Caso Celso Daniel

Mortes sem qualquer
relação com o caso

DANIEL LIMA - 05/11/2005

Dionísio, malabarista que fugiu da Penitenciária de Guarulhos. Sérgio Orelha, marginal que dividiu apartamento com Dionísio depois da fuga. O garçom Antonio Palácio de Oliveira, que serviu o último jantar de Celso Daniel. Paulo Henrique Brito, testemunha da morte do garçom. Otávio Mercier, investigador de Polícia que teria recebido telefonema de Dionísio da cadeia do bairro de Belém, em São Paulo. Iran Moraes Redua, agente funerário que recolheu o corpo de Celso Daniel. Para o delegado titular do DHPP da Polícia Civil de São Paulo, nenhum desses casos tem qualquer relação com o assassinato do então prefeito de Santo André.

O delegado Armando de Oliveira fala com a segurança de quem acompanhou atentamente as investigações e se manteve calado durante todo o tempo por força de decisão do segredo de Justiça requerido pelo juiz de Itapecerica da Serra, que preside o inquérito. O delegado vai desfilando os casos e as respectivas considerações. De vez em quando altera o tom de voz levemente. Transmite a sensação de que más lembranças lhe ocorrem. O noticiário alimentado pelos promotores públicos de Santo André durante todo o período de mudez judicial provoca sequelas em Armando de Oliveira. Sua vida virou de pernas para o ar. Ele e sua equipe foram sistematicamente colocados na desconfortável zona de desconfiança.

Dionísio de Aquino Severo tinha 37 anos e uma ficha criminal que o condenava a mais de meio século de prisão. Ganhou notoriedade por protagonizar um resgate que o alçou às manchetes de todas as mídias: ele deixou de helicóptero a Penitenciária de Guarulhos em 17 de janeiro, um dia antes do sequestro de Celso Daniel. Apontado como peça importante para as investigações do caso Celso Daniel, Dionísio foi morto em 10 de abril de 2002. Estava preso no CDP (Centro de Detenção Provisória) do Belém, Zona Leste de São Paulo. Foi alvejado com golpes de estilete.

Elo contestado

O delegado seccional de Taboão da Serra, Romeu Tuma Júnior, sugeriu coincidências que ligariam Dionísio Severo à quadrilha que assassinou Celso Daniel. O bandido teria admitido informalmente essas ligações. O Ministério Público denunciou Sérgio Gomes como um dos mandantes do crime em 5 de dezembro de 2003. E Dionísio Aquino Severo foi ponto decisivo nas conclusões.

Segundo os promotores de Santo André, Dionísio Severo era o elo entre os executores do sequestro e o empresário Sérgio Gomes. Argumentou-se que Severo frequentara a Prefeitura de Santo André nos anos 80 e 90. Seu parceiro de fuga da Penitenciária de Guarulhos, Ailton Alves Feitosa, afirmou aos promotores que participou de duas reuniões nas quais o sequestro foi arquitetado. Disse também ter ouvido que Sérgio Gomes iria facilitar tudo. Contou que parte do pagamento do crime estava numa sacola no banco traseiro da Pajero de Gomes.

O delegado Armando de Oliveira desqualifica o enredo dos promotores públicos de Santo André. “No final de 2001, portanto a três ou quatro semanas do sequestro de Celso Daniel, o Dionísio estava planejando a fuga de Guarulhos. Para isso contava com R$ 5 mil. Entretanto, os responsáveis pela organização da fuga, o filho de Dionísio e outros comparsas, promoveram uma festa, uma orgia sexual num apartamento de uma prostituta. Consumiram todo o dinheiro. Por conta disso, não puderam executar a fuga no dia da festa de Natal de 2001, como pretendiam” — conta o delegado.

A saída encontrada pelo filho e comparsas de Dionísio Aquino foi roubar um bingo. Como não se completou o valor necessário, Dionísio solicitou R$ 700 de uma tia. Tudo isso consta do inquérito policial. Detalhadamente, explica o delegado. “Não trabalhamos com suposições. Trabalhamos com fatos. Dessa forma, conseguiram reunir o dinheiro de novo e tiraram o Dionísio da cadeia”. Daí, ele vai para a casa da mesma tia que lhe emprestou dinheiro. Permaneceu, em seguida, durante algum tempo, amasiado no apartamento de um comparsa, que também estava amasiado e em seguida viajou para o sul do País, depois para o Nordeste, onde acabou preso após um assalto a uma joalheria” — explica Armando de Oliveira.

