Nosso Século XXI (2ª Ed.)

Sem integração, violência
é uma ferida em aberto

VANDERLEI SIRAQUE - 16/09/2008

O território do Grande ABC que abriga mais de 2,5 milhões de moradores foi dividido ao longo dos anos em sete cidades, mas uma fotografia aérea revela a quem não conhece nossa geografia a imagem de um só Município. Afinal, as fronteiras são apenas imaginárias. Em alguns casos, cada lado de uma rua ou de um córrego pertence a uma cidade. Se assim é, naturalmente muitos dos problemas afetam a região como um todo. Podem ser mais intensos em determinado Município, mas de algum modo vão se refletir nos outros. Infelizmente, só há poucos anos nossos governantes se deram conta, embora timidamente, de que não adianta buscar soluções intestinas se o mal se espalha pela região. Existem modelos de ações conjuntas de relativo sucesso, como no combate às enchentes. Mas também temos exemplos de como o distanciamento entre poderes públicos impede a adoção de medidas que melhorem a qualidade de vida em nossas cidades.


Uma das maiores feridas abertas do Grande ABC é a violência, espalhada pelos quatro cantos da região nas mais variadas formas. Existem outras chagas, obviamente, de igual ou menor complexidade que desnudam de maneira muito clara a falta de sinergia histórica entre os responsáveis por buscar saídas para nossos problemas. Mas, para evitar entrar em um labirinto, vamos abordar um tema muito caro à população como exemplo acabado da falta de sincronia entre agentes públicos locais e os mais distantes governos estadual e federal: a segurança (ou a falta de).


Os números da violência que assola o Grande ABC permitem afirmar, sem medo de errar ou parecer exagerado, que não existe política integrada de segurança pública na região — nem entre municípios nem destes com o Estado e a União. Há no máximo ações isoladas que envolvem determinada cidade e o governo federal, como é o caso de Diadema, que deixou de ser nossa Baixada Fluminense.


Afinal, até meados dos anos 1980 Diadema carregava o nefasto título de campeã nacional no número de assassinatos. História que começou a ser mudada com medidas que promoveram inclusão social, mapeamento das áreas de maior incidência de criminalidade e integração das polícias Civil, Militar e Guarda Municipal nas ações de repressão, entre outras. Por fim, a implantação da Lei Seca nos bares e restaurantes da cidade no período das 23h às 6h. Medida polêmica, mas que no fundo se mostrou eficaz ao neutralizar em parte um dos maiores focos da violência em qualquer parte do mundo: o consumo excessivo de bebidas alcoólicas.


Em verdade, os números da Secretaria Estadual de Segurança Pública, às vezes não muito confiáveis, revelam que os homicídios despencaram 64,28% entre 2001 e 2007 no Grande ABC: foram 949 assassinatos em 2001, contra 339 ano passado. Os furtos e roubos de veículos sofreram queda de 38,82% no mesmo período, descendo de 28.260 para 17.289. Penalizada com o seguro de veículos mais caro do Brasil nos últimos anos, a classe média, sobretudo, sentiuse em parte aliviada porque também viu cair esse custo. Ainda assim não pode comemorar, porque continua à mercê dos criminosos e sabe que o valor do seguro permanece nas alturas também porque o índice de roubo e furto de veículos segue lá em cima.


E segue nas alturas justamente porque vivemos em uma região conurbada, com inúmeras rotas de fuga de uma cidade para outra e um sem-número de desmanches clandestinos que atuam praticamente à vontade porque o Estado não cumpre lei de minha autoria que impõe série de restrições a esses negócios. Também facilita a vida dos criminosos o fato de não haver uma política integrada de segurança entre os municípios, com ações e medidas capazes de inibir esse e outros tipos de crime.


Uma maneira de enfrentarmos essa mazela regionalmente passa pela implantação de um sistema de videomonitoramento integrado no Grande ABC, com participação da Capital, nas principais vias de trânsito e de concentração de pessoas. Mais do que combater o roubo e furto de veículos, o sistema teria papel fundamental em ações para garantir assistência social aos vulneráveis, impedir o tráfico de drogas e a utilização de trabalho infantil, agilizar o socorro às vítimas de acidentes de trânsito e o trabalho da polícia.


Mas o espectro que envolve a segurança pública numa região como o Grande ABC é amplo e merece articulações e ações que vão muito além da instalação de câmeras. É preciso construir políticas públicas de segurança articuladas entre os sete municípios, os governos do Estado e federal e a sociedade civil a fim de prevenir e conter a violência urbana.


Sob liderança do Consórcio Intermunicipal de Prefeitos, todos os atores envolvidos na questão devem se unir em torno de caminhos para formar uma Central Regional de Comunicação entre as Guardas Municipais, criar um Plano Regional de Segurança Pública, intensificar ações ligadas a crianças e adolescentes, implantar o Gabinete de Gestão Integrada Regional, criar um Fundo Regional de Segurança Pública e realizar uma pesquisa de vitimização, entre outras. Neste último caso, o objetivo é ter visão verdadeira da violência no Grande ABC, porque há a certeza de que as estatísticas formais são irreais, na medida em que estudos indicam que a maioria das vítimas não registra Boletins de Ocorrência.


Se boa parte dos vitimados pela violência não procura fazer valer seus direitos, também é verdade que a construção de presídios e de unidades da Fundação Casa (antiga Febem) e a troca de delegados seccionais e de comandos da Polícia Militar são feitos sem o necessário diálogo com autoridades locais — as mesmas autoridades convocadas a ajudar nas contas da área de segurança, seja para custear aluguéis, complementar salários ou mesmo erguer e manter equipamentos.


Também é verdade que as relações e a busca de integração entre os atores locais e delegados e comandantes da PM têm por base a boa vontade, em que pese não haver nenhuma política da Secretaria Estadual de Segurança para que esse diálogo ocorra. Tal situação leva a crer que a relação de amizade se sobrepõe à profissional. Mas se já não ajuda, o Estado ainda atrapalha quando convoca delegados e comandantes para servirem em outras regiões, interrompendo ações em curso que haviam sido pensadas conjuntamente. Ou seja, quando se faz a troca volta-se à estaca zero, porque as relações terão de ser reconstruídas e o planejamento, retomado.


As falhas de planejamento e a falta de diálogo com órgãos do governo estadual responsáveis pela segurança pública podem ser facilmente observadas quando se toma a população carcerária abrigada nos quatro CDPs (Centros de Detenção Provisória) instalados no Grande ABC. Na verdade, são verdadeiros barris de pólvora que só precisam de pequena fagulha para explodir. Juntas, as unidades têm capacidade para 2.432 detentos, mas em meados de 2008 abrigavam 5.882, ou seja, 142% acima dos presos que podem comportar.


Os números de junho de 2008 mostravam que a situação mais dramática atingia o CDP de Santo André, cujas celas para 512 detentos acolhiam 1.560, ou 204% acima da capacidade. Logo em seguida aparecia a unidade de São Bernardo, que registrava população carcerária 199,48% acima do que podia comportar: 2,3 mil presos onde deveria haver 768.


CDPs deveriam esvaziar os DPs, mas
ainda há distritos usados como cadeias
e Centros de Detenção apinhados de presos


A situação carcerária na região se mostra ainda mais preocupante quando se sabe que dispomos de apenas 517 agentes penitenciários para cuidar do exército de 5.882 presos. A conta mostra que cada funcionário é responsável por vigiar 11,37 detentos, mas não se pode esquecer que esse número aumenta consideravelmente porque os carcereiros trabalham em turnos. Isso significa que cada agente deve se responsabilizar por mais prisioneiros, de modo que aumentam também os riscos à segurança dos presídios. Ou melhor, aumenta o risco de fugas dos presídios.


A radiografia dos CDPs da região revela que a política prisional adotada pelo governo estadual está longe de permitir que os detentos tenham a mínima oportunidade de ressocialização. O quadro dantesco vivido intramuros mostra que os presídios do Estado tendem a continuar como verdadeiros depósitos de homens e mulheres, assim como o eram a Casa de Detenção do Carandiru e centenas de distritos policiais espalhados pelos municípios, irregularmente usados como cadeias. A construção de CDPs tinha por objetivo esvaziar os DPs, mas na prática isso não ocorreu no todo: ainda existem DPs usados como cadeias e CDPs apinhados de prisioneiros.


Esse retrato do sistema prisional revela desrespeito à Constituição, que determina adoção de políticas públicas adequadas à proteção dos direitos humanos fundamentais, sobretudo do direito à vida e à dignidade, incluídos aí os detentos, e do patrimônio público e privado. Daí infere-se a total ausência de ações integradas para garantir políticas de segurança pública, cuja responsabilidade vai muito além das funções do próprio Estado ou das forças policiais ou de uma única esfera de governo. Até porque nossa Constituição estabelece competências para todos os entes da Federação e dos diversos atores da comunidade, que devem ser exercidas de forma sistêmica utilizando-se dos conceitos de gestão transversal, matricial, intersetorial e interdisciplinar.


Se não há integração nas políticas públicas destinadas a coibir o avanço da violência, sobra espaço para atuação cada vez mais implacável dos criminosos, principalmente na cooptação de menores e adolescentes para trabalhar no tráfico de drogas. Dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado mostram salto de 39% no número de crianças e jovens flagrados como autores da violência em São Paulo entre 2002 e 2007 (de 9.383 detidos para 13.040). No mesmo período, a prisão de adultos subiu 18% (121.267 contra 143.191).


Os números da Fundação Casa (antiga Febem) não deixam dúvida quanto ao caminho escolhido pela maioria dos jovens envolvidos com a criminalidade: o comércio de maconha, cocaína, crack e ecstasy. Dados apontam que 14,4% das internações em 2006 foram relacionadas a esse tipo de crime. Em 2007 as apreensões saltaram para 31%. Isso significa que três em cada 10 jovens detidos estavam envolvidos com o tráfico.


Uma explicação, simplista talvez, para que cada vez mais jovens se envolvam com o mundo do crime pode ser a falta de perspectivas. Números do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) mostram que o grupo entre 16 e 24 anos representava 45,5% do total de desempregados na Região Metropolitana de São Paulo em junho de 2008.”A juventude está sem horizonte. Cada porta que se fecha no mercado de trabalho abre uma janela para eles (jovens) serem aliciados pelo crime” — declarou ao Jornal da Tarde Antonio Carlos Malheiros, desembargador da Corregedoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça.


O problema atinge todas as classes sociais, indistintamente. Dados da Fundação Casa também revelam que a criminalidade está mais próxima de meninos e meninas da classe média. Afinal, não são apenas os jovens da periferia que encontram dificuldades quando vão atrás do primeiro emprego. Pesquisa do IBGE revela que, de cada 100 jovens que ingressaram no mercado de trabalho entre 1995 e 2005, apenas 45 encontraram ocupação.


No mesmo período, o desemprego entre a população jovem, de 16 a 24 anos, cresceu muito mais do que nas demais faixas etárias, conforme a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Em 2005, a quantidade de jovens sem emprego era 107% superior à de 1995. Ainda segundo o IBGE, a expansão do desemprego foi maior entre os jovens, com 70,2%, contra 44,2% para o restante da População Economicamente Ativa.


É inegável a relação entre violência e falta
de emprego para os jovens. 70% dos
detentos paulistas têm entre 18 e 25 anos


É inegável a relação entre violência e desocupação na juventude, que pode ser explicada pela maior vulnerabilidade dos adolescentes ociosos. Os dados revelam que os Estados que lideram o ranking de homicídios juvenis estão entre os que apresentam maiores índices de jovens que não trabalham nem estudam. No Estado de São Paulo, o perfil da população carcerária mostra que 70% dos detentos têm entre 18 e 25 anos e se declaram desempregados.


Todas essas informações cruzadas mostram de maneira transparente que o governo do Estado não tem políticas públicas para a juventude e que falta incentivo à geração de empregos, principalmente aos jovens que ainda não conseguiram ingressar no mercado de trabalho. Mesmo iniciativas do governo federal se mostram inócuas porque se perdem nos escaninhos da burocracia dos órgãos públicos responsáveis pela implementação das medidas.


Dar aos nossos jovens a expectativa de construir uma carreira profissional, combinada com a possibilidade de formação acadêmica, é o passo inicial para deixá-los longe dos criminosos, ávidos por reforçar sua força de trabalho e ampliar os tentáculos em todas as camadas da sociedade. Para que isso seja possível, entretanto, se faz necessária atuação integrada dos vários atores sociais e de todas as esferas do Poder Público. Os resultados só vão aparecer efetivamente quando as áreas de educação, saúde, esporte e lazer, cultura e desenvolvimento econômico das sete cidades, entre outras, somarem esforços com Executivo, Judiciário, Legislativo, ONGs e empresários no desenvolvimento e implementação de políticas públicas que atendam às necessidades e aos anseios de nossas crianças, jovens e adolescentes.


Foi com os olhos voltados a esse objetivo que apresentei na Assembléia Legislativa o Programa Primeiro Emprego, que prevê beneficiar milhares de jovens entre 16 e 24 anos no Estado. O projeto tem âmbito estadual porque, enquanto deputado, tenho de defender os interesses de toda a população de São Paulo. Mas entendo que devemos, desde já, unir nossa região para cobrar a aprovação do projeto. Depois, no âmbito do Consórcio de Prefeitos, promover a integração entre agentes públicos do Grande ABC, governos do Estado e federal, representantes da sociedade e de empresários para criarmos as condições que nos permitam abrir as portas do mundo do trabalho para nossa juventude. Assim, adolescentes e jovens do Grande ABC terão a certeza de que existe um horizonte de oportunidades bem ali, logo depois de dobrarem a esquina que hoje está imersa na escuridão.


As dificuldades para alcançar a plena integração regional são muitas, mas tenho convicção de que, se juntarmos a ousadia dos jovens e a sabedoria dos idosos, saberemos derrubar os muros imaginários que dividem nossas cidades e construir as pontes para que, de fato, sejamos um verdadeiro Grande ABC. Mais humano, mais igual e mais seguro.


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