha que o Grande ABC deva entrar numa máquina do tempo e acelerar para a idade moderna da competitividade sem ter rumos bem definidos. Sobre os moveleiros, por exemplo, diz que a recuperação só vale a pena se for marcada por inovação e diferenciação.


 


De qualquer forma, considera que moveleiros e plásticos, apesar de tímidos, estão desafiando a letargia. Pior são as autopeças, que não saíram do ponto morto da concorrência predatória do passado nem se interagem para buscar novos mercados de forma cooperada. O diagnóstico foi feito no âmbito do Proder (Programa de Emprego e Renda Regional) do Sebrae e, segundo a economista da Unicamp, os municípios têm papel limitado como animadores do parque econômico. Na sua opinião, cabe aos Estados e ao governo federal desenvolver políticas ativas setoriais no campo industrial, de comércio exterior, de juros baixos e linhas de crédito.


 


Poucas ações saíram do papel desde que o núcleo de pesquisas da Unicamp apresentou o Diagnóstico da Competitividade do ABC identificando tendências e potencialidades em três das principais cadeias: autopeças, plásticos e móveis. Pode-se citar a qualificação da mão-de-obra petroquímica-plástica através do Projeto Alquimia, a preparação dos moveleiros em pool de exportação através de parceria USP-Sebrae e o que se pode chamar de ensaio de central de compras, pois são apenas 18 empresas do ramo plástico fazendo encomendas conjuntas, de um universo de quase 600. O Projeto Prumo do IPT, oportunidade rara no auxílio a processos e tecnologias de pequenas empresas, não sensibilizou meia dúzia de fabricantes. Como a senhora avalia essa lentidão de respostas?


 


Maria Carolina --  Acho importante lembrar que a pesquisa no ABC com coordenação do Nesur e do Neit (Núcleos de Estudos da Urbanização  e da Indústria e da Tecnologia) foi desenvolvida no âmbito do Proder Regional do Sebrae-SP. O objetivo do Proder é  identificar oportunidades para geração de emprego e renda, com foco no papel das pequenas empresas. O passo inicial é desenvolver um diagnóstico na localidade de forma a apontar restrições e pontos fortes em relação ao objetivo mencionado. Os três setores foram privilegiados pelas características da estrutura produtiva da região, mas não foram os únicos. Ações voltadas para valorização do potencial turístico da região e o estímulo à instalação de empresas de serviços também mereceram destaque.


 


Quanto à timidez no desenvolvimento das ações, não me surpreende. Os resultados do diagnóstico são apresentados em seminários abertos à comunidade como um todo. O que se verifica nesses seminários é uma frequência relativamente pequena. A reduzida participação de representantes de empresas é ainda mais evidente. Isso revela divulgação insuficiente ou desinteresse no debate dos problemas e potencialidades identificados.


 


No Brasil não há tradição de debates públicos e coletivos de problemas. Menos ainda quando se trata de avaliar e implementar ações setoriais tendo como agentes principais os próprios empresários e dirigentes das empresas. Assim, os pequenos avanços conquistados no ABC, mesmo que decepcionantes, são um indicativo de que houve, sim, certa difusão das propostas e sensibilização quanto à importância de implementação, mesmo em situação adversa, como a enfrentada pelo ABC naquele momento. Ou seja, são conquistas que talvez em outras regiões não tivessem sido adotadas.


 


Estaria havendo consciência dos problemas que temos? 


 


Maria Carolina -- A implementação de ações voltadas para as empresas requer o reconhecimento de sua racionalidade econômica por parte dos responsáveis pelos processos decisórios. Pode-se, portanto, supor que no caso do setor de móveis os agentes reconheceram que a recuperação da tradição na manufatura era o caminho para a continuidade no mercado. A substituição gradativa das atividades de produção pela revenda afastou São Bernardo da lista dos principais pólos do mobiliário e não o situou como pólo significativo de revenda, conduzindo a uma decadência com efeitos na rentabilidade do setor. Essa constatação impõe mudanças e é o que está sendo tentado. Contribuição positiva nesse sentido é a promoção de visitas a outros centros produtores e a formação de parcerias com centros especializados em móveis para agregar novos conhecimentos de gestão e de manufatura. Entretanto, a reconstrução da imagem dos móveis do ABC é tarefa árdua. São inúmeros problemas, como os de prazos de entrega que ora tenta-se superar. Enquanto houver um estrado de cama produzida na região entregue sem estar devidamente acabado, a imagem de São Bernardo como pólo moveleiro continuará comprometida. Daí a importância de programas de qualidade para o setor.


 


No caso da Central de Negociação com distribuidoras de resinas plásticas, a adesão de 18 empresas é pequena considerando-se o número total de empresas do segmento na região, mas é bastante positiva levando-se em conta a eterna dificuldade de conseguir articulação e adesão de empresários, em especial de pequenas empresas, a qualquer iniciativa que exija participação ativa. Também estão sendo desenvolvidos alguns seminários e palestras com representantes de outros centros produtores, nos quais nem sempre a platéia é a esperada. A Abiplast também tem procurado estar mais presente na região, buscando incentivar algumas ações, mas os resultados ainda não são os esperados. O mesmo vale para algumas iniciativas do Sebrae visando implementar a segunda fase do Proder, de implementação das ações selecionadas a partir do diagnóstico, objeto da primeira fase.


 


Essas dificuldades não são exclusividade do ABC. Fazem parte do ambiente empresarial em geral, no qual até a obtenção de informações para pesquisa torna-se um desafio. Em poucas empresas há disponibilidade para respostas e a resistência não é só entre as pequenas. Tudo parece ser segredo. Em algumas até o número de funcionários é sigiloso. Parece haver um cansaço coletivo de pesquisas e estudos e descrédito quanto a possíveis resultados. Ocorre que resultados de pesquisas, por si só, significam muito pouco se ações não forem praticadas. Pesquisas não sairão do papel se não houver mobilização e participação ativa dos que foram pesquisados. De nada adianta patrocinar palestras e comitivas de representantes de localidades onde foram implementadas experiências de êxito, se não houver a decisão e perseverança na construção de experiências próprias.


 


O Grande ABC tem sido pródigo em palestras e comitivas, daí a sensação de que ações práticas têm sido escassas.


 


Maria Carolina -- Talvez falte perguntar claramente aos empresários o que afinal desejariam, além dos inevitáveis reclamos quanto a questões fiscais em grande parte fora do alcance de medidas locais. Uma possibilidade é que a resposta seja que não querem nada, querem continuar a tomar as decisões da maneira que sempre fizeram e pronto. Nesse caso,  a não ser que essas perspectivas sejam alteradas, não há proposta que seja adotada. Os dirigentes de empresas, principalmente das pequenas, perderam o hábito, se é que alguma vez o tiveram, de se reunir para discutir possíveis soluções para problemas comuns, quando isso deveria fazer parte da rotina de gestão. A preocupação com garantir o hoje e o futuro é que se tornou praxe. A falta de horizonte torna os empresários céticos quanto a ações conjuntas. O enfrentar de rivais mais próximos na arena da concorrência por espaços em mercados cada vez mais disputados torna-os míopes à possibilidade de explorar complementaridades e de cooperar sem que isso signifique deixar de ter identidade própria e de ter  menor poder decisório sobre suas empresas.


 


Quanto ao Programa Alquimia e outras iniciativas de sindicatos, são prova do que é possível construir quando há articulação e perseverança, outra qualidade pouco presente em nosso ambiente. Espera-se sempre grandes e visíveis resultados a curto prazo. Quando não vêm, desiste-se com o argumento de que a experiência não foi bem-sucedida. Não se tem paciência para construir em pequenos passos e não nos acostumamos a valorizar pequenos avanços. Justifica-se pela urgência de melhorias em um cenário pouco favorável, mas exatamente por isso a construção tende a ser mais lenta, contaminada pela descrença que se cristaliza em longos e sofridos períodos de perdas generalizadas. O ABC tem condições de resistência e reação que outras regiões poderiam não ter em igual situação. Afinal, apesar de toda a crise que se abateu sobre a região, não se instalou o caos. Isso não é gratuito, mas resultado das especificidades e tradições institucionais, entre outras.


 


Na ausência de um projeto deliberadamente  construído para orientar, coordenar e prover os necessários recursos, ou os meios de obtê-los, a implementação de propostas visando efetivar os potenciais identificados e as pequenas realizações adquirem maior significado.


 


Não lhe parece que, por ter sido a principal região industrial no Brasil golpeada pela globalização, o Grande ABC deveria estar correndo em ritmo frenético atrás da superação de seu despreparo desnudado pela abertura comercial? Qual será o preço a pagar se continuarmos nesse devagar, enquanto a indústria se descentraliza  e faz brotar outros pólos mais modernos?


 


Maria Carolina -- O golpe da globalização não elegeu prioritários. O País como um todo foi afetado pela exposição sem salvaguardas à abertura comercial. Há muito tempo não se tem eixo nem políticas públicas para nortear as decisões de investimento. Por concentrar e depender em grande medida da indústria automobilística, uma das principais fontes de dinamismo da economia, o ABC foi particularmente afetado pelos desdobramentos das decisões de política econômica dos anos recentes, agravados pelo acirramento da concorrência em âmbito mundial.


 


A globalização é apresentada como um processo ao qual é inevitável aderir sob pena de morrer, como se não houvesse alternativa, como se os mecanismos e o poder de atuação interna tivessem sido engolidos por esse processo. Integrar-se a um processo não é submeter-se, entregar-se a condições sobre as quais não se tem poder de decisão, sem medidas de proteção. Nessas circunstâncias o que significa correr atrás? Diante do acirramento da concorrência, a indústria automobilística nacional promoveu rigorosa reestruturação interna, resultando em elevado número de desempregados, enquanto externamente promoveu seleção e exclusão de fornecedores. Com isso,  o desemprego foi ainda mais acentuado e sem grandes oportunidades de recolocação.


 


Assim, se é fato que é preciso correr para não ter  perdas ainda mais agudas no parque produtivo local, é preciso reconhecer que na ausência de políticas públicas norteadoras e consistentes os espaços perdidos tornam-se de difícil recuperação. Que significa correr em ritmo frenético? Correr para onde? Correr sem rumo pode ser ainda mais nefasto do que o imobilismo, que não é caso do ABC, que não me parece estar imóvel. Se assim fosse, a situação pós-reestruturação nas grandes empresas dos principais setores industriais seria muito mais grave.


 


Quanto à descentralização, avaliações a partir de dados secundários apenas podem conduzir a diagnósticos não corretos. Ademais, algumas das principais montadoras do ABC  investiram em instalações em outros municípios e Estados, mas as plantas locais também estão sendo totalmente remodeladas, sinalizando a decisão de não deixar a região. As decisões e a lógica de localização das grandes empresas estão acima do poder de administração dos agentes locais. A racionalidade é a da rentabilidade, da taxa de retorno, que lhes permite a continuidade no mercado,  e não a do desenvolvimento desta ou daquela localidade apesar de, pela sua força, poderem determinar o dinamismo do local no qual se instalam e a perda desse mesmo dinamismo quando se retiram ou reduzem as atividades.


 


A senhora não concorda que a rentabilidade também está relacionada à localidade? Na região, o alto custo com salários e com a infra-estrutura urbana saturada é publicamente apontado pelas empresas, daí muitas terem ido embora.


 


Maria Carolina -- Seria necessário ter em mãos um levantamento sobre o número de empresas que deixaram a região em direção a outras localidades e os motivos para tal decisão. Se em função de benefícios fiscais, a reação deveria ser a entrada na guerra fiscal entre municípios? Não parece ser uma decisão racional do ponto de vista econômico e principalmente social. Por outro lado, políticas municipais e regionais são úteis, evitam o agravamento de problemas locais. Mas, embora valiosas, ações municipais têm limitado alcance na ausência de políticas estaduais e nacionais, às quais podem complementar devido as particularidades locais, mas nunca substituir. Trata-se de diferentes instâncias.


 


Quanto a novos pólos no Interior, resultam de uma diversidade de fatores: vantagens de localização, estrutura favorável à logística de distribuição, presença de aeroporto de porte para facilitar a entrada de componentes importados, disponibilidade de mão-de-obra com conhecimentos e que pode ser adaptada às necessidades das empresas de alta tecnologia, profissionais altamente qualificados  e com longa experiência em outras empresas dos setores de alta tecnologia anteriormente instaladas na região --  como é o caso da IBM  em Campinas, berço de alguns dos profissionais mais disputados no mercado das empresas da telemática. Conta ainda a presença de centros de pesquisa e universidades com competências em pesquisas nesses setores,  das quais acabam surgindo empresas filhotes como em São Carlos. São regiões com características e trajetórias diferentes das do ABC e cujos pólos não resultam de perda de competitividade relativa do ABC.


 


A senhora quer dizer que é necessário definir melhor os caminhos e objetivos?


 


Maria Carolina -- Sim, é necessário definir caminhos e objetivos. O diagnóstico do Proder ABC poderia representar uma pequena contribuição ao mapear ameaças e oportunidades, restrições e pontos positivos da região. A presença de número significativo de empresas de plásticos, caracterizando aglomeração setorial/regional, por exemplo, foi identificada como ponto positivo, um potencial a ser explorado, o que seria facilitado pela articulação das empresas do setor e pela definição de um projeto específico na região. Isso porque, no caso dessas empresas, o ABC oferece algumas vantagens como proximidade com o mercado consumidor e os conhecimentos acumulados. São vantagens, entretanto, que podem também ser encontradas em outras regiões, como em Campinas e em parte do eixo da Rodovia Castelo Branco, por exemplo, que podem tornar-se atrativas para empresas hoje instaladas no ABC.


 


Note-se, no entanto, que a criação de novos pólos de alta tecnologia não afasta os males de uma urbanização sem adequado planejamento e com problemas sociais de toda sorte, como falta de segurança e redução da qualidade de vida. Isso realça a importância de gestões municipais capazes de traduzir em melhorias sociais os resultados econômicos da estrutura produtiva presente no Município. Nesse aspecto, a região do ABC, apesar da redução da atividade econômica com evidentes efeitos sobre as receitas municipais, parece estar sendo mais bem-sucedida que municípios com arrecadações superiores.


 


No setor de autopeças nada decolou das sugestões da Unicamp. Até porque, pequenas organizações familiares estiveram mais ocupadas em como e quando iam ser engolidas pelos grandes sistemistas internacionais do que em articular ações conjuntas, conforme sugerido pelo Diagnóstico da Competitividade. Passado o furacão das fusões e aquisições das autopeças, a senhora ainda aconselha a formação de cooperativas e a diversificação? Tentar a vida fora da demanda automobilística de bilhões de dólares é mesmo a saída, já que a festa automotiva virou coisa para convidados grandes?


 


Maria Carolina -- De fato, desde o diagnóstico o setor de autopeças foi o de mais difícil avaliação. As dificuldades de acesso às empresas foram consideráveis e o setor vivia momento negro de sua história em função do severo enxugamento das montadoras e dos desdobramentos ao longo da cadeia. Representantes do setor, incluindo-se sindicato, também não participaram das apresentações dos resultados do diagnóstico, que não pode ser chamado de um diagnóstico de competitividade, o que exigiria trabalho muito mais profundo do que o Proder. Uma das ações deveria ter sido exatamente a avaliação da competitividade do setor na região, pela importância e tradição no tecido industrial local.


 


No caso das pequenas empresas de autopeças, as perspectivas não eram e ainda não são favoráveis diante das novas feições das montadoras e do espaço crescente atribuído aos sistemistas. Para muitas o fechamento foi inevitável. Pela fragilidade administrativa e financeira e pela total ausência de programas de apoio, essas pequenas empresas sequer tinham condições de buscar novos clientes e mercados. Ações coletivas, nesse caso, poderiam contribuir no sentido de dar fôlego adicional para eventualmente essas pequenas empresas usarem uma base produtiva ampliada pela cooperação para produzir para um mercado diferente. Seria o das montadoras de aparelhos elétricos, de telecomunicações e informática, ou ainda para os mercados de reposição.


 


Cooperação requer tempo para que se desenvolva a confiança, seu principal ingrediente. No caso de autopeças, a complementaridade não é tão evidente como em outros segmentos. Prevalece a rivalidade entre empresas, que sempre precisaram lutar para se incluir entre os seletos fornecedores das montadoras e de seus principais fornecedores num esquema de subcontratação em cascata marcado por relações comerciais sem muito conteúdo de cooperação. As autopeças mais bem estruturadas e especializadas conseguiram, muitas vezes em condições de negociação mais assimétricas, permanecer como fornecedoras diretas ou dos fornecedores de primeira linha. Mesmo algumas dessas empresas passaram a diversificar para outros mercados, escaldadas com os fortes impactos ao longo da cadeia produtiva. Para boa parte, a busca de opções tornou-se de fato a única saída. Entretanto,  diversificar, como tudo o que se refere ao mundo das empresas, é fácil  de escrever mas muito difícil de praticar. São necessários recursos para mudar linhas de produção, layout, investir no desenvolvimento de novos clientes em mercados nem sempre conhecidos e nos quais outras empresas já estão instaladas, entre outras ações.


 


Justamente por terem convivido por longas décadas com as automobilísticas -- competidoras globais por excelência e que desenvolviam veículos e tecnologias fora do Brasil --, as autopeças sempre receberam projetos prontos e nunca exercitaram a cooperação, nem com as montadoras nem entre si. Como estimular a interação no que restou do setor nacional, inclusive com a recomendação pontual da Unicamp para criação de clusters no Grande ABC, se o isolamento produtivo é generalizado? Começa com a ausência de desenvolvimento de tecnologias próprias, passa pela falta de pesquisa de materiais em conjunto e chega à mobilização-zero por compras e exportações integradas.


 


Maria Carolina -- Esse é um cenário desolador e que só se justifica pela já mencionada falta de tradição em ações conjuntas. Quanto a receber projetos prontos das empresas contratantes, é um mal que também se abate com maior intensidade sobre fornecedoras de empresa de alta tecnologia, que praticamente atuam no Brasil  também como montadoras. No caso das autopeças, os projetos vinham prontos sim, mas havia conhecimentos na manufatura, embora não houvesse rede articulada de fornecedores, tornando a verticalização vantajosa. Mas havia um saber-fazer na indústria mecânica que foi aperfeiçoado com a interação com as automobilísticas. Não se pode esquecer que algumas autopeças são anteriores à instalação das grandes montadoras.


 


No caso de empresas de alta tecnologia, as compras no mercado interno de fornecedoras locais resume-se ainda a partes menos estratégicas e à montagem de placas, para as quais inclusive estão perdendo terreno para fornecedoras mundiais que se instalam no País. Não há em vista um projeto de desenvolvimento local de fornecedoras, mas sim o estímulo à instalação de novas multinacionais fornecedoras. E aqui novamente vale a pergunta: correr para onde? Não há respostas fáceis. Daí a justificada resistência das empresas em promover ações conjuntas.


 


A complementaridade é que recomenda a cooperação. Essa é uma das características básicas dos clusters virtuosos tão invejados, mas que exigem requisitos mínimos como confiança e presença de forte aparato institucional,  coordenação, centros de apoio e disposição dos agentes envolvidos em estabelecer relações de cooperação. É necessário haver clima favorável à cooperação entre empresas. É isso que diferencia uma aglomeração de empresas de um mesmo setor de um cluster ou distrito industrial. No cluster são  aproveitadas as vantagens da aglomeração e gerada eficiência coletiva que favorece o todo e também cada uma das empresas.


