As regiões metropolitanas precisam urgentemente de um arranjo institucional diferenciado, mas como o direcionamento do tema no nível constitucional bateria em uma muralha de oposição política, seria melhor trilhar o caminho alternativo de uma regulamentação infraconstitucional. Essa é uma das conclusões de José Eli da Veiga, professor-titular da FEA-USP (Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo) cujo campo de interesse é majoritariamente voltado a assuntos metropolitanos, pacto federativo e à dicotomia entre o Brasil urbano e rural.
Com experiência acadêmica e na administração pública na condição de doutorado em economia pela Universidade de Paris e ex-secretário do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (2001-2002), Eli da Veiga é do tipo que não foge de uma boa briga. Isso ficou claro no desligamento do cargo de diretor-executivo da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) por discordar publicamente dos métodos de aferição do desemprego utilizados pela instituição.
O professor coloca a veracidade da PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego) em xeque ao sustentar que os dados sobre desemprego aberto e oculto (pelo trabalho precário ou desalento) deveriam ser segregados e divulgados separadamente em vez de tratados indiscriminadamente na composição de uma taxa que, a seu ver, distorce a realidade para pior.
A contundência intelectual simbolizada no episódio da Fundação Seade também se faz presente em vários trechos desta entrevista a LM, como quando o professor ecoa opinião de terceiros para sustentar que o Rodoanel pode representar um tiro n’água, referindo-se ao projeto da megaobra que pretende desafogar a enfartada Região Metropolitana com o deslocamento de caminhões para uma via expressa orbital.
Ou quando ele entende como antidemocrática a pergunta sobre a lógica de se manter estruturas públicas administrativas exageradas em regiões que não dispõem sequer de livraria ou agência bancária — uma referência à farra de multiplicação de prefeituras e câmaras de vereadores no Brasil após a Constituição de 1988.
Mas os surtos de reducionismo interpretativo, contradições (como na resposta em que desqualifica a governança metropolitana proposta pelo sociólogo francês Alain Touraine logo após reconhecer a situação caótica da Grande São Paulo) e a predisposição de desferir ataques político-partidários com referências diretas e veladas ao governo federal não devem macular o brilho analítico do professor cuja respeitabilidade está ancorada no fato de mergulhar fundo na realidade urbana, metropolitana e rural do País.
A Grande São Paulo reúne parcela significativa da produção e da riqueza nacional ao mesmo tempo em que concentra doses maciças de miséria e privação material resultantes da explosão demográfica dos anos 50 e 60 conjugada à histórica falta de planejamento urbano. O senhor concorda com o conceito defendido por LIVRE MERCADO de que é preciso dar tratamento constitucional diferenciado à Região Metropolitana de São Paulo e outras aglomerações urbanas desconfiguradas por décadas de imprevidência e inchaço populacional?
José Eli da Veiga — Concordo que as aglomerações metropolitanas necessitam com urgência de um arranjo institucional diferenciado. Não creio, contudo, que isto seja equivalente a um tratamento constitucional diferenciado. É possível que uma boa regulamentação infraconstitucional da intermunicipalidade, isto é, das formas de cooperação intermunicipal, possa lançar as bases das imprescindíveis novas instituições metropolitanas, no âmbito de uma abordagem microrregional que poderá servir também a outros tipos de associações, pactos ou agências de desenvolvimento local. Ou seja, suponho que uma boa regulamentação genérica dessa intermunicipalidade possa responder tanto às necessidades mais urgentes das aglomerações metropolitanas quanto às necessidades de promoção do desenvolvimento de outros tipos de microrregiões, sejam urbanas, ambivalentes ou predominantemente rurais.
Como se processaria, na prática, essa regulamentação infraconstitucional da intermunicipalidade? O modelo representaria uma evolução em relação aos consórcios de prefeitos existentes e que, como sabemos, têm alcance e resultados extremamente limitados exatamente por trafegarem à margem constitucional?
José Eli da Veiga — Os atuais consórcios são assim tão limitados justamente porque o dispositivo constitucional que os previu não teve, até o momento, a devida regulamentação. Mas a Casa Civil acaba de enviar o projeto ao Congresso, depois de muitos anos de preparação.
Como o senhor avalia a criação de uma quarta instância institucional no Brasil, além de União, Estados e municípios, como estratégia para colocar ordem no caos das regiões metropolitanas?
José Eli da Veiga — É perigoso falar em quarta instância porque não se trata, a meu ver, de complicar ainda mais nosso arranjo federativo tripartite. Essa idéia — que até tem sido chamada de quarto poder — pode inviabilizar a solução de uma outra forma de cooperação intermunicipal, pois haverá imensa oposição política à tese de um novo pacto federativo que tenha quatro entes em vez de três.
E a criação de um fundo para os municípios metropolitanos com recursos do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) — uma espécie de variante do FPM (Fundo de Participação dos Municípios), que beneficia as pequenas cidades — sugerida por Marcos Mendes, membro do Instituto Fernand Braudel de Economia e consultor do Senado Federal?
José Eli da Veiga — A idéia é boa, mas será desastrosa a criação de mais um fundo mediante novo remendo a uma legislação irracional e obsoleta. É preciso fazer uma reforma fiscal que redesenhe o próprio FPM, de forma a impedir que a maior parte dos municípios seja prejudicada pelo favorecimento dos extremos: as Capitais e os minúsculos e artificiais municípios recentemente criados justamente para captar fração desproporcional dos recursos repartidos. Além disso, não acho que a solução esteja em impor um único esquema nacional de distribuição dos recursos do ICMS. Acho fundamental uma flexibilidade que permita e incentive cada Estado a encontrar as formas mais adequadas às suas peculiaridades para promover essa repartição. Seria um completo absurdo imaginar que o esquema de devolução de parte dos recursos do ICMS pudesse ser idêntico no Amazonas, em Alagoas ou em São Paulo.
Em artigo recente o senhor observou que a Região Metropolitana de São Paulo perde tônus produtivo e empregos industriais entre outras razões porque padece de deseconomias de escala. Quais são os principais focos de deseconomias que afetam a metrópole e quais seriam as possíveis intervenções para virar o placar no jogo da competitividade regional?
José Eli da Veiga — Não se trata de deseconomias de escala, e sim de deseconomias de aglomeração. Houve um tempo em que as eventuais vantagens oferecidas pelas cidades do Interior paulista não chegavam a compensar suas desvantagens, principalmente em termos de infra-estrutura, de custos de transporte, de disponibilidade de recursos humanos bem treinados e de todos os demais fatores ligados à qualidade de vida dos funcionários, a começar pelos executivos e dirigentes. Por isso mesmo, as óbvias desvantagens locacionais da maior aglomeração metropolitana do País não chegavam a incentivar a interiorização das empresas. Todavia, essas circunstâncias mudaram bastante durante a última década do século XX. Várias aglomerações e cidades médias interioranas são hoje extremamente atrativas para a localização de indústrias. Principalmente de indústrias que permanecem trabalho-intensivas. Então, há uma evidente tendência a um forte predomínio do setor terciário na RMSP, mesclado à retenção de indústrias capital-intensivas. Disto resultam as medonhas e crescentes taxas de desemprego na RMSP, problema que não será facilmente resolvido mesmo que surja o tal espetáculo do crescimento completado por políticas do tipo primeiro emprego e quejandos. No caso específico da RMSP, os principais resultados das deseconomias de aglomeração são as galopantes taxas de desemprego, exclusão, marginalidade e violência.
O senhor enxerga o Rodoanel como instrumento importante para eliminar ou minimizar o impacto negativo dos altos custos logísticos?
José Eli da Veiga — Acho que o Rodoanel é uma obra absolutamente necessária, mas que demorou muito para começar e está demorando muito para ser realizada. Por isso, é muito difícil avaliar neste momento quais serão os benefícios para a RMSP. Tenho colegas muito competentes na matéria que estão convencidos de que o Rodoanel será um tiro n’água. Mas acho que as evidências ainda são muito escassas para que se possa formar uma opinião conclusiva.
O senhor é um crítico ferrenho dos critérios utilizados para definição de áreas urbanas e rurais no Brasil. No País, considera-se área urbana toda sede de município (cidade) ou distrito (vila) sejam quais forem suas características econômicas ou demográficas. Desse modo, oficialmente rincões pouco povoados pelo Brasil afora são considerados tão urbanos quanto grandes cidades reconhecidamente complexas e caóticas no entorno das Capitais. Onde está a origem desse desvio interpretativo? Critérios políticos falam mais alto do que parâmetros técnicos no Brasil? Se não se pode chamar de verdadeira uma cidade que não tem uma livraria, é justo que acolha Câmara de Vereadores e Prefeitura?
José Eli da Veiga — Quem estuda a história das instituições logo se convence que uma das suas principais leis é a chamada dependência do caminho (path dependence). Em 1938, no auge da ditadura do Estado Novo, Getúlio Vargas baixou decreto-lei que definiu toda sede de município como cidade. E nesses 66 anos várias gerações de brasileiros se acostumaram a essa instituição, perdendo qualquer capacidade de discernir a hierarquia territorial do País, pois nem suspeitam quais poderiam ser as diferenças entre uma cidade, uma vila e um simples lugar. De fato, há anos venho fazendo ferrenhas críticas à irracionalidade dessa instituição, tema do livro Cidades Imaginárias (Ed. Autores Associados, 2002). Todavia, acho que não decorre dessas críticas a tese — a meu ver antidemocrática — de que um município que não é ou abrigue uma cidade também não deve ter Câmara Municipal e Prefeitura. Os 4,5 mil municípios rurais do Brasil devem ter, sim senhor, Câmara e Prefeitura. O que é discutível, a meu ver, é o tamanho e os gastos dessas duas entidades de poder político. Já foram introduzidas algumas emendas na Constituição para coibir muitos abusos, mas acho que ainda é necessário ir mais fundo na mudança da legislação para moralizar os gastos públicos, principalmente com vereadores.
Quais referenciais poderiam ser adotados para melhor compreensão do verdadeiro grau de urbanização dos territórios?
José Eli da Veiga — O principal é que as localidades sejam classificadas simultaneamente por critérios estruturais e funcionais, e não administrativo, como é o que vigora no Brasil por força do decreto-lei 311/38. Critérios estruturais adotados em países mais avançados costumam ser de dois tipos fundamentais: os demográficos, como por exemplo o número de habitantes ou de eleitores e a densidade populacional, e os de localização, como por exemplo o grau de adjacência às aglomerações. Critérios funcionais se referem em geral à existência de transporte coletivo urbano, equipamentos educacionais, de saúde, culturais etc.
Depois dessa classificação das localidades, mediante essa mescla de critérios estruturais e funcionais, torna-se necessária uma abordagem microrregional que faça a distinção entre as microrregiões mais urbanizadas (que abrigam aglomerações), mais rurais (que não dispõem sequer de um verdadeiro centro urbano) e as intermediárias ou ambivalentes, que podem ser chamadas de significativamente urbanas ou relativamente rurais. Pelos meus cálculos, o Brasil tem 63 microrregiões marcadas por aglomerações, 388 predominantemente rurais e 107 intermediárias. Em 2000, o censo demográfico mostrou que a população se distribuía nas seguintes proporções entre esses três tipos de microrregiões: 49% nas mais urbanizadas, 31% nas rurais e 20% nas intermediárias ou ambivalentes.
Recentemente o sociólogo francês Alain Touraine afirmou que a reestruturação das grandes cidades brasileiras, inclusive com recursos vindos da taxação dos muito ricos e que nunca pagaram imposto no Brasil, deveria ser o projeto social brasileiro de urgência. Disse ainda que a reestruturação das metrópoles é uma ação 10 vezes mais premente do que a reforma agrária, porque atingiria massa populacional muito maior. O senhor concorda?
José Eli da Veiga — É uma comparação sem sentido. O Brasil nunca fez, não está fazendo e nem fará reforma agrária. Mas sobram no Brasil algo como 500 mil famílias dispostas a correr o risco de ganhar suas vidas como novos sitiantes. Para atendê-las, são necessários menos de 3% da área total dos estabelecimentos agrícolas. Ou seja, 10 milhões dos 350 milhões de hectares recenseados em 1995/6. Isso significaria tirar da miséria cerca de dois milhões de brasileiros. Não com paliativas bolsas, mas mediante acesso à terra capaz de gerar mais de um milhão de ocupações. E nada pode estar mais próximo do ideário petista primordial do que um programa de assentamentos que resgate quem escapou da feroz avalanche que atirou milhões de famílias rurais em sórdidos purgatórios que cercam metrópoles, aglomerações e centros urbanos.
Pergunto, então: usar 3% da área total dos estabelecimentos agrícolas seria fazer essa tal reforma agrária tão adorada pelos movimentos de sem-terra e tão repudiada por regressistas de todos os quilates? Seria isto uma grave ameaça ao vigoroso agronegócio? Claro que não. A operação pode ser realizada sem sérios traumas, desde que o sistema fundiário (Incra e institutos estaduais congêneres) consiga recuperar a capacidade de assentamento que chegou a ter na segunda metade dos 1990s. E o fato dessas 500 mil famílias se tornarem sitiantes não quer dizer que a concentradérrima estrutura agrária brasileira terá sido reformada. Transferir 3% da área total para a agricultura familiar nem de longe chega a parecer reforma, por mais que esta seja deusa para uns e pura encarnação do diabo para outros. O grande perigo é que aconteça com a tal reestruturação das cidades brasileiras — defendida pelo brilhante sociólogo Alain Touraine — o que aconteceu com a necessária reestruturação fundiária dos restantes 99% do território brasileiro: nada.
Total de 197 matérias | Página 1
10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira