Caso Celso Daniel

Liderança de delegados afirma que
governo do Estado politiza crime

DANIEL LIMA - 05/02/2006

Sem pronunciar uma única vez o nome do homem que os promotores públicos de Santo André apontam como um dos mandantes do assassinato do prefeito Celso Daniel, o delegado de Polícia André Di Rissio é enfático nesta entrevista exclusiva: o governo do Estado, através da Secretaria de Segurança Pública, comandada pelo promotor público Saulo de Castro Abreu, politizou o caso Celso Daniel e, motivado ou não por razões inconfessáveis, pode colocar um inocente na cadeia. André Di Rissio acaba de ser eleito presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo e se coloca como interlocutor da classe no caso Celso Daniel.


Considerada a maior liderança de uma categoria que reúne cinco mil profissionais, André Di Rissio afirma que o caso Celso Daniel já está encerrado e não apresenta qualquer fato novo com relevância suficiente para desnortear a linha de investigação adotada.


Delegado de Polícia há 16 anos, com atuação em Santo André e São Caetano, André Di Rissio produz mais que declarações candentes sobre o caso Celso Daniel. Ele lança, também, dois petardos em defesa da classe. Primeiro, garante que a entidade que dirige não vai aceitar passivamente que o próximo governador ou governadora do Estado nomeie promotor para o comando da Secretaria de Segurança Pública, prática inaugurada em 1992 pelo também promotor público que viria a ser governador do Estado, Luiz Antonio Fleury Filho. Sua explicação: “Polícia e política são incompatíveis. Não aceitaremos mais essa situação”.


O outro ponto da múltipla e contundente crítica de André Di Rissio ao que insiste em chamar de interferência política na Polícia são os baixos salários. Exibe um dos estudos que o levaram a sensibilizar o eleitorado. Trata-se da precarização salarial dos delegados paulistas, últimos colocados no ranking de vencimentos da categoria no País. São apenas R$ 3 mil brutos por mês contra mais de R$ 9 mil pagos pelo Estado do Mato Grosso, que ocupa, nesse particular, o primeiro lugar: “Acho que é mais vergonhoso para quem paga do que para quem recebe” — afirma em tom de desabafo.


O jovem presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo afirma que resolveu mergulhar nos autos do inquérito do caso Celso Daniel para contestar os argumentos subjetivos dos promotores criminais de Santo André. E aceitou de pronto um debate. O que transparece da entrevista com André Di Rissio é que a mídia, de maneira geral avassaladoramente pró-versão do Ministério Público, posicionando-se num enfrentamento invulgar com a conclusão de que se tratou de crime comum tomada por uma força-tarefa composta por 10 delegados e 32 investigadores, conta com uma ótima alternativa se quiser exercitar a democracia da informação.


E essa é uma condição indispensável que, segundo André Di Rissio, o secretário de Segurança Pública não cumpriu ao proibir os Delegados de Polícia de dar declarações durante mais de três anos, embora liberasse os promotores criminais de Santo André para dizer o que desejassem. “Sou o porta-voz não só dos delegados do DHPP (Departamento de Homicídio contra a Pessoa e o Patrimônio) como, também, de todos os delegados de Polícia paulistas, porque é meu papel levar a verdade ao povo de São Paulo” — desabafou Di Rissio.


Para a Polícia Civil de São Paulo, o caso Celso Daniel está encerrado ou ainda é objeto de dúvidas?


André Di Rissio – Tornei-me, em razão da imperiosa necessidade de prestigiar e defender a Polícia Civil de São Paulo, um especialista no Celso Daniel, pessoa com quem nunca tive qualquer contato, o mesmo se dando em relação a todos os envolvidos nas apurações. Falo, então, assim, não só com a legitimidade de quem teve quase 60% dos votos válidos em uma eleição tão difícil quanto é a nossa, dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, mas também com o ideal de cumprir a obrigação de defender minha instituição publicamente, tantas vezes quantas forem necessárias.


Repito que me julgo, modestamente, um especialista no referido caso Celso Daniel, do qual pouco sabia. E assim porque estudei muito todo o inquérito para responder a jornalistas que conhecem o caso como você, e em outras ocasiões, a outros profissionais da Imprensa, alguns deles causando a impressão de estarem mal-intencionados, doutrinados, com posicionamentos absolutamente politizados acerca de uma instituição que deveria ser guardiã dos interesses da sociedade. Eu me refiro especificamente ao Ministério Público. O caso Celso Daniel, para mim, é um caso findo. Acabou. Teve solução. E a solução foi levada aos autos.


É óbvio que, assim como em qualquer outro caso, se amanhã ou depois surgirem fatos novos que evidenciem uma nova possibilidade de investigação que se traduza em desfecho diverso do que ocorreu, as investigações têm que ser retomadas, até e principalmente por força de Lei. Só que até a data presente, segundo me consta, nada ocorreu, mesmo em face do empenho de minha colega, a doutora Elisabete Sato, agora capitaneando os trabalhos. Ora, buscar arrimar-se a condução de uma investigação policial nas palavras de um assassino confesso que, a cada vez que é instado a falar apresenta versão divergente, o que ocorre na quase totalidade dos casos, é ridículo.


E isso deve ser de conhecimento do Ministério Público que, no contraditório, participa do processo e vê que os incriminados, quase invariavelmente, transmudam suas versões na mesma idêntica proporção da reiteração de suas oitivas. Ora, no caso de que aqui estamos tratando, se há um “menor”, ouvido nada menos do que 10 vezes sobre o mesmo fato, segundo palavras de meu colega do DEIC Edson Santi numa dessas recentes CPIs, parece-me óbvio que aquele também apresente estórias irreais e conflitantes e que não podem, cada uma delas, dar ensejo à desconfiança em relação ao aparato de segurança pública. Por isso é que fico triste, não só como representante de uma classe mas, também e igualmente, como cidadão, que se trate de um cadáver insepulto e que, além disso, demonstra enorme desrespeito por quem deveria zelar por ele e por sua família.


Num segundo momento, nota-se que se trata, ao mesmo tempo, de um caso que desprestigia a Polícia na medida em que tivemos um fato concreto que está muito longe de ser uma mera versão, enquanto o Ministério Público tem suposições vagas, imprecisas, indeterminadas mas que, ao contrário do trabalho policial eficiente e silencioso, acaba tornado público porque para eles, os doutores promotores, não há mordaça.


Algumas dessas suposições, e me perdoem os promotores públicos pela ausência porque gosto de falar diretamente a eles em debates como, aliás, já ocorreram, são absolutamente risíveis. E o digo porque, em tese, a melhor investigação policial é aquela que traduz um fato relacionado ao seu momento, tornando-se claro, então, nos termos que já mencionei da própria Lei Federal que instituiu o Código de Processo Penal, que, surgindo novo “fato”, torna-se imperiosa nova investigação, devendo se destacar que essa “nova investigação” há de ser conduzida com a mesma profundidade da anterior, concluída embora e a despeito da perda de força pelo lapso temporal perpassado. Quem é que conserva memória de tudo por todo o tempo?


Por exemplo?


Di Rissio – Algumas testemunhas elencadas pelo Ministério Público são absolutamente risíveis. Lembro-me de uma pessoa chamada Maria, conhecida no DHPP como Maria, a Louca. Em todos os casos de repercussão no ABC, ela se apresenta como alguém que poderia elucidar alguma coisa. Lembro-me, também, de uma outra versão em que alguém disse que determinado bandido foi visto no Paço Municipal de Santo André numa época em que estava sendo procurado pela Polícia. Ora, tratam-se, evidentemente, de elementos descartáveis, porque são pouco digeríveis. Quem conhece segurança pública sabe que isso não existe. Dificilmente alguém, na prática, vai se expor, mormente em Santo André, que tem os três poderes numa mesma praça, com fluxo imenso de pessoas.


Depois o (Eduardo) Suplicy se envolveu numa versão fantasiosa do pastor evangélico que não existe. Acho que aquela situação deve ter abalado a própria imagem do respeitado senador da República. Veja, você avançou muito mais na sua revista em termos de investigação do que o próprio Ministério Público. Você tem mais fatos do que o Ministério Público e isso desmoraliza a investigação. Não porque a Imprensa não possa ou não deva aprofundar-se em suas reportagens investigativas. Mas o que não se pode é criar na população uma sensação de absoluta impunidade em relação à segurança, o que não ocorre. O DHPP é um departamento de elite da Polícia Civil de São Paulo.