Morte esclarecida

A trajetória criminal de Dionísio Severo acabaria em São Paulo, depois de ser recambiado ao CDP do Belém. “A morte do Dionísio está plenamente esclarecida. Quem mandou matá-lo foi o Cezinha, nome de César Augusto Roriz, líder do PCC (Primeiro Comando da Capital). Ele confessou, em depoimento, que mandou matar Dionísio única e exclusivamente porque ele, Dionísio, era um dos fundadores do CRBC (Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade) facção política minoritária e antagônica ao PCC”.

A resolução do crime, segundo o delegado, foi consequência de trabalho paralelo desenvolvido pelo DEIC, através de interceptação telefônica. Em conversa com outro marginal, Cezinha perguntou se o interlocutor gostou do que ele mandou fazer, porque segundo ele, Dionísio era muito folgado: “O Dionísio menosprezava o PCC e supervalorizava o CRBC até mesmo em função da fuga espetacular de Guarulhos. Toda a gravação está em nosso poder. E temos mais ainda: quando o Cezinha foi indiciado, confessou que realmente mandou matar o Dionísio”.

O delegado do DHPP balança a cabeça quando perguntado sobre as razões da suposta participação de Dionísio Severo no assassinato de Celso Daniel: “Não sei como se explica. Sei como não se explica. Como é possível que o Dionísio, líder do CRBC, vai andar com uma quadrilha da favela do Pantanal, em Diadema, que é vinculada ao PCC? Sapo não anda com cobra. Não há qualquer vinculação. São fatos totalmente distintos. Tentou-se vinculá-los através de um telefonema supostamente do Dionísio para um investigador, Otávio Mercier, mais tarde assassinado. Mas essa informação não passa de erro primário. Não foi Dionísio que ligou para o investigador. Foi um informante desse mesmo investigador que estava na mesma cadeia do Dionísio”.

Para o delegado do DHPP, a versão do telefonema é de quem desconhece a funcionalidade da vida atrás das grades: “A interceptação registrou apenas a ligação telefônica, não o conteúdo. O equívoco do Ministério Público de interpretar que fora Dionísio o autor da ligação para o investigador decorre do simples fato de que telefone celular em cadeia é compartilhado por todos os presos não só da mesma cela mas principalmente de alas inteiras. E, nesse caso, o telefonema foi do informante do investigador. Isso ficou constatado e esclarecido pelo próprio investigador quando vivo ainda, através de atuação da Corregedoria da Polícia”.

Para o delegado titular do DHPP, todo o resto que se desenhou com a participação de Dionísio Severo no sequestro e no assassinato de Celso Daniel não tem fundamento. “Checamos absolutamente tudo. Investigamos a fundo, rastreamos as ligações telefônicas. Nada, absolutamente nada, une Dionísio ao caso Celso Daniel” — afirma.

Própria morte

O investigador Otávio Mercier procurou a própria morte, segundo o delegado Armando de Oliveira. Ele chegava no prédio em que morava por volta das 6h com sua mulher quando foi rendido por dois assaltantes, que os conduziram para o apartamento, juntamente com o porteiro. “Eles foram imobilizados com fios de telefone e, em seguida, os dois criminosos furtaram o que bem entenderam do apartamento e desceram para a rua. O Mercier conseguiu se desvencilhar das amarras, pegou uma arma de fogo e foi ao encalço dos criminosos. Ao chegar no meio da rua, ele anunciou a condição de policial e deu voz de prisão aos assaltantes. Depois de um tiroteio, foi atingido por um único tiro e morreu”. Tudo testemunhado, inclusive pelo próprio porteiro” — afirma o delegado.

O caso está em fase de finalização, segundo Armando de Oliveira. “Não existe crime perfeito. Os criminosos cometeram um erro e estamos prestes a identificá-los. Só identificação, porque o crime está caracterizado como patrimonial”.

Morte anunciada

A terceira vítima fatal que teria relações com o caso Celso Daniel também não passa de coincidência, segundo as investigações da Polícia Civil. Trata-se de Manoel Sérgio Estevão, o “Sérgio Orelha”, que, depois da fuga espetacular de Dionísio Aquino da Penitenciária de Guarulhos, morou durante algum tempo com o sequestrador, ao lado das respectivas amantes. “Ele foi executado na região Oeste de São Paulo, área em que atuava como criminoso. Foi um desenlace típico de assassinato envolvendo marginais”.

O delegado Armando de Oliveira só não consegue compreender a importância de Sérgio Orelha no caso Celso Daniel: “Quem eleva e dá condições de relevância é a Imprensa, estimulada por alguns” — desabafa, provavelmente numa referência aos promotores públicos de Santo André.

Tanto quanto o investigador Otávio Mercier e o criminoso companheiro de Dionísio Aquino, o garçom Antonio Palácio de Oliveira, do Restaurante Rubaiyat, de São Paulo, onde Celso Daniel e Sérgio Gomes jantaram na noite do sequestro, não é peça importante do caso, garante o delegado do DHPP.

“Ele e outros funcionários do restaurante foram ouvidos aqui. Ouvimos todos. Desde o maitre até os manobristas, passando pelo gerente e chegando ao responsável pelos vinhos. Foram pelo menos seis funcionários que aqui compareceram para prestar informações. Queríamos saber se houve alguma discussão, alguma situação menos amistosa, envolvendo o Celso Daniel e o Sérgio Gomes. Principalmente a utilização de celulares ou mesmo do telefone fixo do estabelecimento. Não temos registro documental ou testemunhal que dê sustentação de que qualquer um dos dois tenha usado de aparelhos celulares ou fixo. Chegamos a essa conclusão também depois de quebrar o sigilo telefônico deles. Foi um jantar amistoso. Um jantar. Somente um jantar”.

Por isso, o delegado assegura que a morte do garçom se insere na tipologia de crimes semelhantes na metrópole: “Um dia ele estava indo para casa de motocicleta na Cidade AE Carvalho, onde a criminalidade naquele período alcançava números expressivos, quando foi interceptado por uma outra motocicleta cujos ocupantes aparentemente tentam roubá-lo e, na fuga, se desequilibra, dá com a cabeça num poste e morre com traumatismo craniano. É muito comum esse tipo de morte em São Paulo. Embora tenha diminuído vertiginosamente nos últimos anos, os criminosos não poupam as vítimas que tentam se evadir. Em motos e em veículos. Principalmente nos últimos tempos, os profissionais liberais, como mulheres de branco, correm mais riscos. Eles matam com o mesmo sentimento de quem esmaga uma barata. O caso do garçom não foge em nada disso.

Monitor da Febem

A quinta morte de alguma forma relacionada com o caso Celso Daniel envolveu Paulo Henrique da Rocha Brito que, sentado defronte à casa dele, assistiu à queda do garçom. Tempos depois ele apareceu morto, na mesma área de AE Carvalho. “Paulo Henrique atuou como monitor da Febem e, infelizmente, não contava com bons antecedentes. Ele era acusado de receptação, por roubo, por furto. E foi morto por dois adolescentes. Esse inquérito ainda não está concluído, porque não chegamos aos autores do crime. Mas é questão de tempo. Vou dar um exemplo que mostra as mudanças no DHPP nos últimos anos: em 2000 foram efetivadas 165 prisões, contra 1.437 no ano passado. Um aumento relativo de 770% no período, explicado entre outros pontos pela inserção de nossa equipe com a sociedade como um todo, além de recursos tecnológicos cada vez mais avançados” — explica o delegado. “A sensação de que os marginais estão sendo retirados da rua, com o aumento de prisões, aumenta a segurança do cidadão que passa a colaborar com mais informações e isso é básico, porque a Polícia não tem bola de cristal” — completa.

A sexta vítima vinculada pela mídia ao caso Celso Daniel reúne importância técnica tão desimportante quanto às demais, segundo a ótica da Polícia Civil de São Paulo. Mas foi catapultada a suposta rede de interesses eventualmente contrariados pelos supostos mandantes. Trata-se do agente funerário Iran Moraes Redua, que recolheu o corpo de Celso Daniel na estrada vicinal em Juquitiba, na manhã de domingo de 20 de janeiro de 2002. “Ele foi inclusive ouvido por nós” — afirma o delegado.

Diferentemente do sugerido pelo noticiário, o trabalho do agente funerário não foi indicado por qualquer autoridade pública, administrativa ou policial. Como na maioria dos municípios, o serviço funerário de Juquitiba é terceirizado. “Trata-se de uma atividade eminentemente comercial. O senhor Iran era dono da funerária e estava de plantão no dia em que o corpo do Celso Daniel foi identificado. Ele morreu depois, executado de forma sumária na região central de Santo Amaro. Estamos também nesse caso numa linha muita segura de investigação. Posso garantir que, ao que tudo indica, nada se afasta de disputa comercial. Questões ligadas às chamadas máfias de funerárias. Ou seja: não tem absolutamente nada com o caso Celso Daniel. No depoimento que ele prestou, disse que estava de plantão, foi acionado, recolheu o corpo e nada mais”.

O delegado Armando de Oliveira conta 125 testemunhas no caso Celso Daniel. Brinca com o futuro, numa frase implícita de inconformismo às interpretações que julga manipuladas sobre as vítimas supostamente importantes no caso Celso Daniel. “Também vou morrer um dia”. E complementa sobre a possibilidade de eventuais novas mortes terem tratamento semelhante: “Aí depende muito da mídia e dos irmãos do Celso Daniel”.



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