Política

Órfãos do Lulismo:
a esquerda sem rumo

MILTON SALDANHA - 28/04/2017

Conheci Lula quando ele iniciava no sindicalismo do ABC, como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, em 1975. Eu chefiava a redação da Sucursal do ABC do Estadão, Jornal da Tarde e Agência Estado, com uma equipe de meia dúzia de repórteres. Logo as atitudes do “rapaz”, como a ele se referiam alguns altos executivos das montadoras de veículos, porque ninguém tinha decorado o nome, começaram a chamar atenção. Lembro-me, por exemplo, quando André Beer, então diretor de vendas da General Motors, no intervalo de uma entrevista sobre mercado, tomando cafezinho, comentou: “Esse rapaz está dando trabalho e começando a nos preocupar”.

Sem perceber, ele ligava minhas antenas: no dia seguinte, escalei uma repórter competente para acompanhar diariamente o setor sindical, principalmente os movimentos metalúrgicos. Numa equipe pequena, onde todos faziam de tudo, inclusive eu, dobrando função como repórter, era o único setor que entendi merecer um setorista em tempo integral. Muito em breve, era óbvio, o tal rapaz seria notícia. E fiquei curioso para conhecê-lo. 

A setorista não era exclusiva, todos entravam na cobertura sindical, principalmente nas greves.

Aposta no futuro 

Fiz isso por minha conta, não queria ser surpreendido, e sem nada discutir com a matriz, a qual me reportava. O irônico é que o Estadão era um jornal completamente refratário à cobertura sindical. Nossas matérias sobre o setor viravam notinhas de pé página, e muitas delas nem isso, eram simplesmente excluídas.  Mas a Agência Estado distribuía, resumidas, para mais de uma centena de jornais de todo o Brasil. O Jornal da Tarde, mesmo sendo do mesmo grupo, era mais aberto, com melhor aproveitamento das matérias.

Quando, de repente, em 1978, eclodiu a célebre greve da Scania, estopim da greve geral que se alastrou nos dias seguintes por todo o setor metalúrgico do ABC, ficou claro o acerto do meu critério: a Sucursal já tinha ótimas e confiáveis fontes nos sindicatos. E fontes, no jornalismo, são a chave mestra para tudo.

A grande greve obrigou o Estadão a rever sua política editorial para o sindicalismo. O assunto era manchete em todos os jornais, inclusive no próprio Estadão, e a cobertura ocupava várias páginas, além de editoriais nas seções de opinião. A repercussão era também internacional. A própria sucursal, a pedido da matriz, serviu de redação para um correspondente da revista Time, dos Estados Unidos, que contava com nossa ajuda.

Na sucursal, além da vasta cobertura diária, com toda a equipe envolvida 24 horas por dia, mais três repórteres de reforço que pedi a São Paulo, eu fazia um informe diário, exclusivamente interno para o jornal, onde apontava os rumos e tendências dos acontecimentos.

Começa fama de Lula 

Com a greve, do dia para a noite o nome de Lula pulou do restrito ambiente sindical local para o cenário nacional, com repercussões internacionais. É importante observar que havia ditadura e as greves estavam proibidas. O movimento, portanto, era um desafio ao regime. E não havia como reprimir: eles entravam normalmente nas fábricas, mas não ligavam as máquinas. A tática foi genial e surpreendeu a todos, principalmente aos patrões e ao governo. 

Deslumbrado pela fama, Lula se tornou insuportável. Denotava traços de arrogância que não tinha antes da greve, quando nos dava entrevistas com a simplicidade dos mortais, inclusive em botequins, sorvendo uma pinguinha. Creio que começou a brotar ali seu projeto pessoal, mas isso é mera hipótese.

Nas grandes assembleias dos metalúrgicos, no Estádio de Vila Euclides, Lula era um líder de massas impressionante. Dominava a multidão e tinha a rara capacidade de emocionar, fazer rir, chorar, tudo, e quando queria. Seus fluentes discursos exalavam sinceridade, tinham timming perfeito e não cansavam. 

Participando de um programa de entrevistas, na TV Cultura, deu um show que impressionou até os Mesquitas, da conservadora família dona do Estadão. No dia seguinte mandaram entrevistar Lula, com amplo espaço. Mas a tarefa foi confiada a um jornalista da matriz, conhecido como patronal, da confiança da direção do jornal.  

O tempo implacável 

Hoje, o ex-líder metalúrgico parece uma caricatura de si próprio. Na tribuna, não é nem sombra do que foi naqueles anos. Além da idade, que pesa, afinal ele era 40 anos mais novo, tem a perda da voz e agora entram os fatores do desgaste político e das suspeitas. 

Com uma vaidade que não fica nada a dever a do príncipe FHC, Lula mostrou completo desconhecimento da História numa fase em que resolveu se comparar a Getúlio Vargas. Só faltou o modesto rapaz achar que tinha também algo em comum com Deus.  

Decepção reduz apoio 

Para enquadrá-lo, não precisam nem investigações. Basta a contabilidade oficial do Instituto Lula: US$ 200 mil por palestra, pagas por empreiteiras corruptas, é um escândalo que dispensa comentários. Perguntem, como comparativo, se algum professor universitário da área científica, altamente qualificado, ganha isso por ano.  

É expressivo o número de intelectuais e artistas decepcionados, que romperam o apoio. Isso não pode ser confundido com virada ideológica. Não foram eles que mudaram e sim Lula, com suas inaceitáveis alianças, em nome do engodo da governabilidade. Depois, por exemplo, que foi em companhia de Haddad beijar a mão de Paulo Maluf,  na própria mansão do corrupto mor da República, não há estômago que aguente.

“Ah, mas a política é assim mesmo”, dizem os pragmáticos de sempre. Mentira, não é. Se existir compromisso real com o povo e não mistificação oportunista, não será assim. Caso contrário a conciliação entre eles será eterna, em contraste com o discurso eleitoral. Quem se junta a bandidos, bandido é. 

Voltando ao passado de Lula: o Brasil, sob a ditadura do general Ernesto Geisel, há muitos anos não via um líder com tal performance. 

Só comparável a Leonel Brizola, que eu vi e ouvi muitas vezes discursando.  Mas Lula era mais fluente e sabia administrar melhor o tempo, tinha percepção da hora de parar. Brizola sempre se alongava.

Não surpreende que Lula tenha chegado onde chegou. 

Votei nele e fui às ruas, como militante, nas duas eleições em que venceu para presidente. Ainda que sempre desconfiando que surfava num projeto pessoal e não ideológico, por sua falta de cultura e tradição na luta. Até sua primeira greve, tinha ignorado a existência da ditadura, instalada 14 anos antes. Atravessou aquele período nos bailinhos e tentando conquistar mulheres. A ideia de resistência política sequer passava por sua cabeça. Nunca foi amigo dos livros. Nunca foi de esquerda. Repetia chavões que ouviu de alguém, para simular cultura, como aquela cansativa afirmação de que a CLT era cópia da Carta del Lavoro, do Mussolini. Mas nem isso aprofundava, tudo nele era raso.  

As demais opções eleitorais eram desoladoras. Bem ou mal, existia ali, no PT ainda com a imagem do partido que poderia arrumar a casa, alguma esperança. O governo FHC vinha embalado em vasta corrupção, que hoje todos esquecem, e o PT se apresentava como a melhor alternativa, que faria as mudanças.   

O papel de Paulo Vidal 

Depois, com o tempo, descobri que o verdadeiro mentor do sindicalismo no ABC tinha sido Paulo Vidal, ligado ao Partidão, com quem Lula aprendeu. Mas nunca prestou tributo ao mestre. Não é do estilo dele admitir que aprendeu algo com alguém.

Lula ascendeu na política construindo o próprio mito e tendo por base um forte corporativismo de classe e não uma ideologia de esquerda. No começo, repudiava a política formal, dos partidos, e esnobava os estudantes e intelectuais que buscavam aproximação.  

Os metalúrgicos formavam a elite obreira do país, com os melhores salários, que souberam conquistar, e boas condições de trabalho. Os bandejões das fábricas, por exemplo, sempre ofereceram refeições de boa qualidade. Eles tinham também transporte coletivo confortável e pontual, sem precisar enfrentar os congestionados pontos de ônibus, nem caminhadas. 

Os demais trabalhadores, ganhando menos, tinham que levar suas próprias marmitas e amargavam todos os dias no transporte para gado. Como ainda acontece.

A visão obreira de Lula não contemplava este outro lado. Não ia além do bem organizado e forte corporativismo metalúrgico.  

Alianças com os patrões

Não será segredo para ninguém que algumas greves ocorreram em aliança secreta com os patrões, quando isso era bom para as duas partes, para pressionar o governo. Um bom exemplo foi quando as montadoras enfrentaram o governo civil-militar contra o CIP – Conselho Interministerial de Preços, que represava os reajustes dos preços dos veículos. Empresas de ônibus usaram da mesma estratégia para reajustar tarifas. 

Tudo perfeito, exceto pelo detalhe de que os demais segmentos da sociedade pagavam a conta. Não só diretamente, mas também pelo efeito inflacionário.  

Nada disso surpreende, principalmente agora, quando se sabe que sindicalistas pelegos, da Força Sindical e CUT, levaram suborno para acabar com greves, traindo os trabalhadores. Só falta apurar desde que época isso ocorreu, e quem levou. Paulinho da Força já se sabe que sim, e isso não surpreende, pela folha corrida deste senhor, membro da tropa de choque de Cunha.

Assembleias dirigidas 

Vale a pena também uma palavrinha sobre as grandes assembleias, das greves. Elas nunca foram democráticas, porque não havia encaminhamento contra. Só se falava a favor. Para fazer a greve e para decidir a hora de voltar ao trabalho. Tudo era decidido, de fato, no sindicato. Como os trabalhadores confiavam nas lideranças, seguiam suas diretrizes. As assembleias tinham dois objetivos: promover a mobilização e cumprir ritos legais.  

Mas o mito Lula não nasceu apenas disso. Teve enorme alavanca nos movimentos populares da Igreja Católica, nas mãos do clero progressista. Dom Claudio Hummes, então arcebispo e depois cardeal, deu expressivo apoio aos metalúrgicos e participou de encontros secretos com Lula. Foi também mediador em negociações com empresários. As comunidades de base da Igreja foram um dos berços do PT. Lula teve também o importante apoio do prefeito Tito Costa, de São Bernardo, na grande greve de 1979, que culminou na intervenção policial no sindicato. 

Amizade estranha 

Preso no Deops, Lula tornou-se amigo fraterno do seu carcereiro, Romeu Tuma, que dirigia o famoso centro de torturas da ditadura. Mas ninguém tocou nele, ainda bem. O estranho foi a amizade. 

Típica da cartilha de Jarbas Passarinho, o entusiasta da ditadura que declarou, ao assinar o Ato-5: “Às favas com os escrúpulos”.

Tudo começou a ruir quando Lula e seu grupo aceitaram a aliança com a direita, inclusive corrupta, para conseguir vencer a primeira eleição. O resto todo mundo já sabe.

Surgiu então algo novo: os órfãos do lulismo. Uma legião que agora se vê sem alternativas, porque também não aceita a direita.

O mesmo fenômeno, mas talvez em menor escala, deve ocorrer no PSDB e PMDB, agora também estraçalhados pelas denúncias da Lava Jato.

Com certeza, um dos momentos mais difíceis no Brasil. Nada pode ser pior do que a imprevisibilidade total, às vésperas da principal eleição. Sob um governo de péssima credibilidade.

Por outro lado, a crise pode ensejar o impedimento ou aposentadoria dos caciques suspeitos e desgastados, abrindo espaço para novos postulantes. Entre eles, claro, aventureiros e farsantes. Que repetirão as velhas práticas, se mudarem apenas os nomes, sem reformar as viciadas estruturas do Estado. 



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