 


O alcance desse estágio requer por parte das empresas o reconhecimento de que se trata de um caminho que favorece a ampliação da lucratividade pelo aproveitamento de pesquisas comuns de mercado, pela criação de consórcios de exportação, atendimento a grandes clientes pela ampliação de escala, redução de rivalidade predatória pela produção de itens complementares com maior  especialização  em cada uma das empresas participantes, mais um grande leque de produtos no cluster como um todo. Seria necessário por parte dos gestores locais reconhecer as vantagens em termos de receitas e melhorias sociais para desenvolver projetos de incentivo à articulação cooperativa das empresas e de agentes coordenadores do processo, consideradas, evidentemente, as limitações de políticas públicas.


 


Mas, repito, sem a adesão dos envolvidos, dos empresários, de nada adianta ficar repetindo no papel as vantagens de ações conjuntas, assim como de pouco adianta organizar missões de visita aos distritos industriais italianos e de outros países ou trazer representantes daquelas localidades para proferir palestras sobre os benefícios das experiências bem sucedidas. Também será de pouca utilidade a adesão condicionada a resultados imediatos. Trata-se de processo e como tal exige tempo e não admite voltas, sob pena de se perder ganhos até então acumulados.


 


Pela quantidade - cerca de 500 fabricantes -, os plásticos poderiam inaugurar os clusters na região?


 


Maria Carolina -- No diagnóstico do Proder foi apontado que o setor plástico constitui aglomerado que poderia explorar as vantagens de ações conjuntas. Foram apontados  os pontos favoráveis ao desenvolvimento de uma aglomeração com características de um cluster que pouco tem a ver com um conjunto de empresas do mesmo segmento em uma mesma rua, por exemplo. O fundamental é a articulação cooperativa, um saber-fazer coletivo gerador de  vantagens coletivas, a divisão de trabalho entre as empresas, a constituição de uma massa crítica, a disposição em interagir, o sentimento de pertencer ao local, as relações informais para além das empresas, a presença de um aparato institucional, a disponibilidade de centros de serviços coletivos de apoio, a presença de órgãos financiadores e, entre outros requisitos, a decisão de cooperar. No ABC, vários desses requisitos  são encontrados, entre os quais o saber-fazer, algumas instituições que favorecem a integração dos diferentes agentes sociais e uma massa crítica considerável em diversos níveis. Mas, como ponto fraco decisivo, há a falta de tradição ou, mais grave, a resistência em investir em ações conjuntas e, certamente, esse ponto compromete os positivos, pois os bloqueia. 


 


Aliás, a falta de desenvolvimento conjunto das três principais cadeias do ABC é tradição histórica. Moveleiros sempre competiram entre si e até esqueceram de produzir para concorrer também no varejo, autopeças sempre ficaram subjugadas às automobilísticas e os petroquímicos-plásticos sempre jogaram o jogo possível de um setor dependente de matéria-prima estatal. Esse foi o ônus de uma região que teve como bônus ser o berço da industrialização brasileira?


 


Maria Carolina -- Não há relação entre ser o berço da industrialização brasileira e a falta de cooperação. Ao contrário, o compartilhamento de uma história comum de conquistas consideráveis que só foram possíveis graças à concentração e acumulação de conhecimentos e experiências, muitas coletivas, poderia favorecer a cooperação e penso que em certos momentos já foi maior. O que pode ter deteriorado ou reprimido o desenvolvimento da cooperação foi o acirramento da concorrência, a rivalidade disputando o seletivo espaço das grandes montadoras. Com maior poder de negociação, o setor automotivo aguçou a pressão concorrencial entre fornecedores. Ser fornecedor de uma grande montadora, assim como ser seu funcionário, era até há algumas décadas motivo de grande orgulho e passaporte quase que garantido para a estabilidade.


 


No caso de móveis, uma possível causa para a não cooperação é a concorrência em produtos semelhantes, pela ausência de especialização e desenvolvimento de capacitação em design, cuja aplicação facilitaria a diferenciação entre empresas e reduziria a concorrência. Além disso, multiplicaram-se as empresas formadas por ex-funcionários, situação nada favorável a um ambiente de confiança. A falta de diferenciação e de capacidade de inovar induz ao efeito rebanho, que faz com que uma ação bem-sucedida seja rapidamente copiada de maneira tal a diluir as vantagens e a rentabilidade setorial como um todo. Esse processo explica, ao menos em parte, o deslocamento quase total da manufatura para a revenda e a perda de competitividade. O setor foi prejudicado como um todo de maneira tal que a recuperação, além de demorada, terá um custo muito alto. Só valerá a pena se desta vez for marcada pela inovação e diferenciação, de forma a estimular a cooperação interna e tornar o setor mais competitivo com outros pólos.


 


A senhora metaforizou no estudo da Unicamp que o Grande ABC se destacava em três pês: pioneirismo, proximidade (dos maiores mercados consumidores) e pré-disposição em empreender. Pioneirismo, como vimos acima, não foi algo tão agregador. A proximidade já não é forte vantagem locacional devido aos novos pólos que surgem com a descentralização industrial, inclusive do próprio setor automobilístico que deu fama ao ABC. E pré-disposição, ao que parece, é o que mais falta, dadas as ações práticas que caminham a passos lentos. Não estaríamos mais próximos de uma trinca de is: inertes, infelizes e irrecuperáveis?


 


Maria Carolina -- Não concordo que o ABC esteja inerte, infeliz e irrecuperável.  Os pês mencionados fazem parte da história e da tradição da região e, como tal, não podem ser eliminados. Devem ser valorizados e os gargalos que os limitam devem ser alargados. Quanto aos is, se de fato estivessem valendo, uma revista como LivreMercado não teria sobrevivido com tanto vigor durante tantos anos e não seria como é -- quase que único exemplo de revista regional com tanto poder de contribuição para o debate dos problemas locais e que, mesmo tendo às vezes linguagem forte, é respeitada e conseguiu desdobrar-se em duas, estendendo-se para o Interior do Estado. Veja que regiões às quais LM se refere às vezes como se tivesse uma pontinha de inveja, pela estrutura diversificada que apresentam, como se isso fosse resultado de um projeto articulado que falta ao ABC, não têm um veículo de comunicação como a revista, não têm fóruns de debates como os da região e enfrentam problemas sociais tão ou mais graves que os do ABC, mesmo com receitas substancialmente superiores.


 


O irrecuperável também não cabe. Apesar de toda a crise, a região mostra capacidade de resistência que pode se transformar em recuperação. Penso que o amor à região faz com que sejam ressaltados os pontos fracos visando sempre sua melhoria constante. Não são valorizadas as pequenas conquistas como se isso fosse representar fator de acomodação. Cobrança por melhorias contínuas e valorização dos pontos positivos devem andar juntos. Sintetizando, o mérito do diagnóstico do Proder foi apontar algumas potencialidades do ABC, não apenas as evidentes e notórias -- carentes também de ações conjuntas coletivas e políticas públicas -- mas principalmente aquelas que a própria região desconhecia.


 


No que toca aos plásticos, não era objetivo do Proder atingir as debilidades internas do setor ou das empresas nem apontar os atrasos nos âmbitos tecnológico e administrativo -- alvos de um estudo setorial mais elaborado e mais completo. A meu ver, o Proder logrou sucesso ao revelar uma aglomeração de empresas atuantes no mesmo setor, capazes de explorar as complementaridades existentes. As ações em desenvolvimento mostram que alguns empresários e algumas instituições pretendem tirar proveito dessa descoberta. Outras questões levantadas não podem e não devem ser marginalizadas. É necessário novamente enfatizar que muitas são dependentes de outras instâncias. Questões do tipo modernização das máquinas, despreparo dos empresários locais frente à globalização e estratégias empresariais defensivas para obtenção e preservação de mercados devem ser discutidas no âmbito dos governos federais e estaduais em articulação com os governos locais. A discussão deve estar baseada em um estudo de competitividade setorial profundo e comprometido a servir como instrumento de política industrial específica às empresas e aos trabalhadores do setor.


