Caso Celso Daniel

Legista do IML explica que "tortura" é
essência e rotina em casos de sequestro

DANIEL LIMA - 05/03/2006

Sem se referir diretamente à tese de crime encomendado do Ministério Público e sem dar qualquer conotação igualmente direta à conclusão de crime comum dos inquéritos policiais, o médico legista José Jarjura Jorge Júnior, então diretor do IML (Instituto Médico Legal) que acompanhou a necropsia do corpo de Celso Daniel, afirma com convicção: “Ele não foi torturado pelos sequestradores no sentido sistemático e duradouro da ação, e sim no entendimento comum a todo e qualquer sequestro, que envolve cárcere privado, ameaças de morte, etc”.


Mais de quatro anos depois da morte de Celso Daniel, José Jarjura resolveu falar sobre o crime, depois de insistência deste jornalista. Ele disse preferir não se envolver no caso, mas concordou em explicar declarações que prestou ao jornal “O Estado de S. Paulo”, publicadas na edição de 24 de janeiro de 2002, quatro dias depois de o corpo do prefeito de Santo André ter sido encontrado numa estrada vicinal de Juquitiba, na Grande São Paulo.


A definição de “tortura” é uma das peças essenciais para a compreensão da morte do prefeito. O Gaerco, força-tarefa do Ministério Público em Santo André, defende a versão de que Celso Daniel foi torturado para que entregasse ou contasse aos sequestradores eventual localização de dossiê que caracterizaria a essência da acusação que pesa sobre o empresário Sérgio Gomes da Silva — ou seja, a decisão de Celso Daniel desbaratar esquema de suposta propina na Prefeitura de Santo André, porque estaria havendo desvio de recursos.


Os advogados de Sérgio Gomes da Silva perfilam-se com a definição dos inquéritos policiais e desclassificam a teoria do MP entre outros motivos porque consideram que o empresário também foi vítima da ação dos sequestradores que só souberam da identidade do prefeito no dia seguinte ao arrebatamento no chamado Três Tombos.


Se a sorte do caso Celso Daniel depender do testemunho de José Jarjura Jorge Júnior, então chefe do médico legista Carlos Delmonte, a Polícia Civil e a Polícia Federal encontrarão ressonância na conclusão de que se tratou de crime comum. José Jarjura é cuidadoso. Evita qualquer possibilidade de ver suas afirmações indexadas a uma das versões que se estabeleceram para o crime, especialmente às declarações de Carlos Delmonte, que se suicidou algum tempo depois de, surpreendentemente, transformar um caso de tortura clássica em tortura político-administrativa.


“Reitero o que disse à reportagem mencionada se o objetivo de qualificação de tortura sugerido pela matéria for algo como espancamento, agressão, maus tratos flagrantes, tudo feito de forma continuada ao longo de um determinado período. Sob esse aspecto, não houve tortura. Houve tortura sim e o laudo de necropsia é claro quanto a isso, se considerarmos o conceito clássico do termo, comum nos casos de sequestros. Aliás, por si só um sequestro é elemento definidor de tortura.” — disse o médico que, à espera de aposentadoria, tornou-se assessor especial da direção do Instituto Médico Legal de São Paulo. Ele acompanhou em silêncio durante todo o ano passado e também no início deste ano as declarações de Carlos Delmonte e de Paulo Vasques, que, igualmente, assinaram o laudo de necropsia do corpo de Celso Daniel.


Foi na edição de 24 de janeiro de 2002 que o Estadão publicou declaração de José Jarjura sob o título “Diretor do IML nega tortura de Daniel”. Os principais trechos da matéria:


 O diretor do Instituto Médico Legal (IML), José Jarjura Jorge Júnior, disse ontem que os exames dos médicos legistas não constataram sinais de tortura no corpo do prefeito de Santo André, Celso Daniel (PT). “Ele não foi torturado pelos sequestradores. Os ferimentos encontrados pelos legistas no corpo foram de natureza leve”. Jarjura acrescentou que só havia ferimentos graves provocados pelos tiros. “Um que fraturou a mandíbula e os outros que acertaram diversas áreas do corpo”. (…) Segundo Jarjura, a necropsia mostrou que os sequestradores de Celso Daniel devem ter “encostado” o cano de uma arma nas costas do prefeito e empurrado seguidas vezes, provocando “alguns hematomas”. Um outro hematoma — prossegue o texto do Estadão — foi encontrado na coxa direita: “Pode ter sido um pontapé ou um golpe com um pau”, explicou o diretor do IML. “Num dos braços havia uma leve escoriação”, avaliou Jarjura. O diretor do IML explicou — ainda segundo o Estadão — que o laudo preliminar não tem nenhuma afirmação que possa levar à conclusão de tortura antes da morte: “Não sei de onde tiraram essa versão”. O documento indica que Daniel foi morto com tiros de calibre nove milímetros. As balas acertaram as costas — provocando ferimento fatal — o rosto, o pescoço e uma das mãos” — escreveu o jornal paulistano.


Ferimentos leves
Na entrevista por telefone, José Jarjura confirmou a correção da reportagem do Estadão, mas, dois dias depois, decidiu fazer algumas ressalvas: “Eu não disse que ele não foi torturado pelos sequestradores e que os ferimentos encontrados pelos legistas foram de natureza leve. Havia ferimentos de natureza leve, como escoriações e hematomas e havia ferimentos de natureza grave que levaram à morte, no caso os tiros desferidos pelos bandidos. Também não disse que o laudo preliminar não tem nenhuma afirmação que possa levar à conclusão de tortura antes da morte. Não sei de onde tiraram essa versão” — explica Jarjura.


O ex-diretor do Instituto Médico Legal assegura que os projéteis desfechados no corpo de Celso Daniel é que de fato provocaram a morte. “Não houve, de forma alguma, quaisquer sinais de espancamento que pudessem conduzir a outro tipo de conclusão sobre a morte do prefeito” — reitera o legista.


Dessa forma, Jarjura contesta e desqualifica a versão de João Francisco Daniel que, em entrevista ao Diário do Grande ABC de 28 de abril de 2003, declarou taxativamente que foram supostos golpes de espancamento, mais que os tiros, a razão da morte do prefeito.


O médico legista vai mais longe. Instado a formular a possibilidade de haver diferenciação entre um corpo crivado de balas numa periferia qualquer da Grande São Paulo em caso clássico de execução violenta e o exame necroscópico do corpo de Celso Daniel, afirma que o quadro é semelhante. Isso significa que a descrição do laudo necroscópico seguiria o mesmo ritual que consta do caso Celso Daniel.


A expressão “tortura” estaria presente no documento como definição de situação convencional de morte por causa dos impactos dos projéteis de arma de fogo. Essa comparação é menos hipotética do que se imagina, porque o IML está recheado de situações como a sugerida, nas quais as vítimas apresentariam quadro descritivo tecnicamente semelhante.


Apesar de cauteloso, o médico legista José Jarjura é enfático ao afirmar que a tipologia apresentada pelo corpo de Celso Daniel não confere qualquer possibilidade de ser minimamente enquadrada como caso de tortura para obtenção de qualquer informação: “Não há nenhum sinal que seja considerado denunciador de ação torturante no sentido mais elástico do termo, que enseje interpretação divorciada do aspecto legal do termo e que denotaria longo processo de castigo corporal. O que tivemos sim, e isso é inegável, e está presente em todas as situações de sequestro, é que houve tortura como expressão de transtornos psicológicos determinados pela própria ação de arrebatamento e suas consequências, e também pelo evidente sofrimento provocado pelos projéteis sequenciais que tiraram a vida do prefeito”.


José Jarjura evita estender-se sobre o trabalho de Carlos Delmonte, legista que se suicidou em outubro do ano passado e que, depois de três anos e meio de silêncio, resolveu afirmar que o corpo de Celso Daniel foi torturado. Faz elogios à competência técnica de Carlos Delmonte, mas descarta qualquer comentário sobre a conotação que deu ao verbete “tortura”.


José Jarjura também opta pelo simples registro da presença do médico legista Paulo Vasques na CPI dos Bingos, substituindo a Carlos Delmonte. Prefere apenas ouvir a avaliação de que Paulo Vasques teria mantido espécie de expectativa indevida ao termo “tortura”. Jarjura é direto: “O que posso reafirmar é o conteúdo de minhas declarações ao Estadão logo depois da necropsia do corpo do prefeito. O que disse, repito: não houve tortura no sentido que ultrapasse o aspecto de violência tradicional nos casos de execução”.


O ex-direitor do IML relutou em aceitar falar sobre o caso. Afirma que não quer holofotes. Recusou-se inclusive a posar para fotografias.


Marcas de revólver
O depoimento de um dos sequestradores de Celso Daniel, Itamar Messias Silva dos Santos, ouvido pelos delegados Armando de Oliveira e José Masi do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) na tarde de 22 de março de 2002, quando foi capturado pela Polícia Civil, elimina variadas interpretações sobre as marcas de cano de revólver na região lombar do corpo de Celso Daniel. Diferentemente do que se explorou durante a CPI dos Bingos, as marcas não foram produzidas pouco antes da execução do prefeito. A íntegra do trecho do depoimento de Itamar Messias, relatado pelos delegados do DHPP:


 ”Que Ivan embarcou novamente no Santana, e o interrogando (Itamar) se recorda que chegou a cutucar as costas do prefeito Celso Daniel com sua arma; que indagado da rota de fuga que utilizaram, disse que ao arrancarem com a Blazer, John que a dirigia chegou a entrar na primeira travessa à direita”.


Pouco mais de um ano depois, em 22 de maio de 2003, o delegado José Masi, do DHPP, foi ouvido pelo juiz da Primeira Vara Judicial de Itapecerica da Serra. O trecho específico em que se refere ao relato do Itamar Messias, durante o arrebatamento de Celso Daniel:


 “Os tiros foram dos dois lados (dos sequestradores). Tanto pelo Bozinho, que é o que está aqui, ele atira no vidro do passageiro, atrás do Celso Daniel, e volta a acionar a porta, e o Itamar foi pelo outro lado. O Itamar não só tenta e atira, porque quando ele sai da Blazer e tenta abrir é no momento que ele deixa a impressão digital. É naquela hora que ele se apoia na Pajero (de Sérgio Gomes). Ele atirou com certeza. E tem um detalhe mais importante: tanto ele atira que há marcas nas costas de Celso Daniel. Consta do laudo necroscópico. E o que pouca gente sabia: as marcas eram do cano da arma quente. Quando ele foi preso, conta prá gente, sem saber desse detalhe, que coloca a arma nas costas, atrás do Celso Daniel, para levar a pessoa, e o cano quente da arma deixa a marca nas costas do Celso Daniel. Na conversa conosco ele fala isso”.


Conclusão do laudo 


 Examinamos restos mortais humanos, de adulto do sexo masculino, em estado de morte real.


 A morte foi precedida de agonia de minutos.


 Estimamos o intervalo pós-mortal entre 12 e 18 horas (referencial: 1h de 19 de janeiro de 2002). A manipulação pericial de local e as condições mesológicas podem alterar a incerteza da estimativa.


 A vítima foi atingida por oito disparos distribuídos em cabeça, pescoço, tórax e membros superior e inferior.


 A análise cronotanotológica é compatível com o tempo de morte e as variáveis de exposição.


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