Caso Celso Daniel

Um delegado que confirma a
verdade de crime de ocasião

DANIEL LIMA - 19/09/2016

Sempre digo sem empáfia -- embora pareça o contrário porque não é todo mundo que encara o politicamente incorreto  -- que sou o único jornalista brasileiro especializado no caso Celso Daniel. Mas sempre estou preparado a acrescentar eventuais novas informações àquela morte de enredo manipulado por gente interessada em melar o jogo da realidade de que se tratou de acidente de percurso que custou caro a Santo André, à região e possivelmente aliviou a barra da própria vítima sobre os desdobramentos da história petista. Mas esse ponto, do que teria ocorrido com Celso Daniel se vivo estivesse e participasse ativamente das gestões petistas, é assunto para análise que prometi e estou preparando com vagar.

Hoje vou me penitenciar – afinal, é impossível saber tudo – com a reprodução relativamente demorada de uma entrevista publicada no site de língua portuguesa do jornal espanhol El País, em abril último.

Sinto inveja da jornalista daquela publicação porque poderia eu ter feito o trabalho jornalístico há muito tempo. Entretanto, como os termos da entrevista confirmam amplamente tudo o que escrevi sobre o assassinato do prefeito, o pecadilho que cometi não pode ser contabilizado como complemento importante. Aliás, ao reproduzir a entrevista abaixo, o faço também para reiterar os termos informativos e analíticos que adotei durante todo o caso Celso Daniel, sempre com base no discernimento de declarações de terceiros que atuaram diretamente nas investigações.

Confirmação de tudo

Entrevistar alguém que tenha informações tão substantivas sobre o caso Celso Daniel – e não tenha caído na raia miúda de proselitismo fantasmagórico da força-tarefa do Ministério Público Estadual plantada em Santo André para dar versão completamente diferente dos fatos apurados pela Polícia Civil e pela Polícia Federal – é sempre oportuno.  Mesmo que essa versão seja 14 anos após o assassinato.

A vantagem dessa operação informativa do El País é que não há maiores riscos de discriminação da própria Imprensa, como sofri por me alinhar com convicção e provas à realidade de que Celso Daniel foi vítima do estado de insolvência da segurança pública de uma metrópole então industrializadora de sequestros.

São poucos os veículos de comunicação – dos principais do País, nenhum se digna a relatar a verdade sobre o crime que fez de Celso Daniel perda administrativa irreparável na Província do Grande ABC – a abrirem espaço a quem não comunga das bobagens de crime de encomenda.

Sem mais, reproduzo na íntegra uma batelada de informações que em nada me surpreendem. Não há nenhuma abordagem do entrevistado que se torne novidade a quem levantou o caso e escreveu mais de dois milhões de caracteres sobre as investigações.

Para a maioria dos leitores, entretanto, tenho certeza de que se trata de imersão importante nos acontecimentos. Quem terminar a leitura da entrevista da jornalista Carla Jiménez, do El País, conta com mais de 100 opções deste jornalista nesta revista digital que esmiúçam todos os pontos da morte de Celso Daniel.

A entrevista do El País:

Marcos Carneiro Lima, que trabalhou na Divisão Antissequestro entre os anos 90 e 2000, trabalhou também na Corregedoria da Polícia e no Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), depois como delegado geral em São Paulo, comandando a Polícia Civil. Ele conhece muito bem um personagem central do assassinato de Celso Daniel, prefeito de Santo André, que volta ao noticiário pelas mãos da Lava Jato. Monstro, líder da quadrilha que sequestrou, torturou e matou Daniel, era objeto de estudo de Lima há muito tempo, quando o crime aconteceu. Atualmente dando aulas na Academia de Polícia, o delegado, agora aposentado, diz que se incomoda com as ilações políticas sobre o caso, que coincidem com períodos eleitorais.

Pergunta. Qual é sua ligação com o caso do assassinato de Celso Daniel em 2002?

Resposta. Em 2000 eu era da delegacia Anti-Sequestro em São Paulo (atual Divisão Anti-Sequestro -DAS), onde fiquei sete anos. Vimos uma quadrilha fazendo sequestros de forma diferenciada, porque a vítima ficava pouco tempo no cativeiro, lhe roubavam pouco dinheiro, e muitas vezes o crime nem era denunciado à Polícia Civil. Descobrimos a partir do sequestro da esposa de um diretor do banco Itaú, que foi pega perto da praça Panamericana [Alto da Lapa, zona oeste de São Paulo, bairro nobre da capital paulista]. Ela trabalhava em uma ONG na favela Pantanal, na divisa com Diadema. Descobrimos ali que havia um chefe do crime, o Monstro (Ivan Rodrigues da Silva), o mesmo que liderou a quadrilha que matou Celso Daniel. E começamos a estudar seu modus operandi.

Pergunta. Haviam muitos sequestros nessa época?

Resposta. Em 2000 ainda haviam poucos, eras 25 ou 30 ocorrências no Estado de São Paulo. Mas a partir de 2001 estouraram os sequestros. Mais de 200, fora os que não eram notificados. E as vítimas passaram a ser agredidas. Houve uma cartilha escrita no antigo presídio do Carandiru pelos sequestradores do empresário Abílio Diniz (sequestrado em 1989). Eram bandidos ligados ao Movimento Izquierda Revolucionaria (MIR, guerrilha que atuou no Chile na época da ditadura). Essa cartilha previa que a vítima fosse preservada. Algumas quadrilhas usaram bem essa orientação. Mas criminosos violentos agrediam muito e até cortavam pedaço de orelha.

Pergunta. Onde a morte de Celso Daniel se encaixa?

Resposta. Saindo de 2001, ano crítico em número de sequestros, chegou janeiro de 2002. A quadrilha do Monstro sai da região deles e vai atrás de uma empresário do Ceasa (centro de abastecimento hortifrúti), perto da praça Panamericana. Ele estava numa Dodge de suspensão alta. Os sequestradores estavam com um Santana. O empresário que eles perseguiam conseguiu fugir. Quando estavam voltando para a região de Diadema, trombam com um Mitsubishi importado, com Celso Daniel de passageiro, e o fazem parar.

Pergunta. Por que Sombra não ofereceu resistência se era carro blindado?

Resposta. Eles tinham armamento caríssimo, fuzis, e ainda que fosse um carro blindado, não havia como lidar com esse tipo de arma cara. Para os sequestradores, só interessava a vítima, ou seja, o Daniel, não o Sombra que parecia ser o motorista.

Pergunta. Mas por que não levaram o Sombra?

Resposta. Era um padrão, que havíamos detectado desde o sequestro da mulher do diretor do Itaú. O modus operandi era ir atrás de vítimas que andavam em carros importados. Em alguns casos só pegavam o carro, quando descobriam que quem estava dentro era apenas o motorista do endinheirado, ou só levavam a vítima, caso ele estivesse com motorista, e extorquiam 10.000, ou 20.000 reais. Nessa época eu saí da DAS e fui para a Corregedoria e continuava monitorando os sequestros.

Pergunta. Por que mataram o Celso Daniel se não era padrão matar a vítima?

Resposta. Eles não sabiam que era o Celso Daniel. Como já eram experientes, e planejavam pegar o empresário do Ceasa, que fugiu naquela noite, tinham já um local para usar de cativeiro, uma chácara na região de Juquitiba, na BR 116 [onde Daniel foi morto]. Tiveram de ficar ali porque naquele momento havia polícia na favela do Pantanal. Quando o Monstro viu a repercussão do sequestro na mídia, mandou liberar o prefeito. “Dá linha no cara”, pediu para seus comparsas, mas foi mal entendido por um integrante, que era o menor de idade, e esse menor matou o Celso. Essa foi a tragédia.

Pergunta. E então, como nascem as teses de crime político organizado?

Resposta. Quando acontece o crime, há o impacto de uma coincidência. Daniel foi sequestrado no dia 18 de janeiro, e morto dois dias depois. No dia 17, ou seja, um dia antes do prefeito ser pego, dois presos de uma penitenciária de Guarulhos, entre eles, Dionísio Severo, saíram de helicóptero do presídio numa fuga espetacular. Eles haviam sequestrado o funcionário de um banco. Severo era um ladrão que roubava, mas que começou a fazer sequestros. A primeira vez que o prendi, em 1998, ele me disse que ia fugir. Tinha dinheiro guardado, era um sujeito articulado. Tanto que o prendi no litoral, Praia Grande, onde tinha até um programa de rádio. Mas ele estava articulando uma facção de contraponto ao Primeiro Comando da Capital, e estava jurado de morte. Por isso ele fugiu, com ajuda do filho dele, que deveria tê-lo resgatado uma semana antes, mas bebeu demais e perdeu o horário. Ele não tinha nada a ver com o sequestro. E precipitaram essa relação, o que foi um erro crasso da polícia, trabalhando teorias como se fossem verdadeiras.

Pergunta. Mas esse tal Severo teria relação com o sequestro de Celso Daniel?

Resposta. Quando ele foi preso, Severo diz que sabia de muita coisa sobre o caso de Celso Daniel e que só responderia em juízo. Mas diz isso para ganhar tempo. Com medo do PCC. Daí se comete um erro crasso do sistema Judiciário, de deixá-lo detido num lugar onde haviam outros presos. Uma pessoa de cadeira de rodas se levanta e o mata. Era um preso ligado ao PCC.

Pergunta. Essa teoria de que o crime foi cometido a mando de alguém nasce em 2002?

Resposta. A quadrilha que sequestrou Celso confessou o crime e sua participação na época, era ano de eleição. O PT pediu ao presidente Fernando Henrique Cardoso para que a Polícia Federal acompanhasse a investigação. E foi assim, distribuíram o caso e tudo foi resolvido. Mas veio a eleição e o “Sapo barbudo” ganhou. E o sequestro de Daniel volta a ser questionado. Com Lula no Governo, vem a teoria de que o Sombra seria o mandante do crime [Sombra chegou a ser preso mas foi liberado por um habeas corpus que chegou até o Supremo]. O Sombra, na verdade, era arrecadador de Celso Daniel. Era o cara que passava na empresa de ônibus para arrecadar dinheiro. Aí está o crime. Quando os irmãos de Celso Daniel se manifestam todo mundo estranha. Eles não se falavam. E aí vieram com a tese de crime feito a mando de alguém. E associaram varias mortes com a de Celso Daniel. Ainda que investigadores tenham falado perante Comissões Parlamentares de Inquérito que se tratava de um crime comum.

Pergunta. Mas efetivamente morreram testemunhas deste caso.

Resposta. Aí entra a teoria de seis graus de separação. Eu conheço o governador de São Paulo. O governador conhece o presidente da República. Que por sua vez conhece Barack Obama. Sou próximo de Obama? Entre a criminalidade e bandidos haverá sempre ligações muito próximas.

Pergunta. Mas morreram testemunhas...

Resposta. O Dionísio, que falou que sabia de tudo para fugir do PCC e foi morto. Um garçom que viu Celso, Ronan [Pinto] e Klieger [ex-secretário dos Transportes de Santo André] conversando. Voltou para casa, dois suspeitos foram tentar assaltar. O ladrão deu pontapé na garupa. Ele bateu com a cabeça e morreu. Nem desenho do Chaves... A testemunha que viu esse fato foi morto. Era um ex-monitor da Febem jurado de morte por maus tratos. Houve um investigador de polícia do Denarc. Ele tinha um grampo num celular da cadeia, celular este que foi usado uma vez por Dionísio.  Quem matou o investigador? Ele voltava de uma festa. Quando chegou no prédio, havia dois caras que se apresentaram como policiais federais. Mas eram bandidos, queriam dinheiro e arma. Prenderam ele e a namorada no apartamento. Ele se desvencilhou. Foi atrás de dois. Mas ele não sabia que havia um terceiro dando cobertura e foi alvejado. Crime de mando com alguém correndo atrás do algoz?

Pergunta. Mas o médico legista [perito criminal Carlos Delmonte Printes, que examinou o corpo de Celso Daniel, que morreu em circunstâncias que foram questionadas]?

Resposta. Foi suicídio. Estava com depressão porque havia perdido o filho. Fez todo esquema, era um homem muito inteligente. Conhecia o coquetel de remédios. Tive aula com ele na academia de Polícia. Todas as mortes que ocorreram no entorno são muito bem explicadas.

Pergunta. Se era um sequestro comum, por que ele foi morto?

Resposta. Uma semana, ou dez dias antes do Celso Daniel, uma travesti foi sequestrada num carro importado perto da região da favela, onde ela fazia ponto ali perto. Avisou que não tinha dinheiro. Gastou com drogas, mas que iria recuperar e levantaria o prazo. Mas ficaram com medo, executaram e jogaram corpo numa estrada, a mesma coisa que Celso Daniel.

Pergunta. Você acha que a leitura de um crime político então é por conveniência?

Resposta. Exatamente. Houve uma comissão parlamentar, chamaram os presos que cometeram o crime, e eles falaram a verdade. O que mais querem? O assunto aparece sempre próximo a eleição. Mandaram desarquivar inquérito para Elizabeth Sato [em 2005]. Para provar que foi crime de mando. Fez toda investigação e disse que foi sequestro seguido de morte. Desenterraram Celso Daniel de uma forma covarde. Para colocar a pecha de que é partido de bandidos.

Pergunta. Mas isto lembra o episódio do sequestro do empresário Abílio Diniz, em 1989, quando descobriram o cativeiro e os sequestradores apareceram com camisetas novas, com marcas de vinco inclusive, de campanha do PT.

Resposta. É isso mesmo. Para um crime de mando nunca se contrata um grupo de sequestradores. A polícia que acusa sabe que é assim. Se era para matar de cara, por que não mataram? E para o PT? Por que matar o coordenador e futuro ministro da Fazenda?



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