A má notícia para quem especulou sobre a morte do médico-legista Carlos Delmonte, relacionando-a à queima de arquivo de suposta sétima vítima do caso Celso Daniel, foi discretamente tratada pela mídia eletrônica em 17 de março e pela mídia impressa no dia seguinte: um dos profissionais que assinou os termos do laudo necroscópico do corpo de Celso Daniel morreu de morte provocada, não de morte matada como alguns pretendiam fazer crer. Carlos Delmonte cometeu suicídio na madrugada de 12 de outubro do ano passado ao ingerir três medicamentos simultaneamente.
O delegado José Antonio Nascimento, do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) e dois legistas apresentaram o laudo durante coletiva à Imprensa. O documento final somou 763 páginas em quatro volumes. Foram ouvidas 26 testemunhas, entre familiares, colegas de trabalho e amigos, e realizados 13 laudos necroscópicos. Segundo a Polícia, dois dias antes de morrer Delmonte transferiu R$ 100 mil para a conta corrente de sua ex-mulher. Também deixou cartas, que tiveram caligrafia confirmada por peritos, informando como deveria ser velado, a quem avisar e o que ele gostaria que fosse feito.
Diretor do Centro de Pesquisas do Instituto Médico Legal, Ricardo Cristofi foi incisivo na definição do laudo: “Ele não tinha necessidade de tomar aqueles medicamentos. E sendo médico, sabia dos riscos em ingeri-los simultaneamente”.
A revelação oficial de que Carlos Delmonte provocou a própria morte segue rigorosamente nossas informações. Em nenhuma edição esta publicação (e também a newsletter Capital Social Online, que trata do caso Celso Daniel de forma sistemática) caiu na vala comum da mídia sobre a possibilidade de outra versão para a morte, principalmente porque o legista deixou evidências materiais do que pretendia fazer, como carta e telefonemas a familiares.
Delmonte, de 55 anos, foi encontrado morto em seu escritório na Vila Mariana, em São Paulo. Estava no chão, ao lado de um sofá que servia de cama quando ele passava a noite lá. Não havia evidência de luta no local. Mas isso não impediu o espalhamento de versões que insinuavam a possibilidade de participação dos supostos mandantes da morte do prefeito Celso Daniel.
Premeditação
No laudo, os especialistas do IML consideraram que a medicação levou Delmonte à morte. Com o efeito da combinação, ele não teve consciência ou reflexos para reagir ao quadro de pneumonia. Quando o próprio organismo começou a se defender, produzindo catarro, o legista não conseguiu expeli-lo. A Polícia garante que o crime foi premeditado pelo próprio legista. Ele contou ao filho que havia feito exames, inclusive radiografias, com um especialista conhecido da família e, por isso, comprara os remédios que tomou na noite do suicídio. Ao checar as informações, o mesmo médico disse que Carlos Delmonte não havia se consultado com ele.
O suicídio de Carlos Delmonte teve relação direta com problemas familiares. A mulher o abandonou e ele sofria com alguns transtornos provocados pelos filhos. A atuação do legista nos últimos tempos de vida não pode ser descartada como propulsora do suicídio. Estranhamente, ele saiu da discrição de quem considerou a morte de Celso Daniel caso típico de tortura convencional e redirecionou em favor da tortura político-administrativa. Deslumbrou-se ao participar do programa de Jô Soares, na TV Globo.
Atribuem-se à mudança de avaliação de Carlos Delmonte eventuais interesses de usufruir de supostas benesses de envolvidos direta ou indiretamente no caso Celso Daniel que se alinhem à versão de crime de encomenda.
Não há provas materiais nesse sentido, mas a morte de Carlos Delmonte foi exploradíssima ao vincular-se mesmo que subjetivamente, quando não diretamente, a uma rede conspiratória que teria determinado o assassinato do prefeito de Santo André. Os próprios irmãos de Celso Daniel, eficientes na propagação de crime de encomenda, trataram de elevar a temperatura de desconfiança.
O contraste entre a cobertura espalhafatosa do anúncio da morte de Carlos Delmonte e seus desdobramentos e a discretíssima repercussão no mês passado de que o legista cometeu suicídio é mais uma prova de que, de maneira geral, a mídia está perfilada com a teoria de crime de encomenda.
Mais que isso: a mídia despreza ou minimiza tudo que se apresenta como provas de que tanto a Polícia Civil quanto a Polícia Federal acertaram em cheio ao concluir inquérito que define a morte de Celso Daniel como crime comum, sem relação alguma com suposto caixa dois na Prefeitura de Santo André.
Carlos Delmonte morreu sem concluir o laudo complementar do assassinato de Celso Daniel. Ele estava empenhado então há 50 dias na elaboração de documento solicitado pelos promotores criminais de Santo André. Foi em 16 de agosto do ano passado que Delmonte ouviu dos promotores o pedido para que respondesse a 14 quesitos suplementares do laudo. Delmonte fez naquele dia longo depoimento ao Ministério Público.
CPI calada
A CPI dos Bingos, que pareceu tão zelosa ao anúncio de que Carlos Delmonte foi encontrado morto, calou-se no mês passado depois da divulgação do laudo pericial. O Estadão de 14 de outubro do ano passado ouviu vários membros antigovernistas da CPI dos Bingos em Brasília. Não faltaram acusações veladas. O relator Garibaldi Alves disse textualmente: “Agora temos um fato recente para usarmos na acareação” (…) Não podemos ficar calados diante de tantas evidências de que algo muito estranho aconteceu”. A acareação à qual se referiu o senador foi realizada no final daquele mês, entre Gilberto Carvalho, chefe de gabinete do presidente Lula da Silva, e os irmãos João Francisco e Bruno Daniel.
Outro membro da CPI dos Bingos, senador Romeu Tuma, prometeu na mesma reportagem do Estadão que acompanharia as investigações sobre a morte de Carlos Delmonte. Não se tem notícia da participação do ex-policial na elaboração do inquérito final.
Na mesma edição de 14 de outubro do ano passado, o Estadão publicou manchete “Morte do perito não foi natural, mostram exames”:
A primeira bateria de exames do cadáver de Carlos Delmonte Printes (…) descartou preliminarmente a possibilidade de morte natural — que a Polícia defendia como mais provável — e mergulhou o caso em mistério. A indefinição sobre a causa da morte do perito que apontou sinais de tortura no corpo de Celso Daniel alimenta suspeitas e dúvidas dos promotores de Justiça que investigam o assassinato do prefeito do PT de Santo André. Os promotores apontam o suicídio como “mais provável”, mas não descartam que Delmonte pode ter sido assassinado, embora considerem tal hipótese “muito remota”. Eles falam até em morte por envenenamento, com a ressalva de que isso é mais uma hipótese e que apenas o laudo pericial indicará o que houve com o legista”. “A hipótese de assassinato não está afastada”, disse o promotor Marcelo Milani, que a Procuradoria-Geral de Justiça convocou para acompanhar o inquérito.
Politização
No dia 15 de outubro, a politização da morte de Carlos Delmonte estava explicitada na manchete da página A17 do Estadão: “Família de Daniel está com medo e quer proteção especial”.
Alguns trechos da reportagem:
A família do prefeito Celso Daniel (…) quer proteção especial porque tem medo de morrer. Ontem, a CPI dos Bingos afirmou que irá ao ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, para tomar providências imediatas a fim de garantir a segurança dos parentes do prefeito morto, principalmente os irmãos João Francisco e Bruno. (…) A preocupação com a segurança dos Daniel aumentou depois da morte misteriosa do legista Carlos Delmonte. Recentemente, o perito passou por uma estranha ocorrência na Avenida 23 de Maio — ele dirigia seu carro e foi fechado por desconhecidos. Para amigos de Delmonte, ele sofreu um atentado. “É que eu não tenho condições, porque se eu tivesse já tinha abandonado o País”, declarou João Francisco. “Não só pelo risco, mas pelo desânimo, pela vergonha que está o País”. Ele disse que está com medo de morrer. Desde que soube que o legista Carlos Delmonte havia sido encontrado morto em seu escritório, em São Paulo, ele e o irmão Bruno Daniel vivem entre o medo de virar “a próxima vítima” e a vontade de ter esclarecido o assassinato do irmão. (…) Ontem, depois do sepultamento do legista no Cemitério Israelita do Butantã, Bruno Daniel e sua mulher Marilena, foram ao 78º Distrito Policial em São Paulo para declarar oficialmente à delegada Elisabete Sato sua preocupação em relação ao caso e pedir segurança. Para Bruno, pode haver relações entre a morte do legista e o assassinato de Celso Daniel. (…) “Não precisamos falar sobre isso (crime de mando), está evidente que existe uma força muito mais poderosa que não quer que o caso do Celso seja resolvido. Só não enxerga quem não quer” — disse João Francisco na tarde de 14 de outubro ao Estadão.
Mais política
A conversão escancarada de que Carlos Delmonte teria sido vítima de crime de encomenda foi estampada em nova manchete de página do Estadão, agora de 20 de outubro. Alguns trechos da matéria sob o título “Para família, legista foi vítima de alguma coisa muito grave”:
A família do legista Carlos Delmonte — que apontou sinais de tortura no cadáver do prefeito assassinado de Santo André, Celso Daniel (PT) — disse ontem à Polícia que não acredita na hipótese de suicídio. (…) Vera, ex-mulher, e Guilherme Capelozzi, filho, contaram que Delmonte nunca manifestou intenção de se matar nem apresentava comportamento nesse sentido. “A família acredita que tenha acontecido alguma coisa muito grave, mas não sabe identificar exatamente” — informou o promotor Marcelo Milani. “Se não foi suicídio foi homicídio”, anotou o promotor Milani. “Essa é uma ilação minha, ainda não temos elementos concretos para saber se foi suicídio ou se foi homicídio”.
Mais de dois meses depois da morte de Carlos Delmonte, os jornais voltaram ao assunto em 21 de dezembro. Trechos da Folha de S. Paulo:
Setenta dias após a morte do médico-legista Carlos Delmonte (…) os peritos do IML (Instituto Médico Legal) não chegaram a nenhuma conclusão sobre a causa mortis. Em seu relatório o IML informou que não foi possível definir se a morte de Printes foi natural ou provocada por um fator externo, como a ingestão de veneno, uma das hipóteses cogitadas pela Polícia Civil e pelo Ministério Público (…) A dificuldade em definir o motivo determinante da morte do legista provocou discussões entre membros da equipe do IML e aumentou a apreensão de autoridades envolvidas na investigação.
Na edição de 22 de dezembro, no alto da página, a Folha de S. Paulo praticamente antecipava a conclusão anunciada agora em março pela Polícia Civil:
A investigação da Polícia Civil sobre a morte do perito-criminal Carlos Delmonte Printes (…) aponta para a hipótese de suicídio e descarta a possibilidade de morte natural ou homicídio. O delegado José Antonio do Nascimento, do DHPP, descarta também qualquer vínculo entre as mortes de Celso Daniel e do legista. (…) A conclusão de que Printes teria ingerido alguma substância letal metabolizada pelo organismo a ponto de inviabilizar a perícia é uma “dedução lógica”, já que a investigação não aponta outras hipóteses, segundo o delegado.
Antes que o ano passado terminasse, o Estadão de 27 de dezembro voltou ao assunto. Sob o título “MP volta a questionar laudo sobre perito”, a matéria explicitava a posição do promotor de Justiça Maurício Ribeiro Lopes, que investiga a morte do legista Carlos Delmonte. Alguns trechos:
”Essa perícia é muito lacunosa, o resultado é insatisfatório”, declarou o promotor, após reunião com o delegado José Antonio do Nascimento. (…) A Polícia suspeita que o perito cometeu suicídio — depoimentos de pessoas próximas e duas cartas redigidas por ele reforçam essa tese. A família acredita em morte natural. “Morte natural está totalmente descartada”, afirma o promotor de Justiça. “E também não estou fechado com nenhuma hipótese, nem mesmo a de suicídio”.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP