Administração Pública

Escândalo em Praia Grande é
desafio a David Uip na Fuabc

DANIEL LIMA - 21/05/2018

Uma pergunta mais que relevante: o infectologista David Uip, ex-secretário de Saúde do Estado, seria mesmo o profissional preparado para retirar a Fundação do ABC da zona de obscuridades administrativas que a transformaram em enorme caixa-preta na gestão de recursos públicos federais repassados pelo Sistema Único de Saúde? A Fuabc administra uma dinheirama anual de quase R$ 1,5 bilhão. Somente Santo André e São Bernardo contam com orçamentos maiores. O quase nada divulgado escândalo da Fundação do ABC na Praia Grande, Município da Baixada Santista, é um desafio a David Uip. E, quem sabe, a ponta do iceberg? 

Indicado pelo prefeito de São Bernardo, Orlando Morando, também presidente do Clube dos Prefeitos, David Uip tem relações históricas com essa instituição que é o único exemplar de regionalidade que deu certo na região. E deu certo porque além de recursos milionários, faz acertos. David Uip formou-se médico na Faculdade de Medicina do ABC, espécie de irmã siamesa institucional da Fundação do ABC. Integrou a segunda turma de formandos. 

Poucos reuniriam condições de mudar a história da instituição, segundo a ótica de quem coloca notoriedade, notabilidade e gestão num mesmo patamar.  Resta saber até que ponto o infectologista identificará os pontos obscuros.    

Imagem embaçada 

O que está à espera de David Uip é uma instituição cuja imagem não é necessariamente das melhores. O formato de caixa-preta que lhe conferem mentes instigantes não é obra do acaso. 

Um exemplo? Qual foi a iniciativa da direção da Fuabc, inclusive do Conselho Curador, para dar transparência e soluções ao caso denunciado em março último, de Ação Civil Pública por ato de improbidade administrativa anunciado pelo Ministério Público Estadual de Praia Grande?

Não falta torcida inclusive nos interiores da Fundação do ABC para David Uip ultrapassar a zona de unanimidade como um dos maiores especialistas do País em infectologia e se consagrar igualmente como gestor de saúde. Para tanto é preciso que rompa um círculo vicioso de compadrios político-partidários reciprocamente protetor que coloca a estabilidade gerencial da Fundação do ABC como cláusula pétrea. Mesmo que a custa de uma enxurrada de potenciais irregularidades mantidas a sete chaves. O caso de Praia Grande é emblemático. Mas pode ser café pequeno diante de um processo de denúncias que poderiam envolver principalmente funcionários mais graduados da instituição. 

A ordem unida da entidade mantida sobretudo com dinheiro federal pelas prefeituras de Santo André, São Bernardo e São Caetano é eliminar qualquer possibilidade de questionamentos que coloquem em risco a cultura de arranjos. Mesmo que isso represente completo descaso com o dinheiro público. 

Esperança e inconformismo 

A troca de comando na Fundação do ABC pode ser tanto regeneradora à imagem da instituição quanto mais comprometedora ainda. A esperança cederia mais espaço ainda ao inconformismo. 

É possível que, no meio do caminho das atividades do novo presidente do Clube da Saúde da região, agentes da Polícia Federal apareçam para estender investigações sobre o até outro dia titular da instituição, o advogado Carlos Maciel, supersecretário da Administração Orlando Morando. 

O advogado Carlos Maciel foi pego na Operação Prato Feito, de desvios de recursos federais no setor de Educação de três dezenas de municípios paulistas, entre os quais São Bernardo. Na mesmo manhã pós-visita de federais, Carlos Maciel abandonou o cargo na Prefeitura e, um pouco mais tarde, solicitou afastamento da presidência da Fundação do ABC, colocado no posto pelo prefeito Orlando Morando. Daí a consequente chegada de David Uip. Um nome oficialmente tirado da mesma cartola que indicou Carlos Maciel. 

Denúncias do MP

O fio da meada de uma corrupção que poderia ser sistêmica na Fundação do ABC está configurado na denúncia do promotor de Justiça de Praia Grande, Marlon Machado da Silva Fernandez. O processo 1003155-91.2018.8.26.0477 foi julgado pelo Relator Marcelo Theodósio, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 20 de março último, depois de o titular da Vara da Fazenda Pública de Praia Grande indeferir o pedido de liminar que tornariam indisponíveis bens dos envolvidos, como forma de garantir a execução no caso de eventual procedência da denúncia. 

O valor da causa é de quase R$ 3 milhões. Precisamente R$ 2.985.091,28 milhões. O magistrado da Fazenda Público do TJSP atendeu ao pedido do Ministério Público da Praia Grande. Nos desdobramentos, os envolvidos reverteram a indisponibilidade dos bens. A denúncia está fundamentada em provas. 

O afastamento funcional dos executivos da Fundação do ABC até que o caso seja resolvido não passou pela direção da instituição durante a gestão do advogado Carlos Maciel.  Tem-se como absolutamente certo que nada se dará pelo menos até medidas judiciais assim o exigirem. Existe em torno de um dos executivos da Fundação do ABC envolvidos no escândalo de Praia Grande uma aura de proteção total. 

A denúncia do Ministério Público de Praia Grande não personaliza de forma contundente o grau de influência dos denunciados à Justiça. Entretanto, nos bastidores da Fundação do ABC o diretor jurídico Sandro Tavares é considerado mais forte que qualquer indicado que tenha ocupado o posto de presidente. 

Executivos envolvidos 

O caso da Praia Grande envolve três executivos da Fundação do ABC, além de Sandro Tavares. Élio Carvalho de Medeiros, Eliana dos Santos Lopes e Heleno Teixeira Passetto estão no processo. Outras pessoas jurídicas e físicas também constam entre os denunciados pelo MP. São profissionais ligados à área de saúde de Praia Grande, além de empresas.

A denúncia do promotor Marlon Fernandes revela que a Fundação do ABC e a Prefeitura de Praia Grande firmaram parceria para a gestão do Complexo Hospitalar Irmã Dulce, conglomerado formado pelo Hospital Municipal, pelo Pronto Socorro Central, pela Unidade de Alta Complexidade em Cuidados ao Portador de Doença Renal Crônica e Terapia Renal Substitutiva (Nefro-PG e pela Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Dr. Charles Antunes Bechara. “Sucede que foi descoberto um conluio que visou fraudar o procedimento de compras do Complexo Hospitalar a fim de proporcionar vantagem a uma única empresa, desviando recursos do SUS”, escreveu o promotor. 

O trabalho de investigação ministerial constatou que foram registradas fraudes em dois contratos com a empresa de Charles Rekson para locação de equipamentos hospitalares. Apurou-se, segundo definição do promotor de Justiça, “ a formação de um pacto ilícito entre servidores da Fundação do ABC e algumas empresas visando fraudar o processo de compras”.  

Orçamentos fajutos 

No primeiro caso, a responsável pelo Departamento de Compras da Fundação do ABC, Eliana dos Santos Lopes, cotou orçamentos em três empresas que não são especializadas em locação de equipamentos médico-hospitalar, entre as quais a Charmm Comercial, de propriedade de Charlles Rekson Barbosa de Lima. “Conforme apurado pelo serviço reservado da Polícia Militar, a Charmm Comercial é empresa fantasma, que não existe no endereço constante na Junta Comercial do Estado. No local, existe um imóvel fechado, cheio de pichações, onde no passado funcionou uma agência de veículos, atualmente fechada” – afirmo representante do Ministério Público. 

Na sequência da denúncia, o promotor Marlon Fernandez afirma que, mesmo sendo uma empresa fantasma, Charlles Rekson enviou orçamento a Eliana Lopes. A suposta concorrente SJA Comercial do Brasil Ltda, representada por José Adão Costa, também enviou orçamento para a representante da Fundação do ABC. O promotor criminal constatou que a empresa foi dissolvida muito anos do procedimento aberto pelo Departamento de Compras da Fundação do ABC, em 15 de outubro de 2010. “E mesmo que existisse, a SJA era uma empresa especializada no comércio atacadista de café em grão e no comércio atacadista de produtos alimentícios” – afirma.

A terceira empresa que participou da operação, a TClin, Serviços de Manutenção Ltda, também encaminhou proposta (em junho de 2012, data do orçamento) para Eliana Lopes, “mesmo não sendo especializada na locação de equipamentos hospitalares, somente tendo incluído essa atividade em seu objeto social um ano depois, em junho de 2013” – afirma o promotor da Praia Grande.  

A empresa de Charlles Rekson apresentou a menor proposta, no valor mensal de R$ 209.531,16. A Comissão de Julgamento da Fundação do ABC, integrada por Sandro Tavares, Élio Carvalho de Medeiros e Heleno Teixeira Passetto, aprovou a proposta.

Comissão endossou 

Para o promotor criminal, Eliana Lopes sabia que estava orçando preços com empresas meramente “de fachada” e que não tinha por objeto a venda/locação de equipamentos hospitalares. A Comissão de Julgamento aprovou a farsa. Diz o promotor criminal: “Frise-se que os componentes da comissão de julgamento tinham pleno conhecimento da inidoneidade das empresas que ofertaram orçamento. E mesmo diante dos orçamentos apresentados por empresas de fachada ou que não negociavam o objeto da contratação, confirmaram o procedimento em nome da Fundação do ABC. 

Quanto ao segundo contrato, o modus operandi denunciado pelo promotor de Justiça da Praia Grande seguiu o mesmo enredo. Envolveu novamente a locação de equipamentos hospitalares. Foram anexados ao procedimento de compras orçamentos de duas empresas inidôneas, novamente a Charmm Comercial e a Amazônia Hospitalar, “sediada no longínquo Estado do Pará”. 

Vejam o que denunciou o promotor: “Ao cotar preços com uma empresa do Pará, Eliana Lopes sabia que estava favorecendo a Charmm Comercial, como favoreceu, já que os preços da Amazônia Hospitalar jamais seriam competitivos diante de uma empresa paulista, em função da distância para a disposição dos equipamentos de locação mensal”. Mais uma vez a Charmm Comercial de Charlles Rekson apresentou o menor preço e assinou o contrato no valor de R$ 30.870,59 mensais. 

Nada surpreendente 

Há quase uma centena de matérias nesta revista digital que tratam da Fundação do ABC, como protagonista ou como subsidiária de informações. Um texto que publiquei na edição de 27 de março de 2013, portanto há cinco anos, dá a dimensão exata da preocupação editorial com aquela instituição. Sob o título “Fundação do ABC não resistiria à auditoria do Ministério da Saúde”, o artigo antecipa-se ao escândalo da Praia Grande. Alguns trechos selecionados: 

m Se o ministro Alexandre Padilha resolver dar uma incerta e mandar instaurar auditoria rigorosa nas contas da Fundação do ABC, comandada pelo petista Maurício Xangola Mindrisz, provavelmente ficará estarrecido. (...). Maurício Xangola Mindrisz tem o aval da ministra Miriam Belchior e do prefeito Luiz Marinho, de São Bernardo, para conduzir a Fundação do ABC até o final deste ano, completando mandato de 24 meses. Nos dois anos anteriores atuou como vice-presidente. (...). Escrevi nesta semana que a regionalidade que deu certo na Fundação do ABC era motivo de desconfiança por se tratar de exceção à regra municipalista numa região divididíssima em sete partes. Estava mais que certo. A Fundação do ABC é um jogo de conveniências mútuas de administradores públicos de Santo André, São Bernardo e São Caetano a envolver também a Faculdade de Medicina do ABC e 20 hospitais da região e da Baixada Santista sustentados por recursos do SUS, Sistema Única de Saúde, além de fundos municipais de saúde. 

Mais informações 

 Exatamente um ano depois, em março de 2014, outro artigo trata da Fundação do ABC. É claro que nesse intervalo não faltaram outros textos. Vale a pena acompanhar alguns parágrafos de 2014 sob o título “Ninguém tem coragem de abrir caixa-preta da saúde da Província”: 

 A entrevista do Diário do Grande ABC com o novo presidente daquilo que chamo de monumental caixa-preta do sistema de atendimento de saúde pública da Província do Grande ABC, a Fuabc (Fundação do ABC) foi bem mais interessante que a do Repórter Diário. Mas isso não quer dizer que tenha preenchido integralmente a curiosidade dos leitores mais meticulosos. Marco Antonio Santos Silva, presidente que tomou posse há dois meses, representa o PMDB de São Caetano, do prefeito Paulo Pinheiro. Isso quer dizer em linhas gerais que é aliado do prefeito Luiz Marinho, petista que comanda São Bernardo. Sob a liderança paralela do agora candidato a deputado estadual Luiz Fernando Teixeira, o PT lubrificou a campanha de Paulo Pinheiro contra a candidata do Paço Municipal, Regina Maura Zetone. Bombardeio de cunho moralista destruiu a reputação pessoal da oponente, especialista na área de saúde. 

Relações políticas  

 O jeito petista de ganhar eleições não é diferente do jeito tradicional de ganhar eleições, exceto a capacidade orgânica de, como uma franquia comercial, racionalizar a metodologia e a operacionalização, disseminando ações coordenadas por um grupo de estrategistas. Assim também o PT age contra quem lhe opõe resistência e, igualmente, de forma mais produtiva que os políticos de outras agremiações menos sistemicamente organizadas. Por conta das relações políticas com a Administração Luiz Marinho, duvida-se que Marco Antonio Santos Silva dará um jeito de tornar a gestão daquela enorme caixa-preta algo que possa ser chamado de transparente, profilático e regenerador dos costumes corporativos contaminados por politicagens das grossas.  É preciso candidatar-se ao Prêmio de Ingenuidade do Ano para levar a sério eventual avanço na Fundação do ABC.

Arranjo geral 

 Ali, na Fundação do ABC, na inviolável caixa-preta mais perniciosa da Província do Grande ABC, se pratica o mais enraizado, fantástico e protegido regime de concertos econômicos, políticos, partidários e financeiros. Uma suruba multipartidária sustenta a longevidade de um macroesquema de benesses, em detrimento dos indicadores de atendimento à saúde da população com recursos do SUS (Sistema Único de Saúde). O que mais me intrigou na entrevista ao Diário do Grande ABC é que Marco Antonio Santos Silva mencionou diversas vezes disposição de elevar a densidade presencial de auditorias nas organizações que atuam no imenso conglomerado sob suposto controle da Fundação do ABC, no caso uma rede de hospitais conveniados, Ambulatórios Médicos de Especialidades, prontos-socorros e também a Faculdade de Medicina do ABC. Supõe-se, agora ingenuamente, que as denúncias de CapitalSocial de que a Fundação do ABC não tem critérios que confiram segurança à prestação dos serviços, bem como ou principalmente, aos custos, chamou a atenção do novo presidente. E daí? Quem garante que medidas saneadoras serão tomadas para valer ou o que se pretende mesmo é criar expectativa de que haveria atenção especial no gerenciamento dos contratos sem que, na prática, se dê à iniciativa o empenho necessário, criando-se a falsa ideia de que, nada descoberto, tudo está em perfeita ordem. O setor público parece ter pesquisas que asseguram imunidade à industrialização de promessas e de lorotas porque leitores e ouvintes desavisados acreditariam acriticamente na materialidade das iniciativas.



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