Caso Celso Daniel

Promotor luta muito mas sofre
em debate desigual na Uniban

DANIEL LIMA - 05/06/2006

Se a posição do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a possibilidade de o Ministério Público exercer papel constitucional de investigação atribuído à Polícia Judiciária dependesse do debate realizado no final de maio na Uniban da Vila Maria, em São Paulo, o resultado seria mais que previsível: o MP perderia de goleada essa disputa interrompida em Brasília com três votos a dois à elasticidade de atribuições funcionais dos promotores e procuradores.


O promotor criminal José Reinaldo Guimarães, que atuou no caso Celso Daniel e também na chamada máfia da arbitragem, foi triturado com classe e diplomacia pelo criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira e por André Di Rissio, titular da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo. O ex-deputado federal Wagner Rubinelli, apenas um convidado à mesa de debates, tentou socorrer José Reinaldo em breves e inúteis intervenções. O mediador Fernando Capez, também promotor público, teve destino semelhante.


Em defesa do promotor criminal José Reinaldo restaram o fairplay e a elegância com que expôs argumentos que procuraram legitimar a atuação do Ministério Público, principalmente nos chamados crimes do colarinho branco. José Reinaldo recorreu à história, buscou exemplo nos escritos do Padre Vieira, fez tudo o que era possível. Só não mencionou uma vez sequer sua atuação no caso Celso Daniel.


André Di Rissio bateu forte sempre com um sorriso nos lábios, a voz modulada de acordo com a sensibilidade de compreender a reação da platéia forrada de estudantes. Mariz de Oliveira foi professoral, meticuloso. Arrebatadoramente conciso. Deu show em defesa da legitimidade constitucional. Por isso disse que o papel de investigação criminal é da Polícia. Só da Polícia. Pelo menos, ressaltou, até que a Constituição Federal eventualmente seja alterada.


Embora o promotor José Reinaldo Guimarães tenha deixado o debate em evidente desvantagem, depois de receber seguidos golpes técnicos de Di Rissio e de Mariz de Oliveira, não se pode retirar-lhe o mérito de que foi cavalheiro, objetivo na teoria em defesa do poder de investigação do Ministério Público, mas, nem por isso, suficientemente cuidadoso. Chegou a cometer deslizes que não passaram incólumes por adversários tão atentos e contundentes.


Um exemplo: quando se referiu ao julgamento interrompido no STF, sem mencionar entretanto que aos três votos pró-MP contrapõem-se dois pró-Polícia, abriu a brecha para que o delegado André Di Rissio o lembrasse de que o simples fato de estar em julgamento significa que os preceitos constitucionais vigentes impedem que os promotores investiguem. Outro escorregão: José Reinaldo chegou a afirmar que cabem ao Judiciário atos de fiscalização do Ministério Público. Mariz reagiu prontamente, para delírio da platéia: o Judiciário julga, apenas julga, não fiscaliza.


Mais dos melhores
Outros dos melhores momentos do debate na Uniban poderiam ser pinçados seguindo rigores de imparcialidade avaliativa. Por exemplo: José Reinaldo indagou de Mariz de Oliveira, velha raposa de tribunais, por que os suspeitos de crimes se sentem mais à vontade nos inquéritos policiais em relação aos depoimentos aos promotores? O questionamento aparentemente encurralava o criminalista, dando-lhe a entender que o MP é mais respeitado pelos acusados. A resposta do advogado foi cortante. Mariz disse sem pestanejar: “Porque sabem que as investigações são legalistas”.


Em intervenções anteriores, o criminalista respondeu com clareza a pergunta-eixo do debate — “Quem deve investigar: o promotor ou o delegado de Polícia” — ao afirmar reiteradamente: “Enquanto a Constituição de 1988 for mantida, as investigações devem ficar com a Polícia, porque o MP investiga de forma seletiva. Há tendência, principalmente entre os procuradores da República, de atuar sem a imparcialidade da Polícia. O MP já está comprometido com a acusação, o que torna a situação grave” — disse. E reiterou: “O MP, não todos os seus membros, investiga e desobedece as normas do Código de Processo Penal, que prevê ouvir os acusados”.


Foi nesse ponto, apenas nesse ponto, que Mariz fez menção ao que chama de “caso Santo André”. O promotor José Reinaldo preferiu o silêncio. Sérgio Gomes da Silva saiu da condição de vítima nas investigações policiais e se tornou mandante do crime do prefeito Celso Daniel sem ao menos ser ouvido pelos promotores criminais de Santo André. Nem ele nem muitos outros protagonistas e figurantes que atuavam no entorno do prefeito Celso Daniel.


À pergunta de Wagner Rubinelli (”Quem tem medo do Ministério Público”), André Di Rissio e Mariz de Oliveira foram enfáticos. “Ilegalidade é o medo da Polícia Civil” — disse Di Rissio, referindo-se à sustentação de que o MP não pode tomar o papel de investigação da Polícia Judiciária. “Eu tenho medo do MP à revelia da Constituição e que promove investigações do agrado da mídia. Na legalidade, pode investigar” — afirmou Mariz. E completou: “Por que o Ministério Público não investigou o PCC (Primeiro Comando da Capital), que foi criado desde 1993? Cadê o MP? A Polícia investiga muito bem”.


Durante os 90 minutos do debate encerrado sob aplausos, só faltou de fato riscar o fósforo do caso Celso Daniel, temário do delegado André Di Rissio é combatente exemplar de crítica à atuação dos promotores criminais de Santo André, como declarou em extensa entrevista a LivreMercado de fevereiro. Mas aí provavelmente seria demais. É provável que a diplomacia não fosse esquecida, que os entreveros de opinião se mantivessem em decibéis comportados, mas ficou a impressão de que se formulara um acordo telepático para retirar da pauta tudo que fosse específico. Mas, no fundo, no fundo, o fantasma do caso Celso Daniel vagava pelo auditório da Uniban.


O confronto entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público levado aos estudantes da Uniban poderia ter acentuado ainda mais o desconforto do promotor criminal José Reinaldo Guimarães se o delegado André Di Rissio ou o criminalista Mariz de Oliveira tivessem requisitado um lance no mínimo inusitado, que envolve o secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, em julgamento pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Saulo Abreu é acionado por abuso da autoridade: ele teria interferido num problema de trânsito em que manobristas e um sócio do restaurante Kosushi, da Capital, acabaram presos.


Saulo de Castro Abreu foi denunciado pelo Ministério Público por ter acionado um grupo de elite da Polícia Civil para executar a tarefa. O quadro não seria tão extraordinariamente complicado se Saulo Abreu não fosse promotor público e se, principalmente, seus advogados, Manoel Alceu Affonso Ferreira e Eduardo Carnelós, não estruturassem a defesa justamente na inconstitucionalidade investigatória do Ministério Público. O relator do caso no Tribunal de Justiça votou para que a denúncia seja aceita. Outros 24 desembargadores vão ter que votar. Entretanto, como três deles solicitaram vista para analisar melhor o caso, é possível que a decisão se estenda por tempo indefinido. A defesa de Saulo de Castro Abreu utiliza argumentos semelhantes aos dos defensores de Sérgio Gomes da Silva: houve falhas na investigação do MP, entre outras razões porque testemunhas importantes não foram ouvidas. Sem contar o princípio de inconstitucionalidade.


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