Se tivéssemos que politizar o caso, digamos que fosse essa a vertente que a mim se apresenta como inaceitável, teríamos que erigi-la a favor do governo do Estado, que nos paga ainda que humilhantemente. Que interesse teria o DHPP, com profissionais vocacionados, brilhantes em seus fazeres, que de outro lado ganham mal, em confrontar a versão que o Poder Executivo quer ver melhor aceita? A Polícia Civil de São Paulo é feita por profissionais isentos, nem da direita nem da esquerda. E Polícia, você sabe, faz-se séria e profissionalmente, sem tendenciosidades.


O senhor está querendo dizer que haveria todas as condições de subserviência para o DHPP adaptar as investigações ao conceito de crime político?


Di Rissio – Claro, claro. Ou pelo menos de insinuar isso. É o que se vê. Recorde-se do caso de Ribeirão Preto, em que a inconsequência nas falas de um promotor local acabou por municiar maldosamente pessoas sobre um acontecimento envolvendo o atual ministro da Fazenda. Não quero entrar no mérito, mas foi nessa mesma esteira. Lamento, com profunda tristeza como cidadão e não como dirigente classista, que o Ministério Público se preste ao papel de politizar e de acabar, com isso, por criar tendências que em algumas das vezes não se coadunam com a realidade.


Como o senhor vê o fim do caso Celso Daniel?


Di Rissio – Em realidade, neste caso e em razão do que já mencionei, entendo a atuação do Ministério Público como quase um desserviço. Criou-se, neste caso, um verdadeiro legado, que não se pode eternizar, de desconfiança nas instituições. Mais do que isso. Eu diria que foi, mesmo, quase um acinte, já que pessoas foram achincalhadas sem qualquer prova. E se fosse o contrário? E se o alvo da verve maledicente alheia fosse o Ministério Público? Como se comportariam seus integrantes?


O Ministério Público não tem, em seu entendimento, uma única prova capaz de mudar as investigações?


Di Rissio – Nenhuma. Até porque, se o tivesse, já a teria apresentado com aquele espalhafato que é típico desses acontecimentos. Os promotores continuam com a mesma cantilena, o que me leva a crer que pretendam politizar ainda mais o assunto. E, o que é mais lamentável, fazendo uso do comportamento tíbio dos irmãos da vítima. Isso acaba corroborando aquela sensação que invade os homens médios, nas barbearias, nos espaços públicos, nos ônibus, de desconfiança nas instituições.


O que poderia acontecer com uma testemunha-chave como João Francisco Daniel que, ouvido pelo DHPP logo depois da morte de Celso Daniel, disse que não havia desconfiança alguma sobre o assassinato do irmão, que o prefeito não recebeu ameaça alguma de morte, que não fez qualquer comentário sobre sua segurança pessoal que pudesse preocupá-lo e, três anos e meio depois, na CPI dos Bingos, mudou o discurso, afirmando que o irmão confessou-lhe cinco dias antes do caso que estava sendo ameaçado, entre outras informações que conflitaram com o depoimento à Polícia Civil? Como pode alguém dizer coisas tão diferentes?


Di Rissio – O pior não é o conteúdo do que foi dito, mas o lapso temporal decorrido entre uma e outra falas. Que interesses haveria na anterior omissão de fatos que agora aparecem e são contundentes, caso fossem verdadeiros, e que autorizassem tamanha demora para aparecer?


O que o senhor entende sobre isso, doutor?


Di Rissio – Entendo que isso aparece sob o espocar dos flashes. E que esconde o interesse inconfessável de mesclar duas atividades que não se coadunam, como já disse, que são as atividades policial e política.


Quem estaria por trás disso?


Di Rissio – Embora não haja alguém a indicar, vislumbro interesses políticos que julgo inconfessáveis e que se realçam enquanto a Secretaria de Segurança Pública estiver comandada por um promotor de Justiça.


O senhor quer dizer que tem a ver uma coisa com outra?


Di Rissio – Acho que existe certa falta de isenção nesse contexto.


O senhor acha que o caso Celso Daniel…


Di Rissio – Por que a Polícia não fala e o Ministério Público fala? Quantas vezes a Polícia foi impedida de dar a sua versão, que nem é sua posto que é pública e se consubstancia em autos de inquérito policial que se submete ao Judiciário, sobre o caso?


