Oito meses depois de o secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, determinar a reabertura de inquérito da Polícia Civil do caso Celso Daniel, as novas investigações mantidas em sigilo convergem para uma verdade que a mesma Polícia Civil e também a Polícia Federal constataram em menos de três meses de trabalho, logo após o assassinato: o empresário Sérgio Gomes da Silva é inocente.
Dessa forma, não tem consistência a acusação dos promotores criminais de Santo André, Amaro José Thomé Filho, José Reinaldo Guimarães e Roberto Wider Filho de que Sérgio Gomes mandou matar o então prefeito de Santo André.
Desde a edição de outubro do ano passado LivreMercado é a publicação que mais penetrou nas entranhas do caso Celso Daniel. Foram 119 páginas publicadas no período. O trabalho de pesquisa, entrevistas e análise reforça na mídia impressa uma ação jornalística desbravada na mídia virtual logo após o assassinato de Celso Daniel, em janeiro de 2002, quando a newsletter Capital Social Online passou a acompanhar o assunto.
Sérgio Gomes da Silva virou bucha de canhão de interesses específicos para desgastar o Partido dos Trabalhadores. Os acusadores mais visíveis são os distantes irmãos de Celso Daniel, João Francisco e Bruno José. Sérgio Gomes é avaliado por oposicionistas como principal articulador de suposto megaesquema de arrecadação de fundos eleitorais do PT. Seria Sérgio Gomes o agente de confiança petista que trafegaria pelas prefeituras do partido para recolher recursos de fornecedores para financiar campanhas eleitorais.
A versão de que o ex-professor de História e Geografia e ex-segurança de Celso Daniel seria espécie de caixeiro-viajante dos petistas teoricamente o coloca em maus lençóis no campo cível, mas reforça a inocência na área criminal, como constataram inquéritos policiais encerrados em 2002.
Entre outras razões, essa avaliação desmontaria a principal tese dos promotores criminais de que o então prefeito de Santo André teria se revoltado ao descobrir suposto esquema de propina nos meandros da Administração. Poucos analistas do caso colocam em dúvida que — principalmente após as denúncias do chamado mensalão — Celso Daniel não tivesse amplo conhecimento e aprovasse o modus operandi atribuído ao partido para chegar ao poder dentro de regras clandestinas de financiamento eleitoral tão antigas quanto multipartidárias.
Delegada discreta
Apesar da discrição da delegada Elisabete Sato, titular do 78º Distrito Policial, dos Jardins, informações de bastidores são suficientemente sólidas para contextualizar como irreversível a ratificação do resultado das investigações realizadas a partir de janeiro de 2002, quando, na manhã de 20 de janeiro, o corpo de Celso Daniel foi encontrado numa estrada vicinal de Juquitiba, na Região Metropolitana de São Paulo.
Ao todo, ao longo do período de investigações que culminaram com o encerramento do inquérito da Polícia Civil e da Polícia Federal, nada menos que 10 delegados e 32 investigadores atuaram no caso. Promotores criminais de Santo André designados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado, reabriram o caso em meados de 2002. Eles desaprovaram a conclusão policial de crime comum.
Para o MP, Celso Daniel foi morto porque teria se rebelado ao descobrir esquema de propina na Prefeitura de Santo André. Alimentado principalmente pelo primeiro-irmão João Francisco Daniel, oftalmologista sempre distante da atividade política de Celso Daniel, o MP incursionou por caminhos diferentes dos adotados pelas Polícias Civil e Federal.
Ao longo do processo de incriminação de Sérgio Gomes os irmãos Daniel e os promotores criminais patrocinaram versões conflitantes sobre a origem do assassinato. O mesmo Celso Daniel inicialmente glorificado como opositor do suposto esquema de propina que lhe teria custado sequestro seguido de morte, se tornou, em estágio mais avançado de declarações, participante ativo dos desvios. Tanto que uma diarista declarou ter encontrado sacos plásticos recheados de dinheiro no apartamento do prefeito.
Parece pouco provável que o sempre discreto Celso Daniel fosse tão descuidado na condução de suposta organização de caixa dois. Entretanto, considerando verdadeira a informação da diarista, o relato praticamente implode a teoria do próprio Ministério Público de endeusamento ético do prefeito e, por extensão, o núcleo da teoria de assassinato por motivação político-administrativa já que Celso Daniel não só conheceria como participaria da gestão do caixa dois.
Não bastasse essa evidente contradição para neutralizar a tese de que Sérgio Gomes da Silva encaminhou o bando de pés-de-chinelo para o arrebatamento de Celso Daniel no chamado Três Tombos, a própria nomeação do então prefeito para a coordenação-geral do programa de governo pretendido pelo então candidato presidencial Luiz Inácio Lula da Silva sacramentava a intimista relação entre o administrador de Santo André e a cúpula partidária, mais tarde atingida por denúncias de corrupção.
A suposta metástase ética da cúpula nacional do PT não seria um fenômeno recente a ponto de excluir — sempre na teoria — um de seus mais brilhantes quadros políticos, no caso o então prefeito de Santo André.
À distância
Por conta das investigações dos promotores criminais de Santo André, Sérgio Gomes da Silva acabou preso em dezembro de 2003. Só está livre por força de liminar concedida em julho do ano seguinte pelo então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Nelson Jobim. O advogado Roberto Podval prefere manter distância da Imprensa. Embora LivreMercado ao longo dos últimos sete meses tenha tentado autorização para entrevista com Sérgio Gomes, a resposta é sempre a mesma: é preciso resguardar o cliente.
Há consciência entre defensores de Sérgio Gomes da Silva de que a campanha de condenação pública do homem que acompanhava Celso Daniel na noite de 18 de janeiro de 2002 ultrapassou todos os limites. Roberto Podval e sua equipe de criminalistas são parcimoniosos em declarações. Preferem amealhar provas materiais da inocência de Sérgio Gomes em vez do que eles mesmos chamam de ações espalhafatosas dos promotores criminais.
LivreMercado revelou ao longo das edições de outubro do ano passado a abril deste ano série de informações praticamente desprezadas, minimizadas ou flagrantemente estupradas pela maioria da mídia impressa e eletrônica do País. Entrevistas com protagonistas das investigações policiais retiraram do campo da especulação e levaram para a arena da materialidade informações ainda exploradas de forma imprecisa, quando não deliberadamente enviesada, pela mídia.
Um exemplo de vocação condenatória a Sérgio Gomes por um crime cujos executores confessos estão presos é o episódio envolvendo o médico-legista Carlos Delmonte. Transformado em garoto-propaganda de ética, embora tenha manipulado o conceito técnico de “tortura”, Carlos Delmonte cometeu suicídio provado e comprovado em inquérito volumoso. Entretanto, a quase totalidade da mídia prefere noticiar que o caso entra para o rol de suspeitas, insinuando participação de Sérgio Gomes da Silva.
A participação de Sérgio Gomes no crime não encontrou ressonância nos inquéritos policiais, mas a versão do Ministério Público de que o empresário preparou o espetáculo hollywoodiano de arrebatamento do veículo que dirigia para, estupidamente, ser colhido em flagrante delito, prevalece no noticiário.
Sem contar que aquela operação foi engenhosamente — segundo o enredo do MP — antecedida por outra igualmente fantástica: a fuga de helicóptero do sequestrador Dionísio Severo e um comparsa para, no dia seguinte, apanhar Celso Daniel.
Versão aniquilada nos inquéritos da Polícia Civil e da Polícia Federal. Jurado de morte pela facção criminal PCC, Dionísio fantasiou participação no caso Celso Daniel porque pretendia proteção especial na cadeia de Pinheiros.
LivreMercado mantém-se absolutamente convicta de que tanto as investigações da Polícia Civil quanto da Polícia Federal entrecruzam-se com históricos pretéritos do relacionamento de Celso Daniel com assessores diretos na Prefeitura de Santo André como também com membros nacionais do Partido dos Trabalhadores. LivreMercado e Capital Social Online opuseram-se desde o início à versão do Ministério Público por uma série de incorreções. Um dossiê com reparos sobre as investigações do MP chegou a ser enviado aos promotores.
Entre os equívocos dos promotores criminais está a versão de que o então supersecretário Klinger Sousa teria participado da operação de mando do assassinato quando, de fato, como principal colaborador de Celso Daniel, vinha sendo preparado para disputar as eleições à Prefeitura em 2004. Entre outras iniciativas que visavam dar densidade partidária e popular a Klinger Sousa constou nomeação à vice-presidência do Esporte Clube Santo André, em contraponto ao apoio financeiro que a Administração Celso Daniel ofereceu à agremiação por meio de fornecedores.
Testemunhas frágeis
A expectativa de que a delegada Elisabete Sato concluirá o novo inquérito corroborando com os principais eixos das investigações policiais de 2002 segue direção do próprio histórico do caso Celso Daniel e também informações de bastidores dos desdobramentos mais recentes. Simplificadamente, a situação poderia ser definida como caótica para quem insistiu em apontar Sérgio Gomes autor do plano de execução de Celso Daniel.
Até mesmo testemunhas de acusação do rol dos promotores criminais mostram-se reticentes quando não imprecisas nos depoimentos recentemente prestados ao juiz da Primeira Vara Criminal de Itapecerica da Serra ou através de cartas precatórias.
Embora não se manifestem oficialmente, cardeais da Polícia Civil de São Paulo não mudaram posicionamento em defesa do inquérito concluído em 2002. Os delegados Armando de Oliveira, titular do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) e Edson de Santi, do DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais) e suas respectivas equipes são elogiados pelo trabalho.
Na Polícia Federal, a atuação do delegado José Pinto de Luna também entrevistado por LivreMercado, é igualmente respeitada. A maior preocupação do DHPP é apresentar os responsáveis por outras cinco mortes de testemunhas diretas ou indiretas do caso Celso Daniel. A solução do caso do legista Carlos Delmonte e do agente funerário Iram Redua, comprovadamente sem qualquer vinculação com a morte de Celso Daniel, confirmou declarações do delegado Armando de Oliveira à LivreMercado de novembro. “As outras cinco mortes também não têm qualquer relação com o caso” — garantiu o delegado.
O que estaria de alguma forma emperrando a conclusão do novo inquérito é o quadro político-eleitoral. As relações entre a cúpula da Polícia Civil, da secretaria de Segurança Pública e do governo do Estado, mesmo com a saída de Geraldo Alckmin, não é das melhores. Principalmente depois de o delegado André Di Rissio virar Reportagem de Capa de LivreMercado com entrevista-bomba não só de sustentação de que o crime que vitimou Celso Daniel é mesmo comum como também por condenar a política de segurança pública do Estado.
Destemido, o presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo atacou duramente a interferência do Ministério Público nas investigações criminais, no controle da Secretaria de Segurança, além de ridicularizar os baixos salários da categoria, comparando-os aos dos promotores públicos como exemplo de discriminação.
No Supremo
Além das eleições presidenciais de outubro, outro ponto estaria amarrando o ritmo das investigações policiais que claramente convergem para a inocência de Sérgio Gomes da Silva. Trata-se da apreciação pelo Supremo Tribunal Federal da intervenção do Ministério Público na condução de inquéritos criminais. Os principais especialistas na matéria não têm dúvidas de que cabe à Polícia Judiciária e não ao MP o comando de inquéritos criminais, conforme determina a Constituição Federal.
O resultado parcial de 3 a 2 favoravelmente ao Ministério Público é avaliado como circunstancial. A maioria dos demais ministros do STF viraria o jogo. Entretanto, como se trata de assunto politicamente candente, têm-se como certo que será resolvido após as eleições. Mais precisamente antes da posse do presidente eleito em 1º de outubro e de qualquer forma durante o mandato de Lula da Silva.
Não falta quem interprete que uma derrota do Ministério Público no Supremo Tribunal Federal poderá ser, paradoxalmente, um alívio para os equívocos da força-tarefa instalada em Santo André. Se for confirmada como interferência indevida a atuação do MP em casos criminais, as investigações que culminaram com o pedido de prisão preventiva de Sérgio Gomes da Silva serão compulsoriamente anuladas.
Uma decisão como essa antes de outubro, sobreposta à conclusão do novo inquérito policial que inocentaria Sérgio Gomes, seria nitroglicerina pura que faria explodir o quadro político, já que o primeiro amigo de Celso Daniel é um homem condenado pela opinião pública.
Respeitada pela seriedade e capacidade de interagir, a delegada Elisabete Sato teria preferido esticar as investigações de um caso que conhece bem muito antes de ser escolhida para o novo inquérito, salomonicamente dividido com a força-tarefa do MP de Santo André. Elisabete Sato integrou uma das equipes da Polícia Civil que, mais que inocentar, considerou Sérgio Gomes vítima dos sequestradores que mataram Celso Daniel.
A memória de Celso Daniel, maior agente de regionalidade que o Grande ABC já conheceu, pelo menos ganhou momentos de conforto no mês passado, uma semana depois do que seria a comemoração de 55 anos de seu nascimento. A Prefeitura de Santo André organizou a exposição “Celso Daniel: legado de cidadania”, como parte das comemorações dos 453 anos da cidade.
O prefeito João Avamileno, a vice Ivete Garcia, a ex-mulher Miriam Belchior, assessora especial do presidente Lula da Silva, a viúva Ivone Santana, acompanhada da filha Liora, e os deputados petistas Luizinho Carlos da Silva e Vanderlei Siraque, entre outros, se juntaram a pelo menos 80 convidados. Não faltou emoção. Liora, filha de Celso Daniel e de Ivone Santana, ainda não pertence oficialmente à família Daniel. Os tios e tias, irmãos do ex-prefeito, seguem protelando procedimentos elementares para a aferição genética da paternidade. Nenhum irmão de Celso Daniel participou da exposição. Mas têm pelo menos nove oportunidades, porque a mostra é itinerante nos centros educacionais de Santo André.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP