Caso Celso Daniel

Promotores jogam pesado e
defendem tese de crime político

DANIEL LIMA - 05/11/2005

Numa entrevista por e-mail, os dois representantes do Ministério Público em Santo André que apuram o caso Celso Daniel não economizam críticas à atuação da Polícia Civil de São Paulo, especificamente ao DHPP, cujo delegado titular Armando de Oliveira, presidiu os inquéritos. Amaro José Thomé Filho e Roberto Wider Filho são extremamente contundentes nas respostas. Chegam a sugerir de forma não tão sutil quanto possa parecer que o DHPP não está habilitado a apurar crimes. Utilizam-se de suposto baixo índice de esclarecimento de crimes do Departamento de Homicídios para esgrimir retaliações à Polícia — a face escancarada de idiossincrasias que envolvem setores policiais e do Ministério Público pelo comando de investigações criminais, cujo desfecho está suspenso no Supremo Tribunal Federal.


O Ministério Público defende a tese de que o sequestro e o assassinato de Celso Daniel são roteiro de crime encomendado que teria não só a participação de Sérgio Gomes mas também do empresário de transporte coletivo Ronan Maria Pinto e do ex-secretário municipal Klinger Sousa, que, segundo o MP, comporiam uma quadrilha organizada que atuava intestinamente na administração de Celso Daniel.


O tom das respostas dos promotores públicos invade a área da convicção sólida combinada com evidente desprezo às ações policiais. Chegam ao ponto de sugerir que delações premiadas poderiam ter sido utilizadas nos depoimentos dos sequestradores à Polícia Civil, pouco tempo depois do assassinato de Celso Daniel. Trata-se de contraponto à possibilidade de sequestradores presos há mais de três anos serem estimulados a alterar depoimentos prestados na reabertura do inquérito determinado pela Secretaria da Segurança Pública do Estado.


Quais são os principais pontos que, no entender dos senhores, ligam o caso do assassinato do prefeito Celso Daniel e o suposto esquema de propina na Prefeitura?


Amaro José Thomé Filho e Roberto Wider Filho – Há ligação direta e evidente entre os dois episódios, e a prova coletada nas investigações desenvolvidas pelo Ministério Público revela com solar clareza que Celso Daniel foi morto por óbvio interesse de uma quadrilha instalada em Santo André, dedicada a ataques aos cofres públicos, da qual faziam parte o mandante do crime, Sérgio Gomes da Silva, vulgo “Sombra”, e outros indivíduos também denunciados em outros processos, Klinger Luiz de Oliveira Sousa e Ronan Maria Pinto. Celso vinha adotando providências para minimizar as interferências daquele grupo criminoso no âmbito municipal, e as principais ações de Celso para tanto foram a de retirar poderes políticos de Klinger Luiz de Oliveira Sousa e iniciar estudos para retirar contratos das empresas comandadas por Ronan Maria Pinto, em especial os contratos de coleta de lixo e manutenção do aterro sanitário.


Os senhores admitiriam a possibilidade de erro de avaliação e, desta forma, um caso não ter nada a ver com o outro?


Promotoria – O Poder Judiciário reconheceu que a investigação desenvolvida pelo Ministério Público revela com absoluta clareza e tranquilidade a responsabilidade criminal do denunciado Sérgio Gomes da Silva, vulgo “Sombra”, como um dos mandantes do homicídio de Celso Daniel, contando para isso com a decisão do MM. Juiz de Direito de Itapecerica da Serra, que recebeu a denúncia e determinou inclusive a sua prisão preventiva como mandante do crime, com decisão unânime dos três desembargadores de uma das Câmaras de férias do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e com decisão também unânime dos cinco Ministros da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que mantiveram o curso da ação contra Sérgio, e também expressamente decidiram que ele deveria acompanhar o processo preso preventivamente.


Qual é a avaliação dos senhores sobre o fato de a Polícia Civil desconsiderar qualquer relação entre o assassinato e o suposto esquema de propina?


Promotoria – De uma forma geral, a Polícia Civil apresentou resultado muito abaixo do razoável sobre o assassinato de Celso Daniel. Aliás, o índice de esclarecimentos de crimes por parte do Departamento de Homicídios (DHPP) que investigou o assassinato de Celso Daniel não é superior a 6%, o que significa dizer que a cada 100 inquéritos policiais instaurados para apuração de homicídios, aquela equipe especializada consegue identificar apenas seis assassinos.


Os senhores colocam em dúvida a versão policial de que Dionísio de Aquino foi assassinado por causa de rivalidade entre facções criminosas e que, portanto, não tem absolutamente nada com o caso Celso Daniel. Não há nada que possa bombardear essa argumentação dos senhores?


Promotoria – A investigação sobre os verdadeiros motivos da morte de Dionísio de Aquino Severo ainda não foi concluída, e portanto nada pode ser afirmado ou infirmado acerca de eventual “queima de arquivo”. Apuramos apenas que Dionísio era amigo de Sérgio Gomes da Silva, vulgo “Sombra”, e funcionou no episódio como ligação entre ele, mandante do assassinato de Celso Daniel, e os outros executores do crime, conhecidos como os integrantes da quadrilha da favela Pantanal. Dionísio havia afirmado que era amigo de Sérgio e que havia inclusive namorado Adriana Pugliese, que posteriormente veio a contrair matrimônio com “Sombra”. Disse também que frequentava festas de empresários de transporte coletivo no ABC. Dionísio foi brutalmente assassinado dois dias depois de ter afirmado que revelaria toda a verdade sobre a morte de Celso Daniel em Juízo.


Qual é a avaliação dos senhores sobre as demais mortes de pessoas que de alguma forma tiveram participação no caso. Foram mortes encomendadas?


Promotoria – Não há uma investigação sequer concluída. Além disso, não temos designação para acompanhar aqueles inquéritos, limitando-nos a acompanhar as apurações sobre crimes contra a administração pública ocorridos em Santo André, cometidos pela quadrilha já denunciada, da qual são os principais cabeças Sérgio Gomes da Silva, vulgo “Sombra”, Ronan Maria Pinto e Klinger Luiz de Oliveira Sousa, e o assassinato de Celso Daniel, que teve como mandante o Sérgio. Ainda desenvolvemos outras diligências, em uma terceira investigação, agora acompanhada pela doutora Elisabete Sato, Delegada de Polícia titular do 78º DP da Capital, indicada pela Secretaria de Segurança para auxiliar-nos na identificação dos outros mandantes do homicídio.


O Ministério Público acompanhou toda a apuração do inquérito policial do assassinato de Celso Daniel e, salvo engano, avalizou documentalmente os resultados. Se isso de fato ocorreu, como garantem as polícias, por que então os resultados estão sendo colocados em xeque? Seria aquele procedimento apenas formalidade?


Promotoria – Na primeira fase de investigações, três promotores de Justiça acompanharam algumas das diligências desenvolvidas sob o comando dos delegados de polícia que a presidiram. Não houve qualquer interferência do Ministério Público na linha de trabalho dos delegados de polícia, que realizaram os atos durante cerca de apenas dois meses, e apresentaram aquele resultado sofrível no final de março de 2002. Na reabertura das investigações pelo Ministério Público, ocorrida em agosto daquele mesmo ano de 2002, um dos promotores que participaram da primeira investigação também tomou parte da segunda. As diligências realizadas pela Polícia Civil foram úteis para a identificação de parte dos executores do crime. O problema é que a investigação foi prematuramente interrompida, já que os delegados de então aceitaram, aliviados, as informações trazidas pelos integrantes da quadrilha, sem realizar diligências para conferir o que estava sendo dito. Uma das primeiras e óbvias diligências realizadas pelo Ministério Público foi à obtenção de quebra judicial do sigilo telefônico dos aparelhos utilizados pelos autores do crime. Esta medida, por si só, foi suficiente para espancar a tese de que Celso Daniel foi morto por um mero lapso dos bandidos, uma vez ter ficado demonstrado que todos os integrantes daquela quadrilha permaneceram na região dos “três tombos”, esperando Sérgio Gomes da Silva, que lhes entregou o prefeito, após frágil simulação de abordagem violenta.


Bruno José Daniel insinuou no depoimento que prestou à CPI dos Bingos que os resultados do novo inquérito policial estariam se encaminhando para a possibilidade de que o crime teria sido sob encomenda. Os senhores têm informações sobre isso?


Promotoria – Não se pode dizer que Bruno Daniel tenha insinuado que o assassinato de seu irmão foi um crime de mando, pelo simples motivo de que Sérgio Gomes da Silva, vulgo “Sombra”, já está respondendo a processo por ter encomendado, pago e ajudado na execução do homicídio do prefeito. O inquérito policial recentemente instaurado tem por único escopo a identificação de outros mandantes do crime de homicídio. Não é demais lembrar que Sérgio já é réu no processo da morte de Celso Daniel, inclusive com análise da prova, ainda que perfunctória, realizada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.


Os senhores não trabalham com a possibilidade de que tanto o emocionalismo e o inconformismo dos irmãos Daniel como as relações que, principalmente, João Francisco, mantinha com adversários de supostos mandantes do crime, poderiam contaminar a justeza das investigações?


Promotoria – O resultado da investigação é baseado em provas sólidas e concretas, não contaminadas por sentimentos dos familiares em respeito à memória de seus mortos. Diametralmente oposta é a postura das pessoas captadas nas conversações telefônicas autorizadas judicialmente, em especial os três acima mencionados, Ronan, Sérgio Gomes da Silva, vulgo “Sombra”, e Klinger, que tratam Celso Daniel como “cara”, e apenas se preocupam com o rumo das investigações, procurando impedir, com o auxílio do deputado Greenhalgh e de Gilberto Carvalho, à época Secretário de Governo da Prefeitura de Santo André, que a verdade viesse revelada. Foram esforços inúteis, pois a maior parte da verdade sobre o assassinato de Celso Daniel já foi revelada na investigação desenvolvida pelo Ministério Público.


Os senhores reafirmam que as polícias fizeram apurações apressadas no crime de Celso Daniel? Eventualmente as polícias não poderiam argumentar que os senhores estarão vagarosos demais?


Promotoria – A Polícia está trabalhando nas apurações das mortes possivelmente relacionadas ao assassinato de Celso Daniel há muito tempo e, a despeito disso, não apresentou até agora qualquer resultado satisfatório. Não nos cabe criticar possível demora na conclusão das investigações, mas apenas apreciar seu conteúdo e verificar se há pendências que devem ser supridas. A nossa investigação foi desenvolvida por cerca de um ano e três meses até concluir pela participação de Sérgio Gomes da Silva como um dos mandantes. Prosseguem as investigações, agora com o apoio da doutora Elisabete Sato, as quais devem se estender pelo tempo necessário para que os assuntos pendentes sejam finalmente esclarecidos.


Os senhores acreditam que novas testemunhas venham a ser mortas?


Promotoria – Não temos poder de premonição, mas aguardamos que a segurança das testemunhas seja preservada.


Quantas testemunhas envolvem as investigações do Ministério Público, já que o DHPP ouviu perto de 120 pessoas?


Promotoria – O DHPP poderia ter ouvido outras 500 testemunhas, com informações tão inúteis e irrelevantes quanto aquelas cerca de 90 (e não 120, conforme mais uma equivocada informação da revista LivreMercado) ouvidas. Não importa a quantidade de testemunhas, é óbvio, mas sim a qualidade das informações que proporcionam, mesmo porque, depois de ouvir tantas testemunhas, os delegados aceitaram, passivamente, apenas a palavra dos integrantes da quadrilha como sendo a verdade inquestionável. Para se ter uma medida da insuficiência destas testemunhas ouvidas, verificamos que a funcionária de Celso Daniel que relatou aos promotores e à doutora Elisabete Sato a existência de dinheiro em sacolas de supermercado no interior do apartamento de Celso Daniel, não foi bem ouvida pelos delegados, deixando de expor esta circunstância tão relevante para a solução do crime.


As relações institucionais entre Polícia Judiciária e Ministério Público, que disputam no STF o comando das investigações, tornaram-se mais delicadas depois do caso Celso Daniel? Seria esse um caso emblemático de desdobramentos no STF, cuja votação foi interrompida?


Promotoria – Não faz sentido o Brasil ainda discutir poderes de investigação criminal por parte do Ministério Público. Hoje trabalhamos em perfeita sintonia com a equipe do 78º DP, por se tratar de profissionais que têm plena consciência de que um trabalho de qualidade se faz com a união de esforços para a obtenção de um único resultado aceitável, que é o completo esclarecimento dos crimes que estão sendo objeto de investigação. Os embates ideológicos acontecem nas hipóteses em que aquela sintonia não ocorra, e isso alimenta a discussão socialmente inútil colocada para decisão pela mais alta corte constitucional do País. No mais, qualquer país minimamente sério, tal como Estados Unidos, França, Alemanha, Canadá, Espanha, Inglaterra, Portugal, para não dizer da Colômbia, Peru, Guatemala, entre tantos outros, autorizam, sem qualquer polêmica, a investigação realizada pelos promotores de Justiça.


O Ministério Público desclassificou a versão sobre eventual existência do comerciante do Ceagesp, que seria sequestrado na noite de 18 de janeiro de 2002, em vez de Celso Daniel. Aquela versão dos sequestradores não tem mesmo fundamentação?


Promotoria – Jamais existiu comerciante do Ceagesp como primeiro alvo da ação dos executores do assassinato de Celso Daniel. O crime, desde o início, era o de homicídio planejado e encomendado por Sérgio “Sombra” e outros mandantes ainda não identificados. As informações dos réus sempre foram desencontradas não apenas quanto ao inexistente comerciante, mas também quanto a outros aspectos da linha de desenvolvimento da ação, que nos levou a descartar por completo aquela conclusão pífia da Polícia. Em resumo, a versão aceita pela Polícia era a de que os réus iriam sequestrar um suposto comerciante do Ceagesp, que “por acaso” não apareceu no bairro da Saúde, cerca de 20 quilômetros de distância daquele único ponto de referência de que eles dispunham (fizeram a “campana” para o suposto empresário nas proximidades dos “três tombos”, distante 20 quilômetros do Ceagesp). Em seguida, decidiram, “por acaso”, abordar o primeiro carro importado que por ali passasse, e que, “por acaso”, era justamente o carro conduzido por Sérgio “Sombra”, tendo a vítima como acompanhante. Ao ser abordado, o carro, embora automático e blindado, teve “por acaso” a atividade do motor encerrada, e também “por acaso” a porta do passageiro destrancada. Quatro laudos periciais oficiais descartaram problemas mecânicos e elétricos no veículo. Os réus, também “por acaso”, decidiram retirar do automóvel apenas o passageiro, acreditando que “por acaso” isso bastaria para recompensar a frustrada abordagem do empresário do Ceagesp que “por acaso” não havia passado por lá. Por fim, um último “acaso” consistiu na equivocada compreensão da ordem de soltura da vítima, que foi recebida pelo carcereiro do cativeiro como ordem para matar, em vez de soltar, como queria o comandante da operação. Ninguém pode se dar ao luxo de acreditar que o assassinato de Celso Daniel possa ser explicado pela sucessão de acasos acima exposta. As autoridades policiais que acreditam nisso devem mudar de profissão, mas não “por acaso”, e sim por absoluta incompatibilidade de raciocínio com o desempenho de suas funções. Talvez isso explique o inexpressivo índice de 6% de esclarecimentos dos crimes que investigam.


Os senhores afirmam que não há discriminação no tratamento da Imprensa ao caso Celso Daniel, de modo que a maior profusão de notícias sobre as versões da criminalização de Sérgio Gomes não se consumam na prática. Os senhores acreditam mesmo nisso ou avaliam que a Imprensa, de maneira geral, está mais sensível aos argumentos do Ministério Público e minimizam as apurações policiais?


Promotoria – Apenas a revista LivreMercado e o jornal Diário do Grande ABC, este último pertencente ao acusado Ronan Maria Pinto, apresentam questionamentos ao trabalho do Ministério Público. Não é crível que todos os demais organismos de Imprensa, dos mais variados espectros ideológicos, tenham um posicionamento parcial com relação ao caso.


Os advogados de Sérgio Gomes afirmam que os senhores montaram um enredo e estão adaptando personagens aos respectivos postos, para dar veracidade à história. Como os senhores interpretam essa posição?


Promotoria – Os advogados são pagos para defender Sérgio Gomes da Silva, vulgo “Sombra”. Causaria espanto se eles estivessem elogiando o trabalho do Ministério Público.


Temos informações de que alguns dos sequestradores poderiam alterar depoimentos e, seduzidos por delações premiadas, incriminar Sérgio Gomes. O que os senhores pensam sobre essa possibilidade?


Promotoria – O valor de um depoimento deve ser aferido frente ao complexo conjunto probatório dos autos. De nada adianta um dos réus dizer que pretende obter benefício da colaboração premiada e apresentar versão que não corresponda à realidade. Aliás, fosse realmente aplicável a colaboração premiada a qualquer tipo de pronunciamento dos réus, eles a obteriam frente à primeira confissão de que iriam sequestrar o inexistente empresário do Ceagesp, mas houve aquela inexplicável sucessão de acasos e acabaram matando Celso Daniel. Constatada a mentira daquelas versões, sumariamente descartadas, para que a verdade pudesse ser buscada e encontrada, como de fato o foi.


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