Caro Celso Daniel. Quero cumprimentá-lo pelos 55 anos de idade que completa hoje, 16 de abril. Há quatro anos você faz aniversário em outra esfera da vida. No primeiro ano, em abril de 2002, lembro-me bem, lotamos o Teatro Municipal de Santo André, quando lançamos o livro “Complexo de Gata Borralheira”. Foi uma homenagem que lhe fiz não só pela data de nascimento tão colada à da viagem eterna, mas pelo legado de regionalidade, núcleo daquela obra. A leitura dramática foi uma catarse.
Dona Clélia, sua mãe, e suas irmãs estavam nas primeiras filas. Não vi seus irmãos. Seria surpreendente se estivessem lá, não é verdade? Pelo menos nos últimos 10 anos eles desapareceram de sua vida. Só aparecem no pós-vida. E fizeram tantas trapalhadas!
Sei lá Celso o que se passa aí em cima, mas cá embaixo a situação desandou desde que você partiu. Seu melhor amigo, Sérgio Gomes, aquele que você só chamava de “chefe”, está desconsolado. Ninguém, depois de você, sofreu tanto após aquele arrebatamento nos Três Tombos. Ele foi transformado em vilão.
Todo o esforço para tentar evitar que você fosse levado pelos sequestradores virou pesadelo. Ele não se conforma por não ter tido sucesso. Pior ainda: culparam-no pelo acaso do caso. Até preso durante quase oito meses o Sérgio Gomes ficou.
Aqui Celso, cabe um parêntese: quem responsabilizou o Sérgio Gomes pelo crime foi o Ministério Público, cujas capacidade e legalidade para investigações são contestadíssimas por policiais experientes e por especialistas constitucionais. A Polícia Civil e a Polícia Federal cuidaram do caso, caro Celso. Chegaram à conclusão de que você deu um baita azar de estar no lugar errado na hora errada numa metrópole ensandecida naquele janeiro de 2002, quando sequestros tinham tanta frequência quanto a venda de pão quente em balcão de padaria. Não adiantou nada, caro Celso. De vítima nos inquéritos policiais, Sérgio Gomes virou mentor do crime.
Confesso que não queria lhe dar notícias ruins, mas não tem jeito. Você que sempre foi um cara de enfrentar perigos com altivez provavelmente não me perdoaria jamais se mistificasse os fatos. Insisto na ignorância de não conhecer o mundo em que você está vivendo há mais de quatro anos. Talvez você saiba de tudo o que ocorreu nesse período, mas não custa duvidar da possibilidade de que quem sobe ao plano espiritual pleno eventualmente esteja blindado contra más notícias.
Pajero vendida
Por falar em blindado, sabe aquela Pajero que o Sérgio Gomes dirigia naquela noite fatídica? Pois é, foi vendida já faz tempo. O Sérgio não fala sobre o assunto, mas acho que aquele veículo o assombrava. Dizem os amigos mais chegados eventualmente interlocutores que o humor do Sérgio oscila de acordo com o noticiário da mídia. Por mais que procure se afastar do noticiário, sempre que há algum novo fato ou especulação sobre a viagem eterna de seu amigo, ele acaba tenso.
A Imprensa, caro Celso, é um desastre. Você não seria capaz de imaginar como tratam o caso. Meteram-lhe na vala comum de administradores públicos venais. Infelizmente tenho de lhe dizer isso. Depois da fase de canonização na esteira do noticiário de seu sequestro, você foi lançado na fogueira da prevaricação administrativa. E sabe quem contribuiu para isso? Principalmente seu primeiro-irmão João Francisco. Sim, o João Francisco que tanto o incomodava com pedidos de favores. O Bruno, de quem você era mais próximo até que, em 1989, você não se dobrou à mulher dele, então secretária de Educação que queria atear fogo no orçamento da Prefeitura, o Bruno, como disse, veio na sequência. Ambos ciceroneados pelos promotores criminais.
Acho até que seus irmãos agiram e ainda agem com alguma parcela de sinceridade, porque é impossível acreditar que fazem papel de personagens o tempo todo, mas o que estranho mesmo é que eles tenham mudado tanto de versões ao longo dos últimos anos. O desprezo que o João Francisco tem pelo Sérgio Gomes, por exemplo, só se explica pelo histórico de verdadeiro irmão que o seu melhor amigo construiu com você. Algo que nem o Bruno nem o João Francisco jamais conseguiram.
Você sabia, Celso, que o João Francisco e o Bruno estiveram na CPI dos Bingos? Verdade. Foi em outubro do ano passado, para deleite de uma maioria de senadores que quer tudo, menos esclarecer os fatos. CPI, qualquer CPI, como se sabe, é uma casa de espetáculos. Espetáculos de baixo nível. Sabe com quem seus irmãos travaram duelos verbais não diria memoráveis porque beiram a estupidez? Com um de seus melhores amigos, o Gilberto Carvalho, que, depois de comandar a Casa Civil da Prefeitura de Santo André, há mais de três anos exerce função semelhante na Presidência da República.
Preparadíssimo
É claro que o Gilberto Carvalho deu um nó neles, porque, como você sabe, o Gilbertinho é um homem calmo, articulado, preparadíssimo para as idiossincrasias da política. E a CPI dos Bingos é política partidária, acima de tudo. Colocaram até um detector de mentiras para tentar flagrar o Gilberto em delito sobre suposto esquema de financiamento na Prefeitura que você, Celso, dirigia. O resultado que, cá entre nós, não quer dizer nada porque detector de mentiras é uma fraude, deu vitória para o Gilberto.
Não sei por que não mediram também as afirmações do João Francisco e do Bruno Daniel. Sei sim: eles são seus irmãos e isso lhes confere o direito de estar acima de qualquer suspeita, por mais que, paradoxalmente, na tentativa de fazerem o que chamam de justiça, tenham lançado sua imagem à sarjeta.
Não vou entrar em detalhes sobre o confronto de seus irmãos com o Gilberto Carvalho, caro Celso, mas seria injusto não lhe dizer que tanto o Bruno quanto o João Francisco insistiram o tempo todo em que o Gilberto Carvalho levava dinheiro de propinas da Prefeitura de Santo André para o então todo-poderoso José Dirceu. Deram detalhes da operação.
Aliás, por falar em Zé Dirceu, Celso, ele caiu do governo Lula. Sei lá se você sabe, inclusive, que o Lula virou presidente. Talvez já lhe tenham contado, mas não custa repetir. O Zé Dirceu foi acusado de lambanças de financiamento de deputados do arco de apoio ao governo, um tal de mensalão. Está surpreso? Isso é coisa tão antiga quanto a prostituição. Pois é.
Não sei se você conheceu por aqui um deputado carioca chamado Roberto Jefferson. Foi ele que derrubou o Zé Dirceu e mais um bocado de gente. Até o Antonio Palocci, ministro da Fazenda, caiu, mas não tem nada a ver com o Roberto Jefferson. O Palocci ocupou o lugar que estava reservado para você, Celso. Acabou se dando bem, principalmente sob o olhar do mercado financeiro. Manteve a economia a salvo de trepidações maiores, embora o PIB tenha crescido em três anos apenas um pouco acima da média de oito anos de Fernando Henrique Cardoso. O problema é que o Palocci se meteu em algazarras administrativas em Ribeirão Preto e, segundo denúncias de um caseiro, estendeu-as a uma mansão de dinheiro e de prazer em Brasília. Ali o ministro se reuniria com os mesmos e antigos aliados do Interior.
Bafafá brasiliense
A notícia do envolvimento financeiro de Antonio Palocci com amigos do peito e de esfregações carnais com meninas de uma cafetina de Brasília provocou forrobodó danado. O caseiro Francenildo virou herói da oposição. Deve ser chamado para estrelar peças eleitorais que procurarão desqualificar um governo de operário que tentou punir um serviçal inclusive com a quebra de sigilo bancário. Isso mesmo: governistas da Caixa Econômica Federal mandaram brasa nos extratos do caseiro e tornaram a crise ainda mais convulsiva. O Palocci acabou caindo mais como efeito da arbitrariedade constitucional praticada contra o tal de Nildo, como se tornou conhecido o caseiro, do que propriamente pela repercussão das visitas à mansão da República de Ribeirão Preto.
Estava me esquecendo de uma recomendação sobre o tal deputado carioca, o Roberto Jefferson: ele é um espetáculo de orador e canta ópera como poucos. Quando chegar por ai vai animar bastante o ambiente, embora eu saiba que você gosta mesmo é de ouvir músicas clássicas, de assistir a bons filmes de suspense e, principalmente, jogos do Corinthians.
Celso, não sei o que estão programando para seu aniversário neste 16 de abril. De minha parte, acho que vou divulgar essa carta. Não éramos amigos chegados, desses de trocar confidências, mas não esqueço o quanto você representou para essa pobreza imensa de baixo comprometimento regional do Grande ABC. Estou na batalha para, entre outros objetivos, evitar que seu amigo Sérgio Gomes seja de novo trancafiado e humilhado pelas imprecisões de que é o mentor de seu sequestro. Bobagem muito bem articulada, como você sabe, por muitos que querem atingir o PT.
Aliás, sobre isso, deixe-lhe fazer uma confissão: só votei em você e no Lula uma única vez. Demorei para me desvencilhar de restrições contra um PT raivoso e corporativista, até que em 2000 lhe dei meu voto sincero, e em 2002, em solidariedade a você e aos 2,5 milhões de habitantes que foram massacrados pelo governo FHC, sufraguei o Lula.
Como estava dizendo sobre o Sérgio Gomes, a situação dele já foi mais complicada, mas, aos poucos as verdades vão sendo estabelecidas. Sete mortes suplementares ao seu caso, caro Celso, também foram atribuídas aos supostos mandantes do crime de que você foi vítima, entenda-se Sérgio Gomes e outros. Duas já foram esclarecidas e, como era de se esperar, inocentaram seu primeiro amigo. O Sérgio Gomes tem a fama de participação intra-uterina na cadeia de financiamento de campanhas eleitorais dos candidatos petistas. Já fizeram de tudo para ele confessar detalhes dessa versão. Querem que ele dê nomes aos bois, e, com isso, provoque a queda do presidente. Um homem supostamente dessa importância, convenhamos Celso, não é um prato que os oposicionistas gostariam de descartar. Por isso não lhes dão trégua.
Família cindida
Tem mais algumas coisinhas que gostaria de lhe dizer, caro Celso. Sua filha, Liora, está estudando jornalismo. Não falo com ela há muito tempo. Aliás, falei raras vezes com a Liora. Ela parece arredia com todos que eventualmente sejam jornalistas. Não a culpo por isso, porque sei o quanto a imagem de seu pai foi vilipendiada nesse período. Lamentavelmente, caro Celso, sua família, ou aquilo que se convencionou chamar de família, ainda não reconhece os laços sanguíneos da Liora e os Daniel. Não vou lhe contar detalhes da frieza de seus irmãos a respeito do assunto em depoimento na CPI dos Bingos porque poderia feri-lo de morte, caro Celso. Mas foi de lascar. Os Daniel, e Liora é Daniel, estão irrecuperavelmente cindidos.
Estava me esquecendo de falar da Ivone, sua mulher. Sim, sua mulher, embora a mídia, de maneira geral, a trate sem o menor respeito. Dizem que foi apenas sua namorada. Como se, pelo menos, a Liora e os últimos cinco anos juntos não valessem nada. Tenho visto muito pouco a Ivone Santana, caro Celso. De vez em quando ela me manda um e-mail para agradecer porque não deixo a peteca cair. Bondade dela.
Aliás, preciso encontrá-la. Há pelo menos três anos ela deixou comigo umas fotos pessoais em que está com você, com a Liora e com sua mãe em viagem internacional, e ainda não lhe devolvi. Um dia desses vou lhe contar o que fizeram para desqualificá-la por causa de uns grampos telefônicos. Trechos foram selecionados para comprometê-la. Só porque ela chamava você de “cara”. Mal sabem que “cara” era uma das formas carinhosas que usava para dizer o quanto gosta de você.
Caro Celso, vou parando por aqui porque tenho muito o que escrever ainda. Vou lhe mandar mais notícias no ano que vem. Continuarei me esforçando para que ninguém se esqueça de você. Infelizmente, caro Celso, poucos sabem o quanto você é importante para o futuro do Grande ABC. Sim, usei o tempo do verbo no presente porque enquanto eu e outros estiverem por aqui, o legado de regionalidade não será subestimado.
Essa é uma tarefa extraordinariamente difícil, acredite, porque os meios de comunicação, de maneira geral, estão cada vez piores. Vivem do varejismo da informação que morre no dia seguinte sem deixar a menor saudade e comprometimento reformista. Isso mesmo: quase não se tem espaço para o conhecimento em forma de desafios para tornar nosso mundo melhor. Nesse ponto, acho que você acertou em cheio ao resolver viajar. Não é possível que as coisas aí estejam piores do que aqui.
Estamos morrendo de saudade de você. Saudações alvinegras.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP