-- Esse é o problema, querida São Paulo. O que não é importante para você, formosa e admirada pelo mundo todo, é transtorno para nós. Depois dizem que sou contestador, mas só quem sente a dor no próprio corpo pode mensurar a importância da ferida.
-- Não é que São Bernardo do operariado deu de filosofar? Será uma nova vertente da veia sindicalista. Temos um sindicalismo mais light?
-- Deixe de brincadeira São Paulo, deixe de brincadeira. O problema todo, e meus irmãos do Grande ABC hão de concordar comigo, é que nos esquecem quando não deveriam e se lembram da gente quando poderiam nos esquecer.
-- Francamente, essa não entendi, São Bernardo. Você está filosofando demais para meu gosto. Dá para explicar o que significa essa contraposição de frases?
-- Pois vou explicar, São Paulo. Os fiscais de impostos estaduais e federais fazem de nossos territórios campo de guerra para operações arrecadatórias. Nossas empresas são as mais fiscalizadas do Estado. Não sou contra o Fisco, não estou querendo defender os sonegadores, mas a senhora vai entender que, se somos alvos preferenciais da fiscalização, nossos custos de produção e de prestação de serviços são evidentemente maiores, já que outros municípios, principalmente os do Interior, são tratados de maneira diferente.
-- Isso é mania de perseguição, São Bernardo.
-- Não é isso não, querida São Paulo. Me permita São Bernardo uma lasquinha nessa conversa porque disso também entendo. O fato é que temos uma grande concentração de empresas industriais, comerciais e de serviços numa área geográfica relativamente pequena. Estamos reunidos em 840 quilômetros quadrados de território, os sete municípios juntos. Mais da metade é de área dos mananciais. Conclusão: é sopa no mel a fiscalização manter sistemático cronograma de visitas e de auditorias. No Interior de São Paulo, por exemplo, é bem diferente. As empresas estão distantes umas das outras.
-- Santo André tem razão e falou por todos nós, São Paulo. Eu que sou territorialmente o menor município entre os sete, sei disso muito bem.
-- Está bem, São Caetano, mas o que posso fazer?
-- Não estamos dizendo que você deva jogar seu charme sobre a Receita Federal e a Receita Estadual e fazer pressão para nos proteger, porque sabemos que não vai se dar a esse trabalho. A gente queria apenas chorar um pouquinho e dizer que se tivéssemos, em igual proporção do ímpeto fiscalista, também o retorno dos impostos que nos levam, estaríamos todos nós do Grande ABC em situação menos caótica. É por isso que eu choro.
-- Chora mesmo, porque essa política arrecadatória acaba por agravar os custos internos de nossa região. Diria que faz parte do chamado Custo ABC.
-- Não exagere, Mauá.
-- Não é exagero, querida São Paulo. É constatação. Quem sonega fora do Grande ABC acaba nos derrotando em mais um indicador de custos. Se já não bastassem a estrutura viária congestionada, os salários mais elevados, os impostos municipais que também são salgados, os planos de saúde privados pagos pelas empresas porque a saúde pública está um caos... Enfim, São Paulo, a ação do Fisco é um componente a mais que faz transbordar a paciência e esvaziar os bolsos dos empreendedores.
-- Já vi que tenho muito o que ouvir de lamúrias aqui hoje. E querem saber de uma coisa? Estou comovida com as dificuldades que vocês expõem para ao menos tentar sair desse encalacramento que é o Complexo de Gata Borralheira. Com tantos problemas, fica mesmo difícil vocês pensarem estrategicamente em como alcançar o que chamaria de institucionalidade específica e unida.
-- Agora tenho de elogiar São Paulo. Minha querida Capital já está começando a compreender por que, mesmo estando a seu lado, estou tão distante de sua glamourosidade.
-- Diadema poderia até estar mais arrumadinha, essa é a verdade, São Paulo.
-- Espera um pouco, São Caetano: não venham querer jogar a responsabilidade de cuidar de Diadema também. Vocês sabem muito bem que minha periferia é tão sofrida quanto a de Diadema.
-- Não precisa perder a linha, cara amiga São Paulo. Eu sei que foi apenas uma brincadeirinha de São Caetano, que quer me aporrinhar. Também não abro mão de minha territorialidade suburbana, é verdade, mas infinitamente melhor que a sua periferização, querida São Paulo. Como você mesma já disse, o contraponto de sua riqueza é uma mancha que você faz de tudo para tentar esconder em nome do glamour. Como basicamente estou em suas franjas territoriais, se não cuidasse de ganhar uma cara própria, uma organização institucional própria, estaria perdidíssima!
-- Me permitam retomar o assunto anterior, para que a gente não se perca de novo nas individualidades?
-- Está bom São Bernardo, fale para o mundo, São Bernardo.
-- Não confunda, caríssima São Paulo. Quem tinha a pretensão de falar para o mundo era o Jornal do Commércio, de Pernambuco. Desculpe a resposta, foi apenas uma brincadeira. O que quero mesmo é reiterar, é ratificar o que estávamos expondo sobre a realidade de que se lembram demais da gente quando não deveriam e se esquecem quando seria indispensável. Lembram da gente quando se trata da fiscalização, de cobrança de impostos, mas esquecem do compartilhamento justo dos investimentos estaduais e federais em relação ao que arrecadam em nosso território regional. Lembram da gente quando se trata de investimentos comerciais de grandes conglomerados que vieram sem restrição alguma de uso e ocupação do solo, e esquecem de proteger e organizar tecnicamente os pequenos negócios que sofreram com a concorrência forte que encontraram. Por mais que tenham razão em dizer que o pequeno comércio é despreparado, que os donos desses negócios sabem muito pouco sobre empreendedorismo, não tem sentido jogá-los à própria sorte.
-- Por favor, São Bernardo, deixe falar um pouquinho também sobre lembranças e esquecimentos de que somos todos vítimas. Lembram demais do nosso parque produtivo, principalmente das montadoras e autopeças, quando se trata de investimentos tecnológicos e de arrecadação de impostos, mas se esquecem da responsabilidade de dar novo rumo ao exército de excluídos do trabalho, aos sem-carteira assinada. Não temos políticas econômicas públicas para valer, consistentes, de governos municipal, estadual e principalmente federal para enfrentar essa situação dramática.
-- Gostei Santo André, mas deixe eu falar também. Lembram-se demais do Grande ABC quando os crimes que se multiplicam como gritos de ofertas em feiras livres ganham os programas de sangue, choro e desespero das emissoras de rádio e televisão da Capital, mas se esquecem de valorizar nossas práticas de políticas públicas sociais, muitas das quais conquistaram prêmios nacionais e internacionais. Lembram-se da gente na contabilidade de nossos mortos em crimes, mas esquecem de que temos contingente policial proporcionalmente muito abaixo de outras regiões do Estado menos populosas e longe de viverem nosso quadro de exclusão social. Tudo porque pesa nessa relação nossa baixa influência de políticos na Assembléia Legislativa, entre outros aspectos que nos colocam como suburbanos.
-- Depois de Mauá falo eu. Lembram-se também da gente quando noticiam que grupos de excursionistas se perdem na Serra do Mar, mas são incapazes de, juntamente com todos nós aqui do Grande ABC, planejarem e aplicarem políticas públicas e convênios com a iniciativa privada para tornar a região dos mananciais uma fonte de riqueza ecologicamente segura, porque somos parte importante da grande reserva de Mata Atlântica da Região Metropolitana.
-- Mauá está defendendo os meus interesses ecológicos porque sabe que isso se refletirá em qualidade de vida para todos, mas posso completar dizendo que poucos se lembram de minhas jóias arquitetônicas e históricas e muitos só noticiam os acidentes de trânsito na Índio Tibiriçá, que é uma estradinha perigosa porque ninguém se incomoda com meus problemas.
-- O que atinge Ribeirão Pires atinge a mim também. É uma espécie de efeito-dominó.
-- De novo acabei de ouvir uma sessão choradeira, que se completou com Rio Grande da Serra. Só faltou mesmo Diadema abrir a boca.
-- Não faltou Diadema não, vizinha São Paulo. Eu só abro a boca quando tenho certeza. E como tenho certeza de que tudo que falaram é verdade, ia agradecer aos meus irmãos da região quando você interveio. Também acho que só se lembram da gente nos problemas, nos contratempos. Veja que tenho uma história de reconstrução urbanística que já completa 20 anos. A isso se soma o engajamento político-partidário inigualável na região e pouco visto no Brasil. Entre outros pontos interessantes, essa realidade de amadurecimento político é resultado intrigante de uma população de migrantes, algo que poderia ser um empecilho incontornável. Ninguém jamais contextualizou essa metamorfose desde que os partidos de jeitão socialista tomaram o Paço Municipal. Ninguém não é exatamente a verdade. Me perdoem a afirmação. Em todo esse período, apenas uma revista, uma revista de respeito, feita no Grande ABC, levou o histórico da mudança de meu território físico, político, cultural e social para um patamar de análise que não vou esquecer. Até hoje lembro o título daquela Reportagem de Capa. Sabem qual era? Nossa República Socialista.
-- Não sabia disso, querida Diadema. Não sabia que alguma vez colocaram Diadema em Reportagem de Capa de uma revista de gabarito, de economia, que não fosse para falar de criminalidade.
-- Veja, querida, que você está um pouco desatualizada sobre nossa realidade. Disse Veja para você, mas não foi a Veja que fez a reportagem. Nem a IstoÉ nem a Época. E tampouco a Carta Capital. Foi a revista LIVRE MERCADO. O pessoal da revista foi tão competente que recebeu até carta de congratulações de vereadores comunistas do meu Legislativo.
-- Parece que você é acionista da revista, fazendo tanta propaganda.
-- Sei que você está brincando, querida São Paulo, mas não podemos deixar de registrar as coisas boas da mídia. Todos nós vimos o que fizeram a partir do sequestro do prefeito Celso Daniel e durante os dias seguintes para elucidar o crime. Mataram o Celso Daniel várias vezes depois da morte física, não é verdade?
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16/04/2002 UM QUEBRA-CABEÇAS