Como o senhor explica essa situação de mutismo que perdurou durante mais de três anos?


Di Rissio – Ora, a democracia não pode sustentar e nem pretender que valha uma versão como essa, parcial, tendenciosa, que quer ver reconhecida o Ministério Público. Quem investiga e é profissional e especialista nisso é a Polícia Civil, tornando-se, assim e então, a primeira e mais confiável fonte de notícias. Na medida em que um promotor público comanda a Secretaria de Segurança Pública e proíbe o delegado do DHPP de falar e na outra mão autoriza, senão apóia, um seu colega em sua fala, não consigo entender isso como normal.


Agora como dirigente classista, o senhor vai tomar alguma posição com relação ao caso Celso Daniel?


Di Rissio – Sou um crítico contumaz, em todos os veículos de comunicação. Manifesto-me publicamente e faço até outros elos. Acho que a derrocada, o desmonte da Segurança Pública do Estado de São Paulo, coincidiu com a chegada desses senhores à pasta de Segurança Pública.


A quem o senhor se refere quando fala “desses senhores”?


Di Rissio – Aos promotores públicos.


Há quantos anos a Segurança Pública de São Paulo é comandada por membros do Ministério Público?


Di Rissio – Doze anos, senão mais. E nesse período o que se tem mais visto é política que Polícia. Não aceitaremos mais essa situação. Aliás, aproveito este ensejo e faço um apelo ao próximo governador, ou governadora, porque não tenho bola de cristal, para que não coloque mais na pasta da Segurança Pública um promotor de Justiça. Se isso acontecer, o novo governo já se iniciará com meus colegas delegados de Polícia desmotivados e, seguramente, insatisfeitos, senão infelizes, com a escolha incorreta que se faria.


O senhor tem sido observado como amálgama capaz de restaurar a auto-estima dos delegados de Polícia. O senhor acredita que a principal bandeira para que a situação se transforme é colocar um delegado de Polícia na Secretaria de Segurança Pública?


Di Rissio – Não precisa nem ser delegado. O resgate da auto-estima do delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo passa, necessariamente, por medidas pontuais importantes.


Por exemplo?


Di Rissio — Certamente você não aceitaria um padeiro para dirigir a redação, como um padeiro, seguramente, não aceitaria um repórter, um jornalista, um profissional de Imprensa para conduzir seus fornos e seus negócios. É o nosso paralelo com o Ministério Público. A Polícia precisa de independência e autonomia, sem qualquer interferência do Executivo, especialmente na condução daquilo que é sua especialidade: a investigação criminal. A investigação criminal, o inquérito policial, se faz para o Estado e não para o governo. E o que é particularmente constrangedor, nestes dias, é o fato de que há, desabridamente, uma disputa: o Ministério Público quer se transformar em Polícia, tornando-se titular das investigações. E isso não pode ocorrer não só pela afronta constitucional que representa como, sobretudo, pela falta de especialidade, já que os promotores públicos não frequentaram academia de Polícia, curso existente exclusivamente para os nossos quadros.


Assim, reafirmo que o novo Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo não precisa ser, necessariamente, um delegado de Polícia. Pode ser um jurista, pode ser um oficial graduado das forças armadas ou mesmo da co-irmã Polícia Militar. Pode-se até imaginar um sistema de rodízio, do qual participem ambas as Polícias, Civil e Militar. Por que não? O que questiono, em face de tudo isso que mencionei, é o próprio instituto da Secretaria de Segurança Pública. Você sabe que temos um delegado-geral? Ele é a nossa autoridade máxima. Por que essa figura importantíssima em nossos quadros é autorizada a despachar diretamente no Palácio de Governo?


Qual é o grande problema além do que o senhor denuncia como politização da secretaria nos últimos 12 anos? Os promotores públicos não têm a vivência de Polícia para decidir?


Di Rissio – Eles não têm nada de Polícia. Absolutamente nada. E nós nos debatemos há muito tempo sobre a questão institucional que está no cerne do problema, que é o poder de investigação. Ora, como vou negociar um aumento de salário com meu chefe se ele é meu algoz no plano institucional? Parece bastante claro que esse meu comandante, e ao mesmo tempo meu adversário nesses planos de debates e institucional, vá manter a Polícia da maneira como está hoje: manietada, amordaçada, com vencimentos muito aquém da dignidade que o cargo impõe, e tudo isso a despeito do mais alto índice de elucidação de crimes de que se tem notícia na história do Estado de São Paulo.


E saiba que isso se deve exclusivamente ao excelente pessoal que abraça, por vocação, por patriotismo, por um sentimento cívico exacerbado, quase um sacerdócio, o ofício de profissional de Polícia. Como é que vou questionar essa legitimidade na escolha do delegado-geral de Polícia? Tem que ser votado por lista tríplice. No Ministério Público, isso funciona; na Polícia, não. O presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo é escolhido pelos seus pares, num avanço democrático e histórico. O que impede a eleição do delegado-geral de Polícia? Precisamos ficar à margem da influência política. Não vejo por que sustentar isso.


O senhor também tem batido forte na grade salarial dos delegados de Polícia de São Paulo, lanterninha no ranking nacional.


Di Rissio – Isso é uma vergonha, uma vergonha para o povo de São Paulo e que evidencia bem o caráter de preocupação, entre aspas, que o governo tem com a Segurança Pública. Tudo o que o governador fala, eu anoto. Outro dia ele foi à televisão. Disse, em rede nacional, que ética também é zelar pelos gastos públicos. E a economia que Sua Excelência faz é nos nossos salários. Ora, pagar R$ 3 mil por mês a título de salário bruto para um delegado de Polícia, bacharel em Direito, vencedor de difícil concurso público, pessoa que se predispõe aos riscos que são inerentes à carreira policial, é uma ofensa.


E saibam todos, nós, como os promotores públicos, temos uma mesma origem: formamo-nos em Direito, prestamos concurso público, especializamo-nos cada qual em sua área. Só que eles, um mês após a investidura no cargo, recebem, em seu holerite, mais do que o maior salário possível na carreira policial, que seriam os vencimentos de uma autoridade policial depois de 40 anos de serviços prestados. Um mês, por 40 anos. Há ética nisso ou se trata de uma situação adredemente preparada?


Adredemente preparada?


Di Rissio – Sim. Por exemplo: dizem que a Polícia não fala, especificamente no caso Celso Daniel. Ora, a Polícia não fala porque o secretário de Segurança Pública, que é promotor de Justiça, não deixa. Não é porque o doutor Armando de Oliveira, o doutor José Masi, ambos do DHPP, não quisessem falar ou não tivessem o que falar. Bem ao contrário: eles eram as pessoas mais indicadas para quaisquer esclarecimentos à opinião pública sobre as investigações conduzidas. E observe, meu caro, que só eles, como responsáveis pela apuração policial, é que teriam o “timing” para prestar esses esclarecimentos sem qualquer prejuízo ao trabalho profissional que empreenderam.


A imagem que se passou é que, ao se calarem, eles consentiam com tudo aquilo que os promotores públicos divulgavam à mesma Imprensa.


Di Rissio – Claro. Por isso não culpo a Imprensa. Se você vai procurar a fonte para falar sobre a matéria que lhe interessa e essa se nega a dar qualquer subsídio, você vai à fonte subsequente. Só que o que pouca gente sabe é que os delegados responsáveis pelo inquérito estavam impedidos, proibidos de falar. Foram cerceados pelo promotor que nos comanda.


Isso criou espécie de vício, doutor, porque agora, mesmo com os delegados à disposição, os jornalistas continuam a ouvir apenas o Ministério Público, ou a privilegiar o Ministério Público, como se as informações dos delegados não tivessem a menor importância.


Di Rissio – Trata-se de efeito residual. Fiquei perplexo quando a Imprensa, por exemplo, publicou que dois promotores ofenderam publicamente o meu delegado-geral. Numa entrevista, sugeriram que meu superior hierárquico maior, o verdadeiro chefe da Polícia Civil, deveria advogar para um acusado. Ou deveria se apresentar como testemunha de defesa. Isso é inaceitável, para não dizer uma vergonha. Um homem com a biografia do meu delegado-geral, doutor Marco Antonio Desgualdo, não pode ser insultado dessa maneira insidiosa e, porque não dizer, irresponsável. Atribuo isso ao desgaste dos promotores que o atassalharam, que deveriam estar bastante aborrecidos com os sucessivos reveses sofridos em suas pretensiosas investigações que redundaram em nada mais do que conclusões precipitadas, próprias do amadorismo. E amadorismo é o que não se quer na Polícia Civil de São Paulo, não é verdade?


Eles fizeram essa afirmação em resposta a uma entrevista do delegado-geral a uma emissora de televisão?


Di Rissio – Não quero fazer a defesa de ninguém. Entretanto, sabemos todos que no sistema jurídico pátrio só há bandido, pedófilo, tarado, ladrão, corrupto, traficante, assassino depois de pronunciamento da jurisdição. Em que momento? Na sentença criminal condenatória. E mesmo assim só depois que essa mesma sentença não tiver mais possibilidade de alteração através de recursos. E que eu saiba, promotor não julga. Como não investiga. É óbvio que temo, como devemos temer todos, a existência de um Estado que não fiscaliza seus fiscais.


Daí a pergunta: quem supervisiona as pessoas que, em arroubos momentâneos e atribuindo-se uma autoridade que não têm, propalam ofensas? Caluniam, maculam a honra alheia. Quem os repreende ou os desaprova? No campo de investigação policial profissional, que é de responsabilidade exclusiva da Polícia Judiciária, não pode haver leviandade.


O caso Celso Daniel pode se tornar o Waterloo do Ministério Público em relação à disputa constitucional de investigar ou não, cuja definição está a cargo do Supremo Tribunal Federal?


Di Rissio – Acho que esse, como outros casos, são divisores de águas. Sou delegado de Polícia há 16 anos, muitos dos quais no ABC, onde me orgulho muito de ter trabalhado. Nunca vi, em minha experiência, promotor público investigar, por exemplo, um furto de marmita, uma briga entre vizinhos, uma desinteligência no trânsito. Que são acontecimentos relevantes para a sociedade que precisa se manter ordeira e sob o império da lei.


O que me parece é que promotor gosta de investigar aquilo que motiva o Daniel Lima a fazer perguntas. Gosta de apresentar sua versão sobre essas apurações que acaba por empreender ao arrepio da norma constitucional o que, aliás e ao contrário do que se dá conosco, autoridades policiais, lhe é permitido, invariavelmente atrás de uma versão que é a da acusação, porque este é, também por ordem constitucional, o monopólio do Ministério Público. Mas o promotor não pode ter uma vírgula de direito a mais do que o advogado, sob pena de se desnaturar o Estado de Direito. O contraditório é um esgrimir nos mesmos moldes, na mesma estrutura, com as mesmas armas.


Qual será o desenlace no Supremo Tribunal Federal? O Ministério Público conseguirá sustentação constitucional para investigar?


Di Rissio – Tenho plena convicção de que o Ministério Público não conseguirá e nesse sentido é o meu desejo. Sei que o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição, formado por homens probos, sérios, juristas de reconhecida capacidade e idoneidade. E nesse julgamento que, ao contrário do que muitos pensam, não é político mas jurídico, outro não poderá ser o resultado.


O senhor então não está mais nem preocupado com quem investiga?


Di Rissio – Estou preocupado com a essência da coisa. Quem fiscaliza o fiscal? Gosto desse assunto, principalmente quando o interlocutor é preparado. Veja o caso do deputado Antonio Carlos Biscaia. Carioca. É um jejuno em Direito? Não. Foi o quê, antes de ser catapultado ao estrelato político? Foi promotor público. Foi o chefe dos promotores num grande Estado, o Rio de Janeiro. Muito bem. Ele propôs uma emenda constitucional para que seus pares pudessem também investigar. Esse foi o caminho adequado, o fórum certo para isso. Mas daí, me pergunto: porque alguém vai propor uma emenda constitucional para o reconhecimento de um direito que já julga possuir? O fórum competente para discutir a questão foi a Assembléia Nacional Constituinte. Eles, os promotores públicos, perderam. O legislador federal lhes atribuiu competência apenas para o inquérito civil público, que não se confunde, em nada, com o inquérito policial.


Isso quer dizer que o STF não vai arredar pé da Constituição?


Di Rissio – De jeito nenhum. O Supremo vai manter a Constituição. Tenho absoluta convicção disso.


O senhor considera que o caso Celso Daniel poderá colaborar para esse desfecho?


Di Rissio – Acredito, como já disse, que o caso Celso Daniel pode ser um divisor de águas.


O senhor diria que diante dessa situação, ou seja, de que o caso pode repercutir na apreciação do Supremo Tribunal Federal, os promotores públicos poderiam estar apostando tudo no crime de encomenda, como eles defendem, contrariamente à constatação de crime comum da Polícia Civil e da Polícia Federal? Sérgio Gomes seria condenado na marra?


Di Rissio – Sou policial. Sou pago para desconfiar. Sou mal pago, mas isso não me turva o pensamento. Desconfio disso, sim.


O caso Celso Daniel expôs uma Polícia Civil amedrontada por causa da mudez dos delegados envolvidos.


Di Rissio – A Polícia Civil de São Paulo não está amedrontada. Jamais será refém de qualquer temor proveniente do que seja. Está emudecida, pontualmente, por força das mazelas sobre as quais já aqui me referi. E parece-me que o remédio é simples. É dar à instituição policial o comando que merece ter, é reconhecer na instituição policial o valor que efetivamente tem. É prestigiar o delegado, seus escrivães, seus investigadores através de remuneração compatível com a responsabilidade que detêm. É propiciar ao aparato policial profissional um material atualizado. É dar ao delegado de Polícia voz ativa junto à sociedade. Não será tolhendo a atividade policial profissional, calando as palavras de meus colegas ou, mesmo, sacrificando-nos com a parcimoniosa verba que nos é destinada, que se verá diminuir a Polícia de São Paulo que se vê, hoje, envolvida num evidente paradoxo, já que o próprio governo do Estado afirma ter a melhor Polícia do Brasil, o que é verdade.


O que a Polícia Civil de São Paulo pode esperar de uma liderança inconformada com alguns aspectos importantes da classe, como as mencionadas pelo senhor? O que os cinco mil delegados de Polícia do Estado e, principalmente, a sociedade podem esperar?


Di Rissio – Vamos desnudar a Polícia Civil. Vamos quebrar um dogma, o que para mim é mais um, porque me elegi o presidente mais jovem da entidade, com 40 anos de idade. Quebrei o segundo dogma pela votação, que é a mais expressiva da história, num turno que disputamos com três concorrentes. Quebrei um terceiro: não sou delegado de classe especial. Acredito ter chegado ao ápice de minha carreira, tendo sido escolhido para representar meus pares. Estou aqui pela vontade deles. E minha plataforma foi clara e simples: desnudar ao povo de São Paulo a humilhação que a Polícia sofre do governo pela falta de reconhecimento que se veria através de melhores salários e de melhores condições de trabalho e pelas tentativas vãs de politizar a Polícia, como no caso Celso Daniel. Não posso me conformar com isso.


O senhor não teme que o governo do Estado, através da Secretaria de Segurança Pública, afirme que o senhor está politizando a Polícia também?


Di Rissio – É o que resta à Secretaria. Gostaria que eles propusessem esse debate. Não há politização alguma na constatação de fatos. Por isso os citei nesta entrevista, repetindo alguns deles: 40% dos delegados de Polícia concursados nos últimos 12 anos já deixaram a carreira; e R$ 3 mil mensais não é salário compatível com a responsabilidade, com os riscos e com as atribuições de um delegado de Polícia. Um promotor público recém-formado tem um padrão de vencimentos superior ao do mais alto cargo de minha instituição. Isso é política? Política é nos manter subjugados a promotores de Justiça já há tanto tempo.


O senhor é um reformista ou um revolucionário?


Di Rissio – Nem um, nem outro ou os dois. Porque num país como o Brasil, onde grassa a injustiça, são necessárias reformas ou revoluções, especialmente aquelas que decorram de um debate franco e democrático, sem uso de subterfúgios, eufemismos ou agressões. Aos 40 anos, ainda mantenho no peito um coração de estudante.


O senhor militou também nos tempos de universidade?


Di Rissio – Muito, muito. E talvez essa tenha sido a chama inicial desse inconformismo que manifesto sempre. Não me conformo com a situação dos delegados de Polícia do Estado de São Paulo porque somos provenientes, como os promotores e os juízes, de uma mesma sala de aula, de um mesmo curso, com idênticas matérias. Somos todos, promotores, juízes e delegados, funcionários públicos concursados e, por conseguinte, abraçamos, todos, de uma certa forma, um mesmo ideal: o ideal de Justiça. O que é, então, que justifica tantos descasos a nós, delegados de Polícia? Somos heróis de um povo que não tem heróis. E estou seguro de que temos o reconhecimento do povo de São Paulo. Só não temos o reconhecimento do governo.


E o que isso significa?


Di Rissio – Estamos nos segurando pela nossa vocação, pelo nosso espírito de luta contra o crime, a favor da Justiça. Só não sei dizer até quando.


O senhor aceitaria um debate público com os promotores criminais sobre o caso Celso Daniel?


Di Rissio – Aceito. Mais que isso: quero um.


Há de fato alguma correlação entre o caso Celso Daniel e o caso Toninho do PT, prefeito de Campinas?


Di Rissio – É um absurdo a ligação de uma tragédia com outra. E o que é pior: tenho convicção absoluta de que os promotores de Campinas sabem disso. Eles acompanharam a investigação. Não há a menor forma de vinculação de um caso com outro. Fico ainda mais triste quando vejo isso aproveitado politicamente.


O senhor, a partir de agora, será o porta-voz dos delegados do DHPP?


Di Rissio – Do DHPP e de todos os demais. Os delegados de Polícia Civil do Estado de São Paulo têm em sua entidade a representação máxima na Associação dos Delegados de Polícia. É meu papel levar a verdade ao povo de São Paulo.


Quando entrevistamos o delegado Armando de Oliveira, titular do DHPP, um dos muitos profissionais envolvidos na apuração do caso Celso Daniel, diagnosticamos um homem angustiado, sofrido, por causa do bombardeio das informações divulgadas pela Imprensa. Ele teve de se calar durante todo aquele período, enquanto os promotores públicos se manifestavam sistematicamente. Como o senhor analisa o que chamaríamos de estresse emocional do delegado?


Di Rissio – É mais uma consequência do descaso com que somos tratados.


Como o senhor, que tem acesso direto às nossas edições, observa a cobertura de nossa revista?


Di Rissio – Trata-se, creio, de uma publicação corajosa e com postura aberta, democrática. Vejo os espaços dados às versões diferenciadas na mesma proporção. É isso, aliás, o que se espera de um bom jornalismo. Jornalismo livre, denunciativo, é uma das garantias da democracia. Esse jornalismo já tirou até um presidente da República, mas nada disso vai valer a pena se se colocar por engano, motivado ou não por razões inconfessáveis, um inocente na cadeia.


Leia mais matérias desta seção: Caso Celso Daniel

Total de 193 matérias | Página 1

11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP
21/02/2022 Conheça 43 personagens de um documentário histórico
18/02/2022 Silêncio de Sérgio Gomes em 2002 garante Lula presidente
15/02/2022 Irmãos colaboraram demais para estragos do assassinato
14/02/2022 MP desmente MP: Crime de Encomenda é insustentável
11/02/2022 Finalmente acaba a farra oportunista de sete mortes
08/02/2022 Previsão: jogo eletrizante no mata-mata da Globoplay
07/02/2022 Crime de Encomenda é casa que cai a cada novo episódio
04/02/2022 Bomba na Globoplay: Gilberto Carvalho admite Caixa Dois
02/02/2022 Série da Globoplay começa a revelar equívocos históricos
01/02/2022 Crime Comum em vantagem no mata-mata da Globoplay
31/01/2022 CapitalSocial torna prioridade análise da série da Globoplay
28/01/2022 Já se ouve a marcha fúnebre de uma narrativa fraudulenta
24/01/2022 Globoplay vai exibir segredo de Sérgio Gomes que MP queria?
20/01/2022 Documentário histórico põe fim ao totalitarismo midiático
14/01/2022 Entenda como e porque Lula e Alckmin fazem parte do crime
13/01/2022 Entenda como e porque Lula e Alckmin fazem parte do crime (4)
12/01/2022 Entenda como e porque Lula e Alckmin fazem parte do crime (3)
11/01/2022 Entenda como e porque Lula e Alckmin fazem parte do crime (2)