Caso Celso Daniel

Nova denúncia contradiz ação
que levou Sérgio Gomes à cadeia

DANIEL LIMA - 05/06/2006

Os promotores públicos de Santo André que, em dezembro de 2003, denunciaram o empresário Sérgio Gomes da Silva como um dos mandantes do assassinato do prefeito Celso Daniel, continuam a colecionar provas que inocentam o acusado. As novas contradições confirmam o acerto das investigações policiais realizadas no primeiro semestre de 2002, mas, novamente, passaram despercebidas ou foram propositadamente esquecidas pela mídia no mês passado, quando novos lances do suposto esquema de caixa dois do Partido dos Trabalhadores foram anunciados pelos promotores criminais.


O indevido ajuntamento de dois pontos completamente distintos do caso Celso Daniel (o assassinato do prefeito e o suposto esquema de propina) foi a maneira encontrada pelo MP de Santo André para dar sustentação à acusação contra Sérgio Gomes. A tática procurou desclassificar o empresário no campo cível para enfraquecê-lo na área criminal.


Para entender os novos lances do caso Celso Daniel e, mais que isso, constatar que as novas investidas do Ministério Público negam os enunciados apresentados ao longo do processo, LivreMercado recorreu inicialmente a dois noticiários de um mesmo veículo de comunicação, a Folha de S.Paulo. A escolha é aleatória. Outros jornais seguiram a mesma trilha informativa.


Acompanhem os leitores os principais parágrafos da edição da Folha de 6 de dezembro de 2003, sob o título “Amigo mandou matar Daniel, diz Promotoria”:


 O empresário Sérgio Gomes da Silva foi denunciado ontem pelo Ministério Público de São Paulo como um dos mandantes do assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel (PT). Segundo a Promotoria, o crime tem relação com a campanha eleitoral que levou Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência, no ano passado. Antes de ser assassinado, Daniel havia sido convidado a assumir a coordenação do programa de governo da campanha de Lula. A cúpula petista, no entanto, teria feito um pedido: que o prefeito afastasse da administração de Santo André possíveis focos de irregularidades e os eventuais envolvidos para que fatos negativos não atrapalhassem a candidatura Lula. Diante disso, Daniel, segundo os promotores, teria oferecido “forte resistência” à atuação de Gomes da Silva e de outras pessoas na Prefeitura. Para “eliminar aquele obstáculo (o prefeito), colocado para impedir o avanço de suas atividades criminosas, que lhe rendiam vultosas importâncias, Sérgio Gomes da Silva decidiu matar o prefeito”, afirmam os promotores na denúncia. Servidores da Prefeitura descreveram à Promotoria discussões que teriam acontecido no gabinete do prefeito cerca de uma semana antes de sua morte. Podiam ser ouvidas pelos corredores. “A morte da vítima foi idealizada e encomendada por Sérgio Gomes da Silva para assegurar a execução de outros crimes (…) contra a administração pública de Santo André. Tais crimes eram combatidos pelo prefeito que, (…) na ótica de Sérgio Gomes da Silva, deveria ser eliminado definitivamente, como de fato foi”, escreveram os promotores no documento.


E agora?
Quase 30 meses depois da denúncia dos promotores de Santo André, em 25 de maio último, a mesma Folha de S.Paulo apresentou a seguinte matéria, sob o título “Secretário de Mauá acusa Lula de cobrar propina de prefeitos”:


 O secretário de Habitação de Mauá (Grande São Paulo), o ex-petista Altivo Ovando Jr., disse em depoimento ao Ministério Público de São Paulo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante a campanha de 1998 para a Presidência, “cobrou” a montagem de um esquema de propina das prefeituras municipais do PT como forma de garantir o financiamento da disputa eleitoral. Ovando Jr., que entre 1997 e 2001, foi secretário de Habitação do ex-prefeito Oswaldo Dias (PT) em Mauá, disse ter presenciado a conversa — Ovando Jr. ocupa o mesmo cargo na gestão de Leonel Damo (PV), inimigo do PT. “O declarante (Ovando Jr.) se recorda de que, no pleito de 1998, o presidente Lula compareceu no gabinete do prefeito de Mauá, oportunidade em que, utilizando termos chulos, cobrou de Oswaldo Dias maior arrecadação de propina em favor do PT”, disse o secretário em depoimento à Promotoria de Santo André no dia 9 de fevereiro (último), obtido pela Folha. O ex-petista reproduziu uma frase que teria sido dita por Lula: “Ele (Lula) dizia: “Pô, Oswaldo Dias, tem que arrecadar como faz o Celso Daniel. Você quer que a gente ganhe a eleição como?”.


Véspera
A compreensão dos novos lances do caso Celso Daniel em seus dois vetores será facilitada se se recorrer à notícia publicada pelo jornal O Estado de São Paulo um dia antes, ou seja, 24 de maio último, sob o título “Secretário relata ao MP que Dirceu sabia da cobrança de propina”:


 O Ministério Público Estadual revelou ontem ao Supremo Tribunal Federal (STF) o nome de uma nova testemunha que pode reforçar as suspeitas de envolvimento do deputado cassado e ex-ministro José Dirceu (Casa Civil) com o suposto esquema de propinas na administração Celso Daniel (PT), prefeito de Santo André sequestrado e morto em janeiro de 2002. Altivo Ovando Júnior, secretário de Habitação de Mauá, na Grande São Paulo, declarou aos promotores criminais que investigam fraudes na administração de Celso Daniel que Dirceu sabia da corrupção. “O então presidente do PT, José Dirceu, também tinha conhecimento da arrecadação de propina em Santo André, como relatava em reuniões no gabinete do prefeito”, afirmou Ovando Júnior, referindo-se a Oswaldo Dias (PT), prefeito de Mauá entre 1997 e 2004. “O Dirceu falava abertamente, sem constrangimento algum”, afirmou o secretário ao Estado. (…) O depoimento de Ovando foi tomado em fevereiro pelo MP, mas só agora os promotores o divulgaram por meio de cópia que enviaram ao ministro Eros Grau, do STF. Grau concedeu liminar para a defesa de Dirceu, proibindo a Promotoria de investigar o ex-presidente do PT. O ministro advertiu que a corte máxima da Justiça já havia barrado a apuração — em 2002, o ministro Nelson Jobim arquivou pedido do MP para rastrear os passos de Dirceu. Inconformados com o veto, os promotores encaminharam ao STF documento de 22 páginas apresentando o que definem como “provas novas” que, para eles, justificam a investigação contra Dirceu. (…) Três promotores assinam o ofício 139/06 ao STF — Amaro Thomé, Roberto Wider e Adriana Ribeiro, especialistas em inquéritos sobre corrupção e improbidade. “José Dirceu, que se auto-intitulava paradigma da ética e da probidade, hoje figura como denunciado porque seria o idealizador e principal articulador de um megaesquema de corrupção, que teve como um dos laboratórios, justamente, a cidade de Santo André”.


Seja qual for a verdade do caso de supostas propinas nas prefeituras petistas, inclusive no Grande ABC, o noticiário é esclarecedor para confirmar o esgarçamento da tese de que Sérgio Gomes da Silva é o autor intelectual da morte de Celso Daniel. Em realidade, as incoerências que saltam à vista nas denúncias do ex-secretário petista de Mauá apenas aprofundam buracos negros em que se meteram os promotores criminais e, principalmente, os irmãos João Francisco Daniel e Bruno Daniel.


Basta recordar o enviesamento conceitual ao transferirem as conclusões de crime comum de uma força-tarefa de 10 delegados estaduais e federais e 32 investigadores para crime de encomenda, por decisão dos promotores criminais. As primeiras informações davam conta que Celso Daniel descobrira irregularidades administrativas, contra as quais se rebelou, e por isso teria sido assassinado. Mais adiante, declarou-se que Celso Daniel sabia do suposto esquema de propina mas resolveu reagir porque estaria havendo desvio para bolsos particulares, em prejuízo do caixa dois do PT. Mais para a frente ainda, Celso Daniel foi apanhado em flagrante delito por uma diarista, que teria visto três sacos plásticos de dinheiro em seu apartamento. Mais ainda: o notoriamente reservado e discreto Celso Daniel teria sido visto por um garçom de um restaurante fino de Santo André em suspeitíssima manipulação de dinheiro com companheiros de mesa.


De vítima a cúmplice, tudo se afirmou sobre Celso Daniel. Inclusive com o suporte dos irmãos João Francisco e Bruno Daniel Filho que, sabidamente, só se encontravam com o prefeito em monótonos aniversários da família, quando falar de política era proibido. Fora isso, Celso Daniel era eventualmente visitado em seu gabinete por João Francisco, useiro e vezeiro em solicitar favores.


Com tudo isso, é automático o esfarelamento da tese de crime de encomenda. As declarações do ex-petista Altivo Ovando Júnior reveladas no mês passado pelo Ministério Público confirmam que os dois vértices do caso Celso Daniel são inconciliáveis. Para que a versão de crime de encomenda seja factível, é preciso jogar na lata do lixo todo o enredo contraditório. Quanto mais eventualmente se desvenda o crime de financiamento de campanha, mas se distancia o assassinato de encomenda.


Passado explica
Por isso, a tarefa mais ajuizada que o jornalismo independente pode prestar é recorrer ao passado de informações sobre o caso Celso Daniel para desmascarar a versão que tenta desqualificar os inquéritos da Polícia Civil e da Polícia Federal. Se correta a versão de que o presidente Lula da Silva e o então superministro José Dirceu comandariam o esquema de propina petista em nível nacional, por que haveria Celso Daniel de ser assassinado a mando de integrantes do esquema?


Antes disso: se nas próprias supostas declarações de Lula da Silva de enaltecimento do poder arrecadatório de Celso Daniel projetava-se padrão de caixa dois a ser seguido para embates futuros, por que então o prefeito mais tarde assassinado haveria de opor-se ao esquema do qual seria o paradigma?


Os promotores responderam recentemente a esse questionamento ao dizerem que a causa de tudo teriam sido os desvios. Nada viável. Essa justificativa foi produzida muito tempo depois da intervenção dos promotores no caso e muito tempo antes de se anunciar que Celso Daniel participava da arrecadação. A suposta veracidade de crime de encomenda não teria sobrevida sem justificativa minimamente plausível.


Por isso mesmo que o atribuído comportamento de Celso Daniel saiu da fase de desconhecimento total do esquema de propina e chegou ao extremo oposto, de lambança com notas de reais. Nada mais desmascarador da tese central dos promotores criminais de que Celso Daniel pretendia limpar a área da administração de Santo André de supostos sanguessugas. Ou alguém que é visto com sacos de dinheiro em casa estaria supostamente cuidando de reservas públicas?


O esboroamento da tese de crime encomendado se acentua ainda mais quando se somam eventuais declarações e ações tanto de Lula da Silva quanto de José Dirceu. Mais ainda com o cruzamento das informações divulgadas no mês passado pelo Ministério Público e o desencadeamento do mensalão, denunciado pelo deputado Roberto Jefferson em maio do ano passado.


Primeiro porque, sempre por suposição, o esquema de caixa dois teria se intensificado após a derrota de Lula para Fernando Henrique Cardoso em 1998, porque seria preciso viabilizar a vitória em 2002. E teria aumentado ainda mais na sequência não só por conta do domínio federal mas porque aquele seria preciso produzir maioria parlamentar na Câmara Federal. Ou é fantasia que os oposicionistas denunciaram que dos planos do PT constava o controle da República por pelo menos 20 anos? Nada diferente dos planos de Fernando Henrique Cardoso e dos tucanos e aliados eleitos em 1994.


Requisitos preenchidos
O segundo ponto de atomização da versão de crime de encomenda defendido pelo Ministério Público é o fato de que, antes da vitória petista em 2002, a convocação de Celso Daniel para comandar o programa de governo do então presidenciável Lula da Silva indicaria, entre outras nuances, que o prefeito de Santo André preenchia todos os requisitos de reforço da candidatura do partido.


Entre essas qualidades estaria o supostamente modus operandi de financiamento eleitoral. Celso Daniel não seria ministro de ponta de um governo petista, por mais brilhante que fosse, e sempre considerando verdadeira a suposição de caixa dois, se não integrasse a cúpula do partido. E não integraria a cúpula petista, ainda sob o condicionamento de suposições, se não ajudasse a engordar as receitas do partido.


Caso específico de Antonio Palocci Filho, recentemente apeado do Ministério da Fazenda por causa da quebra do sigilo bancário de um caseiro mas que responde a uma montanha de inquéritos por denunciadas irregularidades nos tempos em que comandou a Prefeitura de Ribeirão Preto.


A propalada discussão em altos brados uma semana antes do assassinato, que teria envolvido Celso Daniel e assessores próximos, entre os quais aqueles para os quais o Ministério Público aponta o dedo de participantes de esquema de propinas, não se confirmou nos inquéritos policiais do primeiro semestre de 2002, depois de ouvidas várias testemunhas. Inclusive João Francisco Daniel e Bruno José Daniel.


Trata-se de versão insustentável orquestrada para ajudar na fundamentação de crime de mando. A delegada Elisabete Sato, que conduz desde o final do ano passado novo inquérito policial sobre o caso Celso Daniel, já esteve no Paço Municipal de Santo André. Ouviu do prefeito, assessores e secretários que os divulgados decibéis elevados no gabinete do prefeito em janeiro de 2002 são inverossímeis. Celso Daniel jamais se prestaria a dar ou a participar de espetáculo vocal, porque esse não era seu estilo.


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