O novo sindicalismo projetou-se no final dos anos 1970 como uma das principais forças políticas no cenário nacional, postulando a autonomia e a independência dos sindicatos em relação ao Estado, o fim da ditadura militar, a democratização do País, mudanças na política salarial e no modelo de desenvolvimento então em vigor. No projeto político que se construía, delineado a partir das experiências de luta dos próprios trabalhadores, havia uma associação clara e correta entre as transformações necessárias na estrutura sindical e nas relações de trabalho com as mudanças mais profundas a serem efetuadas na sociedade e na política brasileira.
Como desdobramento dessas lutas, foram criados o Partido dos Trabalhadores e a Central Única dos Trabalhadores. As duas entidades tiveram, ao lado dos movimentos populares e de outras organizações da sociedade, papel fundamental na mobilização de segmentos sociais importantes no combate pela democratização do País na década de 1980. Entre esses segmentos sociais figuravam pequenos produtores rurais, assalariados do campo e da cidade, artistas, intelectuais, profissionais liberais, funcionários públicos e setores da classe média.
Marcos importantes dessa trajetória foram o movimento pela anistia, a campanha pelas eleições diretas para presidente da República e a mobilização por uma nova Constituição. Apesar dos avanços obtidos na Constituição de 1988, com inclusão de amplo leque de direitos inalienáveis dos trabalhadores e cidadãos, foram mantidos os pilares do modelo corporativo de regulação das relações de trabalho.
Que pilares são esses e que papel cumprem desde que foram enfeixados em 1943 na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho)? Como esse sistema fragilizou os sindicatos, limitando sua atuação na defesa dos interesses dos trabalhadores e na transformação da sociedade brasileira? São essas as questões que pretendemos responder neste ensaio.
A CLT inaugurou nova era na história política e econômica do Brasil. Ao conferir direitos sociais a parcela significativa dos trabalhadores urbanos, promoveu-os pela primeira vez no Brasil à condição de cidadãos. Direitos fundamentais como contrato de trabalho formalizado na assinatura da carteira de trabalho e regulação da jornada e do salário, detalhada numa série de normas específicas, conferiram ao empregado um escudo de proteção contra o poder de exploração quase ilimitado do patrão.
Foram excluídas dessa proteção, no entanto, parcelas significativas dos empregos urbanos (domésticos e todos então não reconhecidos pelo Estado) e a totalidade dos trabalhadores rurais, maioria absoluta em uma sociedade preponderantemente agrária à época.
O reconhecimento dos direitos trabalhistas individuais veio acompanhado da atrofia dos direitos coletivos. Esse foi um dos segredos e a mágica do modelo corporativo: enquanto a propaganda oficial enaltecia a nova era dos direitos, galvanizando a opinião pública e mobilizando as massas de trabalhadores favorecidos pela nova legislação, os sindicatos foram enquadrados numa rígida estrutura controlada pelo Ministério do Trabalho.
O financiamento da nova estrutura sindical ficou por conta do imposto sindical, cobrado compulsoriamente de todos os empregados e repassado pelo Ministério do Trabalho às confederações, federações e sindicatos. Em troca, todas as entidades de representação se sujeitaram a regras para obter reconhecimento formal do Estado, que abrangiam desde as condições de fundação até normas de funcionamento, assim como o controle dos gastos.
A negociação coletiva, função essencial do sindicato, foi restringida no tempo (apenas uma vez por ano, na data-base) e no espaço (só para a categoria representada pelo sindicato do Município). Elementos que poderiam conferir aos trabalhadores maior poder de barganha na mesa de negociação foram simplesmente ignorados, como o direito de organização no local de trabalho e de livre acesso e representação, além do direito de greve. Sem falar nos elementos severamente limitados, entre os quais a estabilidade no emprego.
Fragmentada por categoria e limitada geograficamente, a negociação perdeu potencial de regular as relações de trabalho, não conseguindo homogeneizar as progressivas melhorias salariais e de condições de trabalho, processo típico dos contratos coletivos. Sem essa ação dos sindicatos, as empresas deixaram de ser desafiadas a buscar alternativas de competitividade com base em inovações tecnológicas e organizacionais, acomodando-se ao mecanismo de superexploração da mão-de-obra.
Induzidos pela ideologia de colaboração de classes, os sindicatos
deveriam buscar nas negociações a conciliação de interesses entre capital e trabalho e a promoção do bem comum. No caso de impasse nas negociações, caberia ao Estado julgar e dirimir o conflito por meio da Justiça do Trabalho e de suas sentenças normativas. Ao cumprir essa função, a Justiça trabalhista, no entanto, deveria observar as diretrizes da política econômica e os rumos traçados para o desenvolvimento do País.
Sindicato deixa de ser do trabalhador,
pois o reconhecimento e o funcionamento
dependem do Estado, do qual é mera extensão
Nesse modelo corporativo de regulação das relações de trabalho, o direito individual prevalece sobre o direito coletivo e o sindicato é impedido de exercer a função histórica de representar e defender os interesses dos trabalhadores. O reconhecimento e o funcionamento do sindicato dependem do Estado, do qual é mera extensão. Em outras palavras, no modelo corporativo, o sindicato deixa de ser entidade livremente organizada pelos trabalhadores para defender seus interesses imediatos como melhores salários, melhores condições de trabalho e de vida, além de interesses históricos representados pelas transformações sociais. Os sindicatos tornaram-se parte do Estado, integrando-se na estrutura do Poder Executivo por meio do Ministério do Trabalho.
Para compreender o significado mais profundo desse modelo sindical, é necessário situar o contexto histórico em que foi concebido e implementado. Falamos de uma sociedade que caminhava rumo a um processo acelerado de urbanização e de industrialização. Uma sociedade com instituições sociais e políticas marcadamente autoritárias e excludentes, na qual a desigualdade, além de estabelecer enorme distância entre a elite abastada e favorecida por privilégios e as camadas mais pobres, alimentava uma estrutura de relações baseadas na dependência pessoal e no clientelismo. Uma sociedade que passara por profundas mudanças políticas a partir dos anos 1930, com a chegada ao poder de novas forças políticas imbuídas de um projeto modernizador.
A industrialização passou a ser o principal pilar do desenvolvimento e da constituição de uma economia nacional, cujo centro estava localizado na Região Sudeste e cuja dinâmica acabaria submetendo as antigas economias regionais e suas elites à lógica de uma nova divisão do trabalho (a formação do mercado nacional) como novo espaço para acumulação do capital e o exercício do poder (a centralização do Estado).
A conjunção desses processos deu origem ao Estado autoritário que se sobrepõe à sociedade, controlando-a com mão-de-ferro. Foi esse denominado Estado Novo que promulgou a CLT, promovendo o que estudiosos chamam de cidadania regulada, isto é, restrita a setores da população e outorgada pelo Estado, ao mesmo tempo em que eram suprimidos direitos civis e políticos fundamentais dos brasileiros.
Nesse contexto e como parte fundamental desse projeto tido como modernizador, o sindicato não poderia ser organização forte, muito menos ter autonomia para defender os trabalhadores. Seu papel deveria ser e foi subalterno.
Do ponto de vista econômico, por não dispor de elementos que poderiam lhe conferir maior poder de barganha diante do capital, assegurando melhores salários e condições de trabalho com vistas a uma nova configuração na redistribuição de renda, acabou-se pavimentando o terreno para um processo de acumulação baseado na intensa exploração do trabalho. Os trabalhadores careciam de uma representação política autônoma. A principal organização de esquerda, o Partido Comunista, além de condenado à clandestinidade, submetia-se às diretrizes da Internacional Comunista com sede em Moscou. Assim, mão-de-obra e sindicatos oficiais, controlados pelo Estado, acabaram transformados em bases de apoio de forças políticas e de partidos que realmente disputavam o poder nos anos que se sucederam à ditadura de Getúlio Vargas.
No breve e conturbado período de vida democrática, que se estendeu até meados dos anos 1950, os trabalhadores continuaram como força subalterna e constitutiva de um processo mais amplo conhecido como populismo. Trata-se de uma forma de poder que dispensa mediação de instituições realmente representativas da sociedade civil, como partidos e sindicatos, em que o líder fala diretamente para as massas, respondendo a seus anseios. Desfigurados por essa dupla limitação, os trabalhadores não tinham condições de participar da vida política brasileira como sujeitos de direito, como cidadãos plenos. Quando ensaiaram uma entrada diferente nesse cenário ao lado de outras forças progressistas, postulando reformas de base na sociedade brasileira, tiveram como resposta o golpe militar de 1964.
O contraponto e a comparação com a regulação das relações de trabalho nos Estados Unidos e países europeus no pós-guerra dão uma visão mais clara do significado do modelo corporativo implementado no Brasil. Foi um processo distinto historicamente, fundado em condições políticas e culturais muito diferentes das prevalecentes em nosso País. Sua caracterização, no entanto, nos ajuda a compreender melhor nossa trajetória, particularmente o tema central desta análise: o papel dos trabalhadores e do sindicato na construção da democracia brasileira e no desenvolvimento do País.
A evolução do capitalismo nos países industrializados no século passado teve como base dois processos complementares. Primeiro, um novo padrão de acumulação sustentado pela produção em massa em unidades verticalizadas e organizadas a partir dos princípios tayloristas-fordistas, capazes de lançar no mercado artigos de baixo custo feitos em série. Segundo, um novo modelo de regulação, abrangendo tanto as relações capital-trabalho como outras esferas da reprodução ampliada do capital.
Se tomarmos os Estados Unidos e sua indústria automobilística como referência, podemos afirmar em linhas gerais que o primeiro processo (acumulação) demorou cerca de 30 anos para se desenvolver plenamente. Foi o tempo gasto por Henry Ford para transformar a produção artesanal de carros, predominante na primeira década do século XX, numa indústria revolucionada pela tecnologia, pela organização científica do trabalho e pela linha de montagem.
Combinando métodos de coerção com mecanismos de integração
(salário de US$ 5/dia), o fordismo instituiu uma rígida disciplina fabril, reprimindo duramente as iniciativas sindicais. A elevação do salário, por sua vez, propiciou o consumo de massa, elevando substancialmente o padrão de vida dos operários. Essa nova forma de organizar a produção e o trabalho expandiu-se nos anos 1920 para outros setores da indústria americana e para outros países da Europa.
Foram necessários mais 20 anos para que o segundo processo — a regulação das relações de trabalho — adquirisse contornos mais definidos naqueles países. Tiveram influência decisiva nessa regulação a crise de 1929, que provocou profunda recessão e colocou em risco o próprio futuro do sistema capitalista, a implementação de políticas keynesianas para promover o desenvolvimento e regular a economia, além da Segunda Guerra Mundial que, ao colocar a indústria sob pressão para ampliar a produção utilizando plena e ininterruptamente a capacidade instalada, acabou estimulando o desenvolvimento da negociação coletiva como forma de solucionar conflitos trabalhistas. Some-se a isso o desdobramento da Segunda Guerra, que acentuou a disputa entre países capitalistas e países do bloco socialista, levando os primeiros a implementarem o ambicioso Plano Marshall de recuperação dos países devastados pelo conflito e a promoverem o Estado de Bem-Estar Social e um novo pacto nas relações capital-trabalho.
A regulação das relações de trabalho foi impulsionada por princípios muito claros no que diz respeito ao papel do Estado e uma sociedade democrática. Abandonando a concepção de que a economia deve submeter-se exclusivamente às leis do mercado e de que nenhum outro mecanismo, além dessa “mão invisível”, deve regular ou restringir o livre movimento do capital e o processo mais geral de desenvolvimento, o Estado keynesiano interveio diretamente na economia, assumindo funções muito distintas das vigentes na fase anterior do capitalismo liberal.
Passou a investir diretamente em setores que, além de estimular a economia, absorveram a mão-de-obra desempregada e contribuíram para uma situação de pleno emprego. Interveio também na regulação da composição e reprodução do capital, inibindo a concorrência desenfreada que poderia levar o sistema a novas crises e ao colapso. Desenvolveu uma rede de proteção social que, além de assegurar ao trabalhador salário indireto pelo acesso à rede pública de educação e saúde, por exemplo, garantiu-lhe assistência em casos de emergência (seguro-desemprego, auxílio-doença, requalificação profissional) e ao término da vida produtiva (aposentadoria).
Por último e não menos importante, o Estado assumiu o papel inequívoco de equilibrar a relação capital-trabalho posicionando-se a favor do elo mais fraco: reconheceu o direito dos empregados de se organizarem livremente em sindicatos, reconheceu e regulou o direito de organização no local de trabalho, criou leis inibindo ações anti-sindicais por parte das empresas, assegurou a estabilidade no emprego, instituiu a negociação coletiva como forma institucional de resolver conflitos trabalhistas, garantiu o direito de greve.
Esses elementos viabilizaram o chamado pacto fordista — acordo tácito dos sindicatos de não fazerem greve durante a vigência do contrato coletivo e de não interferirem nas questões envolvendo a gestão estratégica das empresas. Isso impulsionou o desenvolvimento dos Estados Unidos e países industrializados da Europa por mais de duas décadas, período considerado pelos historiadores como anos dourados do capitalismo ou dos milagres alemão e italiano, a título de exemplo.
Essas características não estiveram presentes, de forma unívoca, em todos os países. Nem foram implementadas em bloco, de uma só vez. A regulação se deu em contextos históricos específicos e foi mais ampla onde foi maior o peso dos trabalhadores e dos setores progressistas no quadro mais geral da disputa e da correlação de forças políticas na sociedade. É o caso dos países escandinavos, Itália e Alemanha. Nos Estados Unidos, a legislação sindical, que já era restrita comparada à dos países europeus, tornou-se mais severa nos anos 1950. Os trabalhadores norte-americanos também não foram beneficiários de rede de proteção social ampla como os europeus.
Observando mais de perto os elementos desse marco regulatório, identificamos diferenças fundamentais no processo que definiu, na mesma época, as relações de trabalho no Brasil. O direito de livre organização sindical assegurado nos países desenvolvidos conferiu aos trabalhadores o papel de sujeitos políticos autônomos, capazes de formular por si só as regras de organização e funcionamento da entidade que representa seus interesses e anseios na sociedade. Ao negar esse direito aos brasileiros, o modelo corporativo os manteve atrelados ao Estado, em uma condição de sujeitos políticos subalternos, portadores de cidadania restrita.
Nos países de forte tradição democrática, a regulação procurou fortalecer os trabalhadores como sujeitos de direitos e sua representação no local de trabalho como instrumento de democratização, abrindo nesse espaço um canal de negociação permanente. Ao negar esse direito aos brasileiros, o modelo corporativo contribuiu para fortalecer uma cultura autoritária de gestão do trabalho.
A definição da negociação coletiva como regra para resolver conflitos trabalhistas e como mecanismo de redistribuição de renda criou naqueles países condições favoráveis ao investimento, na medida em que havia maior previsibilidade e planejamento por parte das empresas. Também possibilitou elevação crescente do padrão de vida dos trabalhadores por meio da reposição das perdas inflacionárias e de aumentos reais de salário na renovação dos contratos coletivos. Esses processos dinamizaram o mercado interno e impulsionaram o desenvolvimento econômico. A negação desses direitos coletivos no Brasil contribuiu para acentuar as desigualdades sociais e intensificar a concentração de renda. Concorreu também para fortalecer a exploração do trabalho, fragilizando ainda mais os sindicatos. Perderam os trabalhadores, perderam também a economia e a sociedade.
O modelo corporativo acabou, assim, criando as bases para o processo de acumulação do capital que impulsionou a industrialização brasileira a partir dos anos 1940 e que acentuou na sociedade suas características autoritárias e excludentes. Não por acaso esse modelo foi aqui chamado de fordismo periférico: do verdadeiro fordismo herdamos apenas o ônus, já que nos foi negada a outra parte, o bônus.
Navegando contra o corporativismo,
os metalúrgicos do Grande ABC criaram
negociação permanente para solucionar conflitos
Boas notícias nos últimos anos envolvendo o crescimento do emprego formal e a recuperação do poder aquisitivo dos salários ocultam uma questão fundamental: com raras exceções, as relações de trabalho continuam autoritárias e os sindicatos frágeis. Os trabalhadores continuam reféns de um marco regulatório instituído nos anos 1940, que privilegia o capital em detrimento do trabalho.
Navegando nesse cenário pouco favorável, os metalúrgicos do Grande ABC vêm construindo uma experiência de organização sindical que rompeu com os limites do modelo corporativo, devolveu o imposto sindical e enraizou a representação no local de trabalho, instituindo a negociação permanente como forma de solução dos conflitos trabalhistas.
Foram avanços conquistados na luta pelos ideários do novo sindicalismo, que acredita na centralidade do trabalho e no papel dos sindicatos na promoção do desenvolvimento e da democracia brasileira. Sua consolidação no Grande ABC e ampliação para outros setores da economia e regiões esbarram, no entanto, nos pilares do padrão corporativo de regulação das relações de trabalho.
Os avanços até agora obtidos foram resultado de mobilizações e não de benesses por parte das empresas. Podem ser ampliados por meio da negociação. Essa forma de regular as relações de trabalho é uma das tarefas históricas do sindicato.
Essa ação orientada para a democratização das relações de trabalho, no entanto, não pode depender apenas da correlação de forças entre capital e trabalho. Precisa contar também com a ação do Estado, transformando conquistas em direitos. Essa é uma das lições que aprendemos analisando períodos diferentes de nossa história e comparando com a história dos trabalhadores de outros países.
Numa sociedade democrática, o Estado não pode furtar-se do papel regulador e deve exercê-lo de modo a favorecer a equidade social, equilibrando relações que no Brasil são muito desiguais, particularmente as relações entre capital e trabalho. Direitos fundamentais como o de organização no local de trabalho podem significar aqui verdadeira revolução, mas nas sociedades onde a democracia se consolidou são vistos como direitos comuns, inerentes ao Estado de Direito.
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16/09/2008 Primeiro escalão dita ética e responsabilidade social