Caso Celso Daniel

Tortura Criminal e Tortura Política,
eis um espetáculo de manipulação

DANIEL LIMA - 05/02/2006

Atenção senhoras e senhores. Vai começar o maior espetáculo do mundo político eleitoral. Vamos abrir as cortinas para um show de striptease semântico. De um lado temos a Tortura Criminal; de outro, a Tortura Política. Como os senhores podem observar, há diferenças enormes entre uma e outra. Como? Os senhores não conseguem notar o que separa uma da outra? Não é possível, não é possível!


Como pode acontecer um negócio desses se tanto a Tortura Criminal quanto a Tortura Política são protagonistas dessa grande opereta, porque o que está em jogo de fato, sem retoque, é a morte do prefeito Celso Daniel e a versão de que seu melhor amigo, Sérgio Gomes da Silva, é um dos mandantes do assassinato, iniciado com um sequestro na noite de 18 de janeiro de 2002. Isso mesmo: 2002. Faz tempo, não é verdade? Mas o que é o tempo quando se quer provar o improvável, lançar escuridão onde deve prevalecer luzes?


“Está vendo, horrorosa Tortura Criminal? Está vendo? Veja o que está provocando de problemas. Essa mania que você tem, de vez em quando, de se parecer comigo, só poderia mesmo terminar nesse imbróglio todo. Não lhe disse para não entrar em campo para melar esse jogo? Só fico triste porque a subestimei. Jamais imaginei que alguém pudesse confundi-la comigo, você toda desajeitada, toda óbvia, enquanto sou mais refinada, mais interrogativa, mais inteligente”.


“Deixe de ser idiota, Tortura Política, deixe de ser idiota. Está certo que qualquer imbecil minimamente letrado em matéria de violência sabe distinguir eu de você. Tortura Criminal, minha identidade, é essa aí, escancaradamente no corpo do prefeito Celso Daniel. Dizem que sou mais modesta, que não tenho alguns requisitos dos bem-nutridos intelectualmente, mas, como você vê, quando eles querem, fico parecidíssima com você, parecidíssima. Sua erudição de nada vale nesses momentos. Como dizem os filósofos, política é a arte da cegueira, da dissimulação, da prestidigitação, dessas coisas que todos nós sabemos”.


“Somos parecidíssimas só na opinião de quem quer distorcer os fatos, de quem quer usar subjetividades para atrapalhar a realidade. Qualquer pessoa sabe que Tortura Criminal, que é você, nua e crua, é a consecução de um crime sem rebuscamento, sem ideologia, sem conteúdo histórico. Tortura Criminal é a ausência de árvore genealógica que sirva ao menos para explicar por que apareceu em cena. Sou diferente de você, Tortura Criminal, porque tenho tudo isso. Quando se fala em Tortura Política, remontam-se casos antológicos, de gente geralmente famosa que morreu em combate por alguma razão valiosa para pelo menos uma parte da comunidade, do País, da humanidade. Admito sem receio que não estou apenas a serviço do bem, mas também ninguém pode me acusar de ser disponível exclusivamente para o mal. O Hitler andou me usando um bocado, mas o Che Guevara, um revolucionário, que também me adotou para fazer de Serra Maestra o salto definitivo para o sucesso, não dava tréguas a seus adversários e até hoje é reverenciado. Como você pode notar, tenho história de fato. Você é confundida com estatística, jogada em banco de dados geralmente esquecidos pelas autoridades que adoram maquiar informações. Está banalizada todos os dias nas emissoras de rádio e televisão. Deus me livre de tanto populismo. Você é o Ratinho, eu sou Chico Buarque”.


“Francamente, Tortura Política, estou pouco me lixando para isso. Só sei que tenho aparecido nos jornais, nos sites de Internet, na televisão, e sempre com a sua cara. Isso mesmo: estão dizendo e reafirmando que eu, Tortura Criminal, virei Tortura Política. Que matei o Celso Daniel usando todos os seus apetrechos. Veja só que loucura. Já imaginou quanto me valorizaram, se é assim que você, do alto de sua arrogância acrobaticamente transgressora, se acha tão acima de mim? Sou a Tortura Criminal vista como Tortura Política. Sabe o que isso significa? Todas as marcas que deixei no corpo do prefeito Celso Daniel ganharam conotação de crime sob encomenda porque os sequestradores se assustaram com o peixe grande que colheram e temiam ser reconhecidos pelo prefeito se o liberassem. Só apareci nesse caso porque quem me concebeu com essa capacidade detratora própria do Diabo não quis que o caso Celso Daniel fosse um crimezinho qualquer, desses que, infelizmente, acabam por me identificar sem a menor dúvida e compaixão como Tortura Criminal. Foi deliberado que o caso Celso Daniel seria transformado em crime de interesses políticos e financeiros. Estão dizendo que estou no corpo maltratado do Celso Daniel porque queriam tomar do prefeito um dossiê que conteria uma porção de informações denunciatórias contra uma rede de supostos quadrilheiros da Prefeitura de Santo André. Como você nota, ganhei status. Sou Tortura Criminal, mas virei Tortura Política. De nada adianta o delegado da Polícia Federal que foi à CPI dos Bingos dizer que um de meus patronos na troca de sexo, ou melhor, de identidade, o Carlos Delmonte, tenha afirmado, no frescor do corpo estendido do Celso Daniel, que não se tratava de tortura. E muito menos que, por motivos que só o Diabo sabe, ele, Carlos Delmonte, tenha resolvido transformar eu em você. A Imprensa já me deu nova vestimenta. Estou parecido com você e está acabado. Sou Tortura Criminal disfarçada de Tortura Política”.


“O que lamento profundamente, cara Tortura Criminal, é que você se regozije com essa falsidade ideológica. Suas digitais são umas, quase vadias, enquanto as minhas são outras, com nobreza. Que pena que esse legista substituto, o tal de Paulo Vasques, seja tão impreciso ou tenha preferido não se aprofundar para esclarecer de vez que as marcas no corpo do Celso Daniel são suas, de Tortura Criminal, de bandidos amedrontados com a possibilidade de serem reconhecidos caso libertassem o prefeito e que, por isso, deflagraram uma sequência de tiros que provocaram tantos danos corporais. Aliás, foi isso que os sequestradores confessaram nos depoimentos a um batalhão de delegados de Polícia. Bastava o legista dizer que as marcas no corpo do Celso Daniel são claramente de crime de morte, de Tortura Criminal, sem qualquer enviesamento ideológico no sentido de denúncia de dinheiro que teria sido desviado da Prefeitura de Santo André. Como acreditar nessa versão, cara Tortura Criminal metida a Tortura Política, se os próprios promotores públicos ainda outro dia chamaram a Imprensa para dizer que o Celso Daniel participava ativamente das falcatruas, que encontraram sacos de dinheiro em seu apartamento? Ora, Tortura Criminal, você virar Tortura Política porque me inveja, tudo bem, mas ninguém tem o direito de zombar da minha inteligência”.


“Reconheço, querida Tortura Política, que andaram abusando de suas entranhas filosóficas e existenciais. Que sua genealogia é mesmo mais nobre, porque não é qualquer pé rapado que consegue entendê-la e executá-la, mas o que posso fazer se me promoveram com tanto estardalhaço? Sou Tortura Criminal, mas nestas alturas do campeonato, como o caso Celso Daniel é esbórnia só, porque, como você sabe, o que vale é confundir, não elucidar, estou aí na área, pronto para fazer mais um gol. Minhas marcas são nítidas, próprias de quem não tem valor agregado, mas como a subjetividade me favorece, já que usam deliberadamente ou não a simplicidade do verbete Tortura para designar o assassinato do Celso Daniel, o que resta é você chorar, chorar e chorar. Sou Tortura Criminal, você é Tortura Política. Apareceu em cena a tal da Tortura, simplesmente Tortura. Ela está do meu lado para eu me transformar em você. Azar seu”.


“Para quem não tem pedigree, cara Tortura Criminal, até que usou bem as palavras para me distinguir de você. O que de fato estou vivendo não tem, no fundo, no fundo, nada a ver com você. Tem a ver com a Tortura. Sim, com a Tortura sem sobrenome, sem endereço fixo, sem força definidora no léxico. Diria, me desculpe a franqueza, que essa Tortura não passa, de fato, de uma sombra sua. Uma sombra nebulosa, lançada propositadamente para sufocar a sensatez. Não sei por que esses Aurélios e esses Houaiss da vida não se tocam para compreender que precisam adaptar seus legados culturais às circunstâncias nem sempre objetivas com que os homens se lançam para puxar a brasa de interesses muitas vezes inconfessos para suas respectivas sardinhas de manipulação. Custaria eles terem distinguido com clareza em seus dicionários o que sou eu, Tortura Política, e o que é você, Tortura Criminal? Ora bolas: se em situação de estresse emocional e de morte física há matizes que me diferenciam de você, porque, como você sabe e repito, sou mais nobre, não tem sentido nos botarem no mesmo saco de gatos. Só poderia dar no que está dando. As marcas no corpo do Celso Daniel e o relato escrito dos legistas provam o que vou dizer, são típicas de tortura solteira, de tortura simples, de tortura sem sofisticação. Enfim, de Tortura Criminal, que é você”.


“O que você precisa entender, querida Tortura Política, é que chegou a minha vez no pedaço. Que, na dúvida, papagaio come o milho e periquito leva a fama. No caso, o periquito é você, Tortura Política. E vamos em frente porque o show não pode parar. Cada sessão dessa CPI dos Bingos é um flash, como dizia aquela personagem de telenovela, e eu sou a estrela principal”.


“Nananinanão! Pare com isso Tortura Criminal. Veja quanta gente está nos assistindo? Reparou? Queira ou não, somos igualmente protagonistas do espetáculo. É verdade que temos concorrência enorme. Não falta quem quer nos tomar o lugar. Inventaram até um pastor evangélico, veja só, que coitado do senador Suplicy, não passava de estelionatário. Reparou no desastre? Um senador da República, estimulado não sei por quem, ou pela própria vaidade, se meteu a investigar e tentou nos roubar a cena. No máximo, no máximo, aceito dividir o palco com você, Tortura Criminal, e com sua sombra maliciosa, a tal de “Tortura”. Agora, ter de suportar pastor evangélico, Maria, a Louca, Lalo e tantos outros, não dá”.


‘Nesse ponto também estou com você. Só não entendi esse Lalo? Quem é esse cara”.


“Como quem é esse cara? Será que você não lê jornais, revistas. Não vê televisão?”


“Vejo, leio, assisto, mas estava tão entretida com meu próprio brilho dos últimos dias, quando me catapultaram à estrela maior do Grande Circo Celso Daniel, que nem reparei nesse tal de Lalo”.


“Talvez seja porque nem todo mundo chamou o Lalo de Lalo. Muitos o identificaram simplesmente como o menor que fugiu da Febem, foi recapturado e resolveu dizer para a Polícia e para os promotores públicos que não executou o Celso Daniel. Que foi obrigado a assumir o crime porque era menor na época”.


“Êpa, êpa, agora sim me lembrei. Esse Lalo é falastrão. Mais que isso: é um bobalhão, porque já negou e já confirmou pelo menos 10 vezes que matou e que não matou o Celso Daniel. Mas, pensando bem, ele não é trouxa não. Ele é de alguma forma meu parceiro, porque para aqueles que não entendem patavina, a dúvida se foi ele ou que matou pode levar os incautos a sugerirem diferença entre Tortura Criminal, que sou eu, e Tortura Política, que é você e, agora, também eu”.


“Muito bem, Tortura Criminal. Já vi que você só tem cara de idiota, porque parece que está assim com os homens que querem vê-la dominando a cena. Aliás, estou desconfiado de que você tem algum ponto para repetir tudo o que querem fazê-la estrela maior do show”.


“Não entendi. Que história é essa de ponto”.


“Ora, não se faça de inocente. Você que anda frequentando a mídia eletrônica como ninguém sabe que ponto é um dispositivo que se usa num dos ouvidos para repetir tudo o que alguém fora de cena vai dizendo”.


“Que é isso, Tortura Política. Não me subestime. É verdade sim que tenho esse negócio aqui no ouvido, mas nem sabia que se chamava ponto. Mas saiba que nem sempre dou bola para o que ouço. Acho que tem uns caras que não entendem lá essas coisas de espetáculo. Não são do ramo como imaginam. Por isso, em muitas ocasiões, sigo minha própria experiência”.


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