Administração Pública

A arte de fazer bonito
com o dinheiro alheio

VERA GUAZZELLI - 05/08/2002

Um dos antídotos que Santo André tem usado contra a picada quase letal do empobrecimento econômico começa a mostrar os primeiros resultados. A cidade do Grande ABC mais duramente atingida pela evasão industrial já pode sacar alguns números positivos do baú de estatísticas desfavoráveis colecionadas na última década. O Município contabiliza saldo positivo de R$ 30 milhões com as Operações Urbanas, como foram batizadas as contrapartidas de investimentos privados que compõem a primeira etapa das obras do Eixo Tamanduatehy. 

O dinheiro não saiu dos cofres públicos nem foi contraído por meio de empréstimo, mas é o combustível aditivado do lento e complicado cenário de reconstrução da cidade. Os valores permitiram recompor 18% dos 12,8 quilômetros do projeto que reúne os principais ingredientes para reverter o quadro de perdas: qualificação do espaço urbano, empreendedorismo e reconversão econômica. As Operações Urbanas permitem a ocupação do solo em condições especiais, desde que o empreendedor privado invista também em obras de revitalização e urbanização de áreas públicas. Diante da asfixia orçamentária que acomete o setor público, está sendo considerada o grande instrumento para que as prefeituras consigam realizar intervenções urbanas mais amplas sem contrair novas dívidas ou furar os bloqueios da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Grosso modo é como se Prefeitura de Santo André estivesse fazendo bonito com o dinheiro dos outros. Não fosse o mecanismo, seria necessário pelo menos mais um mandato para construir o Tersa (Terminal Rodoviário de Santo André), reformar o Parque Celso Daniel, melhorar o sistema viário da Avenida Industrial e até fazer a cobertura do centro comercial da Rua Oliveira Lima. Com capacidade própria de investimento que não ultrapassa R$ 10 milhões, ou cerca de 14% dos R$ 739,5 milhões previstos para o orçamento deste ano, certamente essas obras teriam pouca oportunidade de sair do papel de uma só vez e fariam parte da coleção de projetos que costumam adormecer nas gavetas dos gabinetes públicos. 

Todas as melhorias públicas concluídas dentro do Eixo Tamanduatehy até agora foram executadas com recursos da iniciativa privada. A prática pode até parecer estranha, mas é legal e está incorporada aos conceitos contemporâneos de urbanismo nas principais cidades do planeta. A Operação Urbana, oficializada no recém-aprovado Estatuto das Cidades, confere ao Poder Público possibilidade real de desapertar o nó das cordas orçamentárias para ganhar algum fôlego financeiro em tempos de receita minguada. É espécie de toma-lá-dá-cá que até agora resulta em saldo financeiro positivo em favor de Santo André. 

Os R$ 30 milhões que a Prefeitura obteve de ganho real com as Operações Urbanas em quatro anos de Eixo Tamanduatehy já permitem traçar perspectivas positivas. Ao adotar postura de capturar lucro com os investimentos de terceiros, o Município passa a ter argumentos de atratividade sem precisar abdicar de receita. Nas Operações Urbanas, é comum a Prefeitura conceder benefícios como doação de áreas ou isenção temporária de impostos e ter esses valores compensados -- quase sempre a maior -- pelas obras públicas custeadas pelo empreendedor. "O principal desafio é tornar as ações exequíveis e tirar do projeto características puramente promocionais e de marketing. Por isso, é ideal que os resultados comecem a aparecer já nos primeiros seis meses, senão fica difícil agregar credibilidade" -- considera o secretário de Desenvolvimento Urbano, Irineu Bagnariolli Júnior. 

O descompasso entre a velocidade das obras do Eixo Tamanduatehy e a expectativa da população de ver os resultados em curto prazo é sempre um desafio para o secretário. O executivo público revela que se preparou para enfrentar a turbulência natural da primeira etapa do Eixo Tamanduatehy, principalmente após toda a publicidade que cercou o anúncio do projeto. Se a velocidade das obras for mantida, metade do projeto estará concluída em uma década e Irineu Bagnariolli Júnior considera os resultados de Santo André bastante animadores para um projeto que quase não tem aporte de recursos públicos.  O prazo obviamente longo sob o ângulo da análise imediatista é compatível com padrões internacionais de reconstrução de grandes cidades. A reformulação de Berlim, na Alemanha, está em curso há 20 anos e é apontada como referência para a experiência local. 


Vitrine -- O Eixo Tamanduatehy foi constituído sob o que os arquitetos chamam de dinâmica em andamento. Por isso, o ABC Plaza -- inaugurado quase um ano antes do anúncio do projeto -- é um dos principais pilares e a vitrine mais chamativa para a compreensão das Operações Urbanas em Santo André. A Prefeitura isentou o empreendimento do pagamento de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) durante cinco anos em troca da doação de terreno de 3,9 mil metros quadrados para a duplicação da Avenida Industrial. O valor do imposto corresponde ao custo do terreno, mas o empreendedor arcou com as obras de infra-estutura e reurbanização viária de parte da avenida. Fechadas as contas, a Prefeitura contabilizou ganho de R$ 3,2 milhões em contrapartidas.

A história se repete em outras oito Operações Urbanas do Eixo Tamanduatehy, por enquanto sempre com saldo positivo para os cofres municipais porque não houve concessão de benefícios fiscais. Na maioria dos casos a Prefeitura concedeu autorização especial para a construção. A UniABC bancou a duplicação da Avenida Industrial no entorno do novo campus inaugurado em fevereiro de 2000.  O início das obras do complexo hoteleiro Ibis/Mercure rendeu R$ 132 mil em melhorias para o Parque Celso Daniel. Os hotéis também financiaram reformas no Cine-Teatro Carlos Gomes. O Tersa (Terminal Rodoviário de Santo André) investiu em paisagismo, assim como o Hipermercado Extra e o homecenter C&C, instalados na área do ABC Plaza. O Pão de Açúcar da estação ferroviária revitalizou o entorno para criar o Parque 18 do Forte e o Carrefour, que vai ocupar as antigas instalações da ADC Rhodia, também investe R$ 600 mil em paisagismo para encher de verde área de 10 mil quadrados na Avenida dos Estados. 

As Operações Urbanas também criaram tentáculos fora do perímetro do Eixo Tamanduatehy. A chegada do Sé Supermercados à Rua das Figueiras resultou numa praça de convivência dentro da favela do Jardim Cristiane. O grupo português Jeronimo Martins, até então detentor da bandeira recentemente comprada pelo Pão de Açúcar, foi beneficiado com a mudança da Lei de Zoneamento para instalar a unidade no Bairro Jardim e desembolsou R$ 207 mil na obra comunitária. Também o Flat Avenida Portugal, localizado em outra área nobre da cidade, vai oferecer como contrapartida a construção de equipamento para educação profissionalizante orçada em R$ 292 mil.

Apesar de os exemplos mostrarem que as Operações Urbanas podem contemplar toda a cidade, é a viabilização do Eixo que se tornará marco para a história recente de Santo André. O Eixo Tamanduatehy compreende o trecho da cidade que mais reflete os efeitos da desindustrialização e do empobrecimento da última década. A Avenida Industrial revitalizada nos dois extremos ainda é passarela de prostituição e de galpões abandonados ocupados por moradores de rua no trecho central. A igualmente problemática Avenida dos Estados continua distante de exibir paisagem de cartão postal digna de reverter o cenário de terra arrasada construído pela combinação da guerra fiscal, da abertura econômica e da falta de capacidade dos governantes locais de se preparar para as consequências dessa dupla explosiva. 

"A evasão provocou deterioração rápida e aparente, principalmente na área central" -- admite Irineu Bagnariolli Júnior. A declaração que até pouco tempo soaria como uma voz isolada está oficialmente subsidiada por recente documento da Prefeitura que detalha as perdas do ICMS nas principais atividades industriais de Santo André desde 1989. A queda da capacidade de produção industrial fez escoar pelo ralo 40% da arrecadação do principal imposto que compõe a receita municipal em pouco mais de uma década.  

A situação detalhada no papel reflete exatamente o que se vê nas ruas: poucas oportunidades de emprego, salários mais baixos do setor varejista e de serviços e poder aquisitivo em queda. É justamente essa realidade que coloca o Eixo Tamanduatehy em xeque. Concebido para atrair principalmente o terciário avançado -- segmento que o prefeito morto Celso Daniel considerava estratégico para a reconversão econômica do Município --, o projeto ainda não sinaliza para esse caminho específico.

Apesar de Santo André ter conseguido praticamente estabilizar o Índice de Participação de ICMS em 1,6% em média nos últimos quatro anos, precisa correr do prejuízo e fomentar cadeias produtivas capazes de reverter o perigoso ciclo da baixa geração de receitas e salários cada vez mais encolhidos. Se insistir em sustentar a economia nas grandes redes de varejo e no setor de serviços de baixo valor agregado -- resultante principalmente da terceirização e do desespero de sobrevivência de quem perdeu espaço no mercado no trabalho -- certamente vai despencar ainda mais nas já pouco animadoras estatísticas.   


Ventos a favor -- Não à toa, o secretário Irineu Bagnariolli torce para que todas as obras anunciadas para o Eixo Tamanduatehy prossigam na velocidade constante que permita manter os 20 anos estimados inicialmente para a conclusão do complexo. Mas, apesar do positivismo é necessário ter prudência nas previsões. A economia mundial não anda bem das pernas e a linha que separa os reflexos do mundo globalizado nas cidades-regiões é cada vez mais tênue. Basta olhar para os sucessivos adiamentos que já retardaram em quase uma década a construção do Global Shopping na Avenida dos Estados. A Funcef (Fundação dos Economiários da Caixa Econômica Federal) só conseguiu inaugurar até agora o Auto Shopping Global de um conjunto de serviços que prevê mais dois shoppings temáticos. Certamente a recente legislação que restringiu o percentual que os fundos de pensão podem investir no mercado imobiliário vai frear mais um pouco os planos. A Funcef ainda não iniciou a construção do viaduto para transpor a linha férrea entre a Avenida dos Estados e a Rua Pedro Américo, considerada a principal contrapartida do empreendimento. Dos R$ 12 milhões previstos em benefícios públicos, somente R$ 3 milhões foram aplicados até o momento.  

Também a Cidade Pirelli, outro ícone do Eixo Tamanduatehy porque vislumbra a criação de megaespaço voltado para serviços com maior tecnologia, continua no papel à espera de investidores privados. Até agora somente a UniABC anunciou adesão ao projeto. Mas ao contrário do Global Shopping, a multinacional italiana fabricante de pneus já cumpriu todas as contrapartidas acordadas com a Prefeitura: reformulou o viário no entorno da fábrica de Santo André, doou dinheiro para o Fundo de Desenvolvimento Urbano, construiu uma escola e um miniparque, além de ter custeado a cobertura do Calçadão da Oliveira Lima. Só não há sinais das obras projetadas para o terreno, antes ocupado por galpões da Pirelli e duas dezenas de residências da época da próspera e industrializada Santo André. 


Poder limitado -- Mesmo que a relevância das Operações Urbanas injete ânimo novo nas expectativas públicas, o poder de influência do Município limita-se ao cumprimento dos acordos estabelecidos para as áreas públicas. Como a Prefeitura não pode interferir no cronograma das obras privadas, torce para que os ventos da economia soprem na mesma direção do empreendedorismo. "A constância na execução das obras confere credibilidade fundamental para garantir a continuidade do projeto" -- avalia Irineu Bagnariolli Júnior.

Por isso, a Prefeitura de Santo André também trata de dar provas caseiras de que o Eixo Tamanduatehy merece o tão fundamental voto de confiança. O Município vai investir R$ 20 milhões de recursos próprios para construir o Museu de Ciência Viva, complexo educacional composto de planetário e espaços específicos para o aprendizado prático de disciplinas como Ciências e Matemática. A obra deve ser erguida onde hoje funciona a Garagem Municipal e ajudará a qualificar mais um trecho do Eixo Tamanduatehy. 

A Prefeitura também já reservou verba para continuar a reforma da Avenida Industrial. O trecho a ser contemplado compreende desde o Parque Celso Daniel até o viaduto de Prefeito Saladino.  Com isso pretende deflagrar espécie de atestado de continuidade administrativa que permita ao Eixo Tamanduatehy e todo o planejamento que o prefeito Celso Daniel vislumbrava no Projeto Santo André Cidade Futuro não desmanchar-se na volatilidade dos resultados eleitorais. 

A relação de troca efetuada nas Operações Urbanas reflete ainda a inversão dos conceitos de progresso pelo progresso que predominaram na construção das áreas metropolitanas. Nesse contexto, os R$ 30 milhões de saldo que a Prefeitura contabilizou com as contrapartidas significam bem mais que o dinheiro extra capitalizado além dos recursos formais para investir em obras públicas. As Operações Urbanas em Santo André sinalizam um dos caminhos para a complicada recuperação de uma ferida doída, profunda e agravada pelo diagnóstico de que o caos urbano é um dos fatores que expulsa ainda mais a atividade produtiva.


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