 


Governos locais possuem alguns meios para contrapesar os impactos deletérios das aberturas comercial e financeira,  mas os esforços podem ser anulados mediante mudanças repentinas na política macroeconômica. Daí a intenção do Proder de atuar por meio de ações que, mesmo de forma parcial, independem das decisões em outra instâncias. O fomento a atitudes coletivas e cooperativas entre empresários tinha esse pressuposto. Se as ações não estão sendo desenvolvidas como seria desejado ou esperado, há que se estudar com mais propriedade quais os empecilhos. Cooperar para concorrer só faz algum sentido caso possa ser inserido na lógica capitalista de acumulação. Não haverá cooperação se não houver maiores perspectivas de lucros advindos desse gênero de atuação empresarial. É necessário saber, portanto, quais as reais dificuldades e necessidades dos empresários para que possam agir de forma cooperada e abranger número maior de empresas e trabalhadores.


 


Nas proposições para reativar o brilho do ABC, a Unicamp é recorrente em sugerir ações que juntem empresas, entidades e universidades. Nesse tripé, a região está manca sobretudo no quesito universidade, justamente o pilar que recicla mais rapidamente informações e monta pesquisas, oferece assessoria e desenvolve cenários de tecnologias e de mercados nos próximos anos. Tanto assim que precisamos nos socorrer da inteligência da Unicamp para o Diagnóstico da Competitividade. Não lhe parece que, enquanto o ABC continuar sem um forte complexo acadêmico e de pesquisas verdadeiramente vocacionado para a região estaremos sempre no vácuo dos avanços dos outros?


 


Maria Carolina -- Não, até porque a distância não é tão grande que impeça o contato proveitoso entre Campinas e ABC. O fato de a Unicamp ter feito o diagnóstico não foi por falta de capacidade das instituições de ensino locais, mas  porque integramos, assim como USP e Unesp,  o convênio com o Sebrae para o desenvolvimento do Proder. Depois do ABC,  fizemos diagnósticos em cerca de 60 municípios. O ABC conta com renomadas faculdades, como a FEI, com longa tradição de formação de profissionais com o perfil requerido pelo parque produtivo. Além disso, a USP não está tão longe, não é mesmo?


Leia mais matérias desta seção: Entrevista Especial

Total de 197 matérias | Página 1

10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira
29/04/2024 Veja as respostas do vereador Colombo
26/04/2024 Veja as respostas do vereador Awada
03/04/2024 Últimas respostas que Bigucci jamais daria
28/03/2024 Veja outras três respostas que Bigucci jamais daria
26/03/2024 Quatro novas respostas que Bigucci jamais daria
22/03/2024 Mais três respostas que Bigucci jamais daria
21/03/2024 Terceira resposta que Bigucci jamais daria
20/03/2024 Segunda resposta que Bigucci jamais daria
19/03/2024 Primeira resposta que Bigucci jamais daria
15/03/2024 Veja todas as respostas do vereador Ricardo Alvarez
28/02/2024 Veja todas a respostas do candidato Eduardo Leite
23/02/2024 Veja todas as respostas do regionalista Fausto Cestari
08/02/2024 Veja as 13 respostas do Coronel Edson Sardano
10/04/2023 44 meses depois, decidimos responder por Paulinho Serra
10/06/2021 Conheça todas as respostas omitidas por Paulinho Serra (6)
09/06/2021 Conheça todas as respostas omitidas por Paulinho Serra (5)
08/06/2021 Conheça todas as respostas omitidas por Paulinho Serra (4)
07/06/2021 Conheça todas as respostas omitidas por Paulinho Serra (3)