O empresário Sérgio Gomes viveu provavelmente o novembro mais intensamente agitado desde que o caso Celso Daniel o mergulhou em sucessão de problemas. Considerado inocente nas investigações policiais de 10 delegados e 32 investigadores estaduais e federais, mas apontado como mandante do crime contra o prefeito Celso Daniel pelos promotores públicos de Santo André, Sérgio Gomes enfrentou horas de tensão e de desabafo no mês passado. Terminou o período com a alma lavada — segundo avaliação de fontes próximas de seus advogados.
É verdade que Sérgio Gomes sofreu verdadeiro massacre na sessão da CPI dos Bingos no Senado Federal, quando sentiu dificuldades para escapar dos golpes de suposta participação em esquema de propina na administração Celso Daniel. A tese de que teria participado do assassinato do prefeito e a acusação de que teria sido uma das peças principais do suposto esquema de financiamento eleitoral do PT formam a estratégia dos oposicionistas que dominam a CPI dos Bingos para contaminar a inocência de Sérgio Gomes no campo criminal, sustentada pela Polícia Civil e pela Polícia Federal que apuraram o caso.
O homem que acompanhava Celso Daniel na fatídica noite de 18 de janeiro ficou frente a frente com os sequestradores de Celso Daniel numa das duas acareações. Nas duas sessões, a CPI dos Bingos tendo a frente o senador petista Eduardo Suplicy, buscava aproximar Sérgio Gomes dos delinquentes e, dessa forma, conferir ao enredo o desenho de crime encomendado defendido pelo Ministério Público. O resultado foi desalentador para os senadores: os sequestradores negaram conhecer Sérgio Gomes e confirmaram depoimentos à Polícia quando capturados em situações e momentos diferentes pouco tempo depois do crime: Celso Daniel foi vítima de crime comum, banalizado naquele período na Grande São Paulo.
Descarte
Seguindo a manjada trilha de que tudo que eventualmente sirva aos interesses de defesa de Sérgio Gomes deve ser minimizado, quando não jogado às traças, os jornais praticamente ignoraram o depoimento do médico e deputado federal Jamil Murad (PC do B), dia 9 de novembro, na CPI dos Bingos. O parlamentar endossou o laudo feito pelo Instituto Médico Legal de São Paulo sobre o assassinato de Celso Daniel. “Minha observação como médico nefrologista é que havia lesões provocadas por arma de fogo, a mandíbula estava com fratura, havia outras marcas de bala, além de um hematoma entre o osso e o couro cabeludo, mas não havia lesões traumáticas na massa encefálica” — afirmou Murad sobre as observações no corpo de Celso Daniel, após descartar a possibilidade de tortura e crime encomendado.
Na segunda-feira seguinte, 14 de novembro, em pleno feriado prolongado, os acusados de assassinar Celso Daniel mantiveram a versão de crime comum, sem conotação política, durante depoimentos colhidos pelo senador Eduardo Suplicy (PT) no Palácio da Justiça, em São Paulo. O depoimento mais importante foi de Elcyd Oliveira Brito, mais conhecido como John, apontado pelo Ministério Público como testemunha de suposto crime político. Ele confirmou ser autor de uma carta encaminhada ao advogado de Sérgio Gomes, Roberto Podval, na qual cobrava R$ 1 milhão pela morte do prefeito, a mando de Sérgio Gomes. Para surpresa do promotor Amaro Thomé Filho, que acompanhou a acareação, John negou veracidade às informações manuscritas de próprio punho. “Confirmo a apuração do DHPP (Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa), que concluiu no inquérito inicial a tese de que o crime foi comum” — afirmou.
No dia seguinte, 15 de novembro, o senador Eduardo Suplicy resolveu voltar à cena do crime, a Rua Antônio Bezerra, conhecida como Três Tombos, na Vila das Mercês, onde a Pajero de Sérgio Gomes foi interceptada pelos sequestradores. Suplicy encontrou duas novas testemunhas que, ao contrário da interpretação de vários jornais, acabaram por ratificar as investigações policiais após ouvir 19 testemunhas no período subsequente ao crime.
Uma das testemunhas descobertas por Eduardo Suplicy, mulher de identidade mantida sob sigilo, contou que em nenhum momento do arrebatamento de Celso Daniel viu Sérgio Gomes ser rendido pelos sequestradores. “Os bandidos estavam todos com o prefeito. Ele (Sérgio) ficou sozinho” — disse a testemunha que teria visto as cenas da janela de seu apartamento ao lado de uma irmã, que mora em Porto Alegre e passava férias em São Paulo. Da janela, depois de ouvir o barulho dos tiros, viram Celso Daniel ser “empurrado, segurado pelo braço e jogado na parte de trás do carro” — escreveu o jornal O Estado de S. Paulo. “Ele — referindo-se a Sérgio Gomes — ficou com o celular, falando. Não dava para saber mais, porque era noite, estava escuro” — completou.
A segunda testemunha, ainda segundo relato de Suplicy ao Estadão, também mora nas imediações do local onde Celso Daniel foi capturado. Identificada como Ana Maria, relatou que seu filho, ao ouvir os tiros do sequestro, foi até a esquina da Rua Antonio Bezerra saber o que havia acontecido: “Meu filho voltou e disse que o cara estava bem, que estava falando ao telefone” — afirmou.
Confirmação
Embora a maioria dos jornais desse conotação de incriminação a Sérgio Gomes, os dois relatos convergiram para o depoimento prestado à Polícia pelo acompanhante de Celso Daniel: a primeira providência que Sérgio Gomes tomou após o arrebatamento do prefeito foi ligar para a Polícia. O delegado Armando da Costa Filho, titular do DHPP, explica que o estado emocional de Sérgio Gomes não era de tranquilidade como interpretaram as testemunhas, mas de pavor. “É assim que funciona a dinâmica comportamental de quem vive algo semelhante ao que ele passou” — explica.
As testemunhas ouvidas por Eduardo Suplicy, em realidade, fortaleceram o relato de Sérgio Gomes e, mais que isso, jogaram um balde de água fria no relato de uma testemunha-chave que o Ministério Público afirma dispor e que, ao passar imediatamente após o tiroteio nos Três Tombos, teria visto, pelo retrovisor do veículo que dirigia, Sérgio Gomes em situação cooperativa com os sequestradores. Nada que combinasse com os relatos das duas testemunhas de Suplicy.
Três dias depois das abordagens de Eduardo Suplicy nos Três Tombos, Sérgio Gomes passou por prova de fogo no Senado. A sessão da CPI dos Bingos também ouviu o ex-secretário municipal de Santo André, Klinger Sousa, e o empresário Ronan Maria Pinto sobre o caso Celso Daniel em suas duas dimensões, a criminal e a política. Sérgio Gomes foi completamente despreparado para o enfrentamento. Acreditou que a sessão seria adiada. Tentou junto ao STF (Supremo Tribunal Federal) evitar o compromisso. Tudo em vão. Os senadores o apertaram durante longas oito horas.
Sérgio Gomes não conseguiu explicar à CPI dos Bingos movimentação bancária entre 1997 e 1999, período em que apareceram depósitos e saques para várias pessoas envolvidas com a Prefeitura de Santo André e empresários das áreas de transporte e lixo.
O arsenal contra Sérgio Gomes se ramificou no campo criminal da morte de Celso Daniel. Acuado sobretudo pelo senador Magno Malta, um dos mais contundentes inquiridores, Sérgio Gomes ouviu diversas vezes o tom ameaçador de que poderia sair preso da sessão caso não contasse a verdade que o senador já havia definido como irrebatível: ele articulou o crime de que foi vítima o prefeito de Santo André. Naturalmente amedrontado, Sérgio Gomes mal conseguia lembrar-se de nomes de interlocutores muito próximos. Magno Malta chegou a imputar-lhe demência.
Frente a frente
Do inferno de Brasília aos céus de São Paulo foi uma questão de dias. Em 28 de novembro, no Ministério Público, Sérgio Gomes foi colocado frente a frente com os sequestradores em nova sessão itinerante da CPI dos Bingos. Desta vez, além de Eduardo Suplicy, o Senado foi representado pelo liberal Magno Malta e pelo pefelista Romeu Tuma, dois dos mais vigorosos acusadores de Sérgio Gomes. O resultado não os agradou e muito menos ao promotor público Roberto Wider. Os sequestradores disseram jamais ter visto Sérgio Gomes. Mais que isso: de novo, Elcyd Oliveira Brito, o John, reiterou a ação de tentativa de extorsão a Sérgio Gomes ao escrever a carta que denunciava o empresário como suposto mandante do crime.
A sessão apresentou outros lances. O senador Eduardo Suplicy relatou (e os jornais se omitiram sobre o assunto) que foi enganado ao divulgar que um pastor evangélico teria filmado o arrebatamento de Celso Daniel durante uma festa numa residência defronte ao local do incidente. O petista, que chegou a pagar passagem de avião ao anunciado pastor, foi informado pela Polícia Federal que seu interlocutor telefônico, com o qual também manteve um encontro pessoal, não passava de embuste. Trata-se de um estelionatário. Um choque em quem defendia a autenticidade da história que comprometia Sérgio Gomes, porque o empresário estaria em situação de colaboração com os sequestradores.
Como se desgraça pouca fosse bobagem, o senador Eduardo Suplicy apresentou nova versão para o crime. Quase quatro anos depois do assassinato, uma líder comunitária da Favela de Heliópolis prestou depoimento em sigilo em que apontou Sérgio Gomes como mandante do sequestro. A motivação conflita com a versão do Ministério Público, de que Celso Daniel foi assassinado porque preparara um dossiê para denunciar Sérgio Gomes, Ronan Maria Pinto e Klinger Sousa por desviar recursos da Prefeitura.
Segundo a testemunha, um traficante conhecido como “Banana”, teria doado R$ 1,5 milhão para a campanha de Celso Daniel à Prefeitura de Santo André, em 2000, em troca da legalização de linhas de transporte de lotação, ramo em que atuaria o traficante.
O desfecho, segundo a testemunha, decorreu do não cumprimento da promessa por parte de Celso Daniel. Sérgio Gomes teria preparado o sequestro para pedir resgate de R$ 3 milhões. O plano teria fracassado porque Celso Daniel teria reconhecido um dos sequestradores, “cabo Lima”, que teria sido segurança na campanha eleitoral.
A versão é inverossímil porque o suposto acerto contrariaria o arcabouço de conluio entre a administração de Celso Daniel e as empresas de transporte coletivo para financiamento de campanhas eleitorais do PT. Poucas administrações municipais foram tão rigorosas no combate aos chamados perueiros como a de Celso Daniel.
Nem o promotor público Roberto Wider aceitou a nova versão. Afinal, nada mais portentoso para desqualificar as investigações do Ministério Público. A versão da nova testemunha não esqueceu de citar Dionísio Severo como participante da operação de sequestro, ponto que coincide com a versão do MP. Dionísio fugiu da Penitenciária de Guarulhos na tarde anterior ao sequestro de Celso Daniel. Tudo isso foi relatado ao senador Eduardo Suplicy. Os advogados de Sérgio Gomes exultaram. Para eles, quanto mais versões conflitantes forem industrializadas, mais reunirão provas da inocência de seu cliente.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP