Caso Celso Daniel

Entenda como se construiu
a história de crime comum

DANIEL LIMA - 05/01/2006

A história que se segue é o resultado de investigações policiais e de fatos comprovados por publicações jornalísticas. Foram 10 delegados da Polícia Civil e da Polícia Federal e 32 investigadores que apuraram a morte do prefeito Celso Daniel. Eles encerraram as investigações em abril de 2002, três meses depois de o corpo do prefeito ser localizado em Juquitiba. Vasculharam a vida dos principais suspeitos iniciais. A começar de Sérgio Gomes, que dirigia o veículo interceptado pelos sequestradores. Isso é história com fundamentação técnica, testemunhal e documental.


Sérgio Gomes e Celso Daniel, amigos de mais de uma década, combinaram jantar mais uma vez no Restaurante Rubaiyat, em São Paulo. De vez em quando eles o faziam. Sérgio estava em Fortaleza. Dirigia uma pequena frota de ônibus de empresa que mantinha em sociedade com Ronan Maria Pinto, detentor de 60% do sistema de transporte coletivo de Santo André. Sérgio conheceu Ronan no início do segundo mandato de Celso Daniel, em 1997.


Sérgio Gomes conversou rapidamente com Celso Daniel ao telefone na quinta-feira, 17 de janeiro. Acertaram o jantar para o dia seguinte. Celso Daniel estava eufórico com o novo ano. Seria coordenador do programa de governo de Lula da Silva. O convite, formulado em novembro do ano anterior, acelerava mudanças na Prefeitura de Santo André. Klinger Sousa, a quem Celso Daniel pretendia fazer sucessor no Paço, assumia a função de supersecretário. A pedido de Celso Daniel, dedicava-se já em dezembro a interlocuções com representantes sociais e econômicos de Santo André. Uma das arestas que decidiu cuidar eram os sempre problemáticos valores de correção monetária do IPTU, dor de cabeça do prefeito de repercussões incendiárias na classe média conservadora.


Vários meses antes da indicação de Celso Daniel para a coordenação do programa de governo de Lula da Silva, Klinger Sousa assumiu a vice-presidência do EC Santo André. A Prefeitura intercedia pelo clube junto a patrocinadores. Sonhava-se com a possibilidade de o Santo André repetir o São Caetano, então vice-campeão brasileiro. Klinger Sousa capitalizaria a imagem nas camadas mais populares. Candidato sem voto popular é apenas candidato, jamais prefeito. Futebol profissional sem recursos financeiros é teimosia.


Jantar sem mulher


Celso Daniel estava tão animado com o desenho de um ano repleto de emoções e de sucesso na quarta tentativa de Lula da Silva chegar à presidência da República que não falava de outra coisa desde o momento em que Sérgio Gomes o apanhou em seu apartamento. Dali, foram até o apartamento de Ivone Santana, mulher de fato de Celso Daniel. Queriam que ela os acompanhasse no jantar em São Paulo. Ivone preferiu não ir. Tinha tarefas com um dos filhos e uma agenda recheadíssima de compromissos partidários no dia seguinte, sábado.


Celso Daniel e Sérgio Gomes passaram duas horas no restaurante paulistano. Celso Daniel tomou seis garrafas de Coca-Cola. Preferia o refrigerante em garrafa de vidro. Especificamente em garrafa menor que a convencional. Sérgio Gomes tomou duas garrafas de vinho. O monotemático encontro em torno dos planos de Celso Daniel para o programa de governo de Lula da Silva consumiu todo o jantar. O ambiente era festivo entre eles. Vibravam com a possibilidade de o PT ganhar as eleições.


No final do ano anterior foi um sucesso o encontro nacional do partido, em Recife, quando o prefeito de Santo André preparou documento quase que irrepreensivelmente aprovado pelos militantes e dirigentes petistas. Ali se desenhava o esperado governo reformista de Lula da Silva com dupla preocupação: manter a estabilidade monetária com crescimento econômico e aquecer a engrenagem social com melhor distribuição de renda.


Celso Daniel e Sérgio Gomes conversaram discretamente o tempo todo. Em nenhum momento se registrou qualquer senão. Vários garçons os serviram. Eles não eram assíduos frequentadores da casa a ponto de serem reconhecidos de imediato pelos funcionários. Também não eram estranhos, porque de vez em quando ocupavam uma das mesas. Nenhum dos dois utilizou telefone celular ou mesmo o aparelho de linha fixa do restaurante durante o tempo do jantar. Estavam tão absortos que pouco se incomodavam com o entorno. Saíram alegres.


Celso Daniel chamava o amigo de “chefe” o tempo todo. Sérgio Gomes chamava o prefeito de “Celso”, simplesmente. Havia entre eles respeito mútuo, embora fossem tão diferentes. Sérgio mais impetuoso e descontraído. Celso mais metódico e introspectivo. No fundo, no fundo, cada um precisava do outro para amoldar a própria personalidade.


Sérgio Gomes não escolheu o caminho dos Três Tombos por acaso. Todas as vezes que jantava com Celso Daniel no Rubaiyat, preferia chegar à Via Anchieta por ali. Celso Daniel jamais intercedeu na escolha. O segurança que acompanhava Celso Daniel geralmente era liberado quando o prefeito se tornava apenas cidadão, fora do expediente de trabalho. Foi assim naquela noite. Era frequente que Celso Daniel como professor, como jogador de basquetebol de veteranos, como marido de Ivone Santana, dispensasse segurança. Não se sentia confortável vigiado fora da agenda oficial. Achava-se um cidadão comum quando despia-se da função de prefeito.


Comerciante escapou


Enquanto Sérgio Gomes conduzia a Pajero em direção aos Três Tombos, os sequestradores ocupavam dois veículos nas proximidades do local. Eles estavam furiosos com o tempo perdido na tentativa de um sequestro planejado de um comerciante do Ceagesp, dono de uma caminhonete vermelha. Onde se metera o comerciante depois de sair do Ceagesp? Mal sabiam que a vítima escolhida porque carregava muito dinheiro resolvera trocar de carro antes de dirigir-se à Baixada Santista, onde pretendia comemorar o aniversário com a namorada. A caminhonete não comportaria confortavelmente três adultos, já que resolvera levar a mãe dele. Foi aí que o comerciante decidiu mudar de planos. Foi para casa nas proximidades do Ceagesp e trocou de carro. Passou a dirigir um Corsa. Os sequestradores esperaram em vão pela caminhonete vermelha.


Quando interceptado por um dos dois veículos dos sequestradores, a primeira providência de Sérgio Gomes foi acionar a sirene da Pajero. Ele queria chamar a atenção para o perigo iminente. Acelerou o carro na descida dos Três Tombos. Foi metralhado dos dois lados. Involuntariamente, ele ou o prefeito Celso Daniel resvalou no câmbio automático. O motor começou a girar em falso e o carro, sem mobilidade, foi parando, parando. Sérgio Gomes acelerava, mas o motor não respondia. Os sequestradores foram chegando. Celso Daniel levantou a trava de segurança, acionou a maçaneta e saiu do veículo de braços erguidos. Dizia “calma, calma”, aos sequestradores que apontavam armas em sua direção.


Celso Daniel era mais alto, branco, porte atlético. Sérgio Gomes, o motorista, moreno, mais baixo. Apanhado Celso Daniel, Sérgio Gomes não interessava aos sequestradores. Deixaram-no para trás, com todos os pertences. Inclusive a bolsa de couro no banco traseiro, onde Sérgio Gomes carregava uma arma. Enquanto Celso Daniel era conduzido ao outro veículo, Sérgio Gomes apanhava o revólver inutilmente. Eles estavam distantes demais e já fugiam em alta velocidade.


Apagão mental


Sérgio Gomes não consegue detalhar o que aconteceu durante o sequestro. Sofreu o chamado apagão mental. O delegado Armando de Oliveira, do DHPP, afirma que Sérgio Gomes entrou em choque. Até policiais experientes, afirma o delegado, perdem o sentido dos fatos quando vivem experiência muito menos traumática do que a de Sérgio Gomes. No primeiro depoimento, provavelmente para disfarçar o medo que o acometeu, Sérgio Gomes fez relato considerado fantasioso pelo delegado Armando de Oliveira. Resgatava detalhes incomuns para quem passou por situação semelhante. No segundo e nos demais, assumiu seus limites de percepção.


O terceiro veículo que teria participado da operação dos sequestradores e que teria Dionísio de Aquino Severo ao lado do motorista é pura ficção. O barulho de motor que se ouve ao fundo de uma gravação de telefonema ao comando policial é de uma picape cujos ocupantes, um casal de idosos, trafegavam pelos Três Tombos no momento do sequestro. Foi o motorista desse veículo que, 500 metros adiante, avisou a Polícia Rodoviária sobre o incidente. Ele disse que teve de fazer manobra radical para fugir do tiroteio. O motorista de um quarto veículo fez algo semelhante.


Diferentemente da versão do próprio Sérgio Gomes, de que Celso Daniel vestia bege, o Instituto de Criminalística produziu exames detalhados com recursos tecnológicos da USP (Universidade de São Paulo) e chegou à constatação de que a calça que Celso Daniel vestia no restaurante era a mesma com que foi encontrado em Juquitiba. Não houve troca.


As sete testemunhas mortas que de alguma forma tiveram participação no caso Celso Daniel não estão diretamente ligadas à possibilidade, descartada pela Polícia, de crime encomendado. Nem mesmo Dionísio de Aquino Severo, o fugitivo de helicóptero da Penitenciária de Guarulhos. Ele foi executado — e há provas materiais e testemunhais no inquérito — por causa de briga de quadrilhas no interior da prisão. Ele se opunha ao PCC, organização criminal que domina os presídios paulistas. Dionísio resolveu inventar participação no caso Celso Daniel para obter proteção especial. Ele jamais conheceu Sérgio Gomes e muito menos namorou Adriana Pugliese. Nem foi segurança na Prefeitura de Santo André.


Documentação incorporada ao inquérito pelos advogados de defesa comprovam a incidência de desajustes em veículos Pajero de câmbio automático relatados por Sérgio Gomes. O chamado câmbio em falso, que consiste numa zona neutra provocada por um simples esbarrão no sistema de troca de marcha, é ratificado inclusive por laudo da Mitsubishi, fabricante do utilitário.


A inocência de Sérgio Gomes que consta do inquérito policial encerrado em abril de 2002 foi uma obra tormentosa para o homem que acompanhava Celso Daniel em 18 de janeiro. A vida dele foi vasculhada implacavelmente. As investigações partiram do princípio de que Sérgio Gomes era potencialmente o mentor do sequestro seguido de assassinato. Ele estava com o prefeito e não foi levado junto. O veículo empacou. Havia indícios de irregularidades administrativas na Prefeitura de Santo André, analisadas dois anos antes pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. As denúncias não se comprovaram, mas Sérgio Gomes aparecia como espécie de secretário sem pasta. Tudo convergia para a possibilidade de armação do sequestro. Sérgio Gomes passou com louvor por todas as medidas policiais.


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