Um acachapante calhamaço de interesses partidários, travestido de profilaxia político-administrativa. Não há melhor definição para as conclusões do capítulo referente ao caso Celso Daniel da CPI dos Bingos, também conhecida como CPI do Fim do Mundo. O documento aprovado em 20 de junho como relatório final reuniu 1.430 páginas e um amontoado de contradições, imprecisões, especulações e tudo que não convém para colher informações pretensamente esclarecedoras.
Mais que isso: como o festival de espetacularização cinicamente chamado de processo investigativo concluiu que o assassinato do prefeito Celso Daniel teria sido por motivação política, o empresário Sérgio Gomes da Silva deveria ter inocência anunciada.
O relatório preferiu denunciá-lo ao Ministério Público que, por sua vez, já havia decidido incriminá-lo em dezembro de 2003 por motivo exatamente contrário ao concluído pela CPI dos Bingos, ou seja: a cúpula petista pretenderia acabar com o suposto esquema de financiamento paralelo de campanhas eleitorais em Santo André por estar preocupada com a disputa de Lula da Silva à presidência da República finalmente conquistada oito meses depois da morte de Celso Daniel.
Mais tarde, o MP reformulou a própria sentença, colocou a cúpula petista no pelourinho, mas, contraditoriamente, não retirou a denúncia contra Sérgio Gomes.
O contra-senso entre o relatório da CPI e a denúncia inicial dos promotores criminais de Santo André é fácil de explicar, embora em princípio pareça complexa demais. Afinal, a denúncia do Ministério Público que levou Sérgio Gomes à cadeia por quase oito meses sustentou que ele teria mandado matar o prefeito Celso Daniel porque havia ordens da cúpula do PT contrárias às supostas irregularidades na gestão de Celso Daniel.
Seria preciso eliminar os problemas antes que fossem explorados pela oposição. A CPI dos Bingos bateu de frente com a teoria dos promotores criminais de Santo André explicitada em dezembro de 2003 mas recauchutada nos últimos tempos pelo mesmo MP: a cúpula nacional do PT fazia do governo Celso Daniel um dos pólos mais ostensivos de arrecadação de recursos para financiamento de campanha eleitoral, afirmaram os oposicionistas.
Qualquer advogado bem informado saberá destruir em eventuais futuros embates judiciais a argumentação inicial do Ministério Público que, em dezembro de 2003, sensibilizou o juiz da 1ª Vara Criminal de Itapecerica da Serra a determinar a prisão de Sérgio Gomes. Se o Paço de Santo André era um ninho de corrupção, como tanto o MP como a CPI dos Bingos alardearam nos últimos tempos, o motivo do crime jamais poderia estar relacionado à extinção do esquema por determinação da cúpula nacional petista.
Como acreditar nessa versão se, mais tarde, como se sabe, o então deputado federal Roberto Jefferson denunciou o que se convencionou chamar de mensalão, cuja origem remonta à campanha que levou Lula da Silva à presidência e se teria estendido após a chegada do PT ao poder?
Fora esse tropeço que desmonta a tese do MP que resultou na prisão temporária de Sérgio Gomes, há algazarra teórica dos promotores criminais que não encontra resistência nos fatos, como LivreMercado tem apontado ao longo dos últimos tempos.
Entretanto, como se sabe, a maioria da mídia simplesmente atira ao lixo as fragilidades da denúncia do MP porque a exposição a condenaria por desleixo, despreparo e vertiginosa vocação ao comodismo de pendurar-se preguiçosamente em fontes sempre mais simpáticas, organizadas e facilitadoras de reportagens.
A mídia impressa nacional, para variar, mais reportou do que analisou o relatório final da CPI dos Bingos, quando foi solicitado o indiciamento de 83 pessoas físicas e jurídicas, entre as quais, além de Sérgio Gomes da Silva, Paulo Okamotto, amigo do presidente Lula da Silva e presidente do Sebrae, e o ex-ministro Antonio Palocci.
Foram excluídos da relação encaminhada ao Ministério Público o chefe de gabinete do presidente da República, Gilberto Carvalho, e o ex-ministro José Dirceu, da Casa Civil. Bastariam essas duas supressões para desqualificar a CPI dos Bingos no capítulo Celso Daniel. Gilberto Carvalho e José Dirceu ocuparam páginas e páginas do relatório como participantes ativos do suposto esquema de corrupção na Prefeitura de Santo André exatamente no período em que o Ministério Público (sempre com base na denúncia à Justiça e que culminou com a prisão de Sérgio Gomes da Silva) argumentou que a cúpula nacional petista estava contrariada com a descoberta de que a administração de Celso Daniel tornara-se praticante de caixa dois.
A esquizofrenia do relatório da CPI é evidente, porque deu todo o aval às denúncias dos irmãos João Francisco Daniel e Bruno José Daniel para incriminar Sérgio Gomes da Silva, e desprezou o suposto envolvimento de Gilberto Carvalho e José Dirceu, apesar de reiterar como verdade absoluta o caixa dois em Santo André, do qual tanto o ex-chefe da Casa Civil como o ex-chefe de gabinete de Celso Daniel seriam articuladores e operadores vitais. Foram os próprios irmãos, aliás, que enfiaram José Dirceu e Gilberto Carvalho no mesmo saco de irregularidades.
Também foram solenemente ignorados os consistentes depoimentos dos delegados da Polícia Civil de São Paulo, Armando Costa, José Masi e Edson de Santi, e do delegado da Polícia Federal José Pinto de Luna. Eles investigaram o caso com mais de três dezenas de subordinados e concluíram que a morte de Celso Daniel por um bando de pés-de-chinelo foi obra do acaso, um crime de ocasião como tantos outros numa Região Metropolitana de São Paulo que batia, então, recordes de casos de sequestro.
Os senadores oposicionistas preferiram mesmo, embora de forma mitigada, dar crédito aos irmãos sempre distantes de Celso Daniel, colhidos em flagrantes contradições ao longo de mais de quatro anos que separam o sequestro do prefeito e suas intervenções testemunhais. Também optaram pelo depoimento do médico-legista Carlos Delmonte, que se suicidou algum tempo depois. No depoimento prestado por Delmonte, Celso Daniel foi torturado antes de morrer. Uma versão combatida pelo também legista José Jarjura Jorge Júnior, que dirigia o IML (Instituto Médico Legal) quando da morte de Celso Daniel.
As marcas de violência no corpo do então prefeito de Santo André foram típicas de quem recebeu o impacto de oito tiros à queima-roupa. Uma cena de características rotineiras na periferia da Grande São Paulo, onde dezenas de cadáveres vítimas de projéteis engrossam todo mês as estatísticas do governo paulista. Seria de surpreender e provavelmente motivo de teses científicas se corpos abatidos por projéteis não apresentassem marcas de “violência”, no sentido etimológico e não político do termo.
Embora interesseiramente eleitoral (um dos combatentes mais radicais das sessões é o senador José Jorge, candidato a vice-presidente na chapa de Geraldo Alckmin), a CPI dos Bingos acabou por recolocar o caso Celso Daniel na mídia e, compulsoriamente, fragilizou entre os especialistas a teoria de crime encomendado.
Os senadores mais raivosos e imprudentes na vinculação da morte do prefeito com o suposto esquema de propina mal poderiam imaginar, entretanto, que na medida exata em que enfatizavam vínculos de financiamento de campanha e o assassinato do prefeito, mais inocentavam Sérgio Gomes da Silva.
É claro que o relatório da CPI dos Bingos incursiona por terreno diferente, de vínculo entre dinheiro e morte. Desde o princípio esse era o objetivo do festival de demagogia, proselitismo e desconhecimento do caso Celso Daniel por parte de senadores sempre ávidos em tornar as transmissões da TV Câmara shows histriônicos, quando não de arrogância e desmandos. Inclusive com ameaça de prisão de depoentes que constavam da lista de hostilizáveis. É claro que se distribuíram lantejoulas verbais aos depoentes que envergaram cores oposicionistas. Caso de membros da família Gabrilli, de Santo André, denunciadora de esquema de propina no setor de transporte coletivo.
Nem mesmo as duas acareações em São Paulo entre os assassinos do prefeito e Sérgio Gomes, quando os sequestradores reafirmaram desconhecer o empresário e descartaram qualquer ligação dele com o crime, retiraram os senadores oposicionistas da vereda previamente escolhida para levar o caso Celso Daniel às proximidades das eleições presidenciais.
O palanque eleitoral da CPI dos Bingos durou praticamente um ano. Espertamente, abriu algumas brechas para encaixes da tese de crime comum apenas como jogo de faz-de-conta circunstancial, sem valor nas conclusões apresentadas. Um jogo de cartas marcadas em que a oposição nem se deu ao trabalho de parecer comprometida de fato com a verdade.
Pobres na avaliação dos trabalhos, principalmente os jornais diários se limitaram a terceirizar avaliações sobre a aprovação do relatório. Recorreram para tanto aos próprios e suspeitos senadores com frases manjadíssimas de conotação político-eleitoral. Pouco espaço também foi reservado nas páginas de editoriais. Nada mais elucidativo para entender os matizes dos noticiários do que comparar dois editoriais publicados no mesmo dia, 22 de junho, no Estadão e na Folha de S.Paulo.
Sob o título “De uma CPI para outra”, alguns trechos do Estadão são emblemáticos da oposição que o jornal paulistano expressa em relação ao governo Lula da Silva:
“Mas como ficou patente, o inquérito (CPI dos Bingos) extrapolou do seu alvo original pela simples razão de se tratarem de crimes conexos, entre si, e com o da tavolagem. Também a CPI dos Correios foi naturalmente levada a apurar delitos não circunscritos à corrupção na estatal. O texto assinado pelo senador peemedebista Garibaldi Alves é uma conta de chegar — para garantir que fosse votado, o relator deixou de pedir o indiciamento do ex-ministro José Dirceu e do chefe de gabinete e secretário do presidente da República, Gilberto Carvalho, citado 50 vezes no documento. O governo claramente entregou os anéis (Palocci e os demais citados) para salvar os dedos — o homem de absoluta confiança de Lula, ou seja, o próprio Lula. De todo modo, os podres do PT, comprovados ou alegados, estão caracterizados na peça: da máfia do lixo em Ribeirão Preto às doações ilegais da jogatina à campanha de Lula, do assassínio do prefeito Celso Daniel aos dólares de Cuba — além, é claro, das traficâncias de José Dirceu na Loterj. (…). A CPI dos Bingos não acabou com o mundo do petismo, nem perfurou a armadura em que se enfiou o presidente, mas fez mais que murmurar. O seu desfecho expõe um dos vários limites à atuação desses organismos. Logo se conhecerão os da CPI dos Sanguessugas, sobre compras fraudadas de ambulâncias que começa na próxima semana” — escreveu o editorialista do Estadão em 22 de junho.
O editorial da Folha de S.Paulo da mesma data é mais cauteloso e menos festivo sobre os resultados da CPI dos Bingos. Alguns dos principais trechos, sob o título “Relatório disperso”:
O documento aprovado anteontem como relatório final da CPI dos Bingos é uma ode à dispersão. São 1.430 páginas e um índice que abrange das legislações sobre os jogos de azar à máfia do lixo em Ribeirão Preto, do caso GTech à corrupção na Prefeitura de Santo André, das loterias estaduais ao assassinato do prefeito de Campinas. Como sucede aos que miram em todas as direções, passa longe de desferir um tiro certeiro — não dá nenhum passo importante na investigação dos desmandos. As dúvidas ainda em curso sobre a morte de Celso Daniel, ex-prefeito petista de Santo André, sem dúvida constituem capítulo mais rumoroso que filigranas sobre o problema dos bingos na América Latina. A suposta atuação do ex-ministro José Dirceu e de Gilberto Carvalho, assessor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no esquema de propina que pode guardar relação com o caso continua tão obscura como antes. Dirceu e Carvalho acabaram excluídos da lista de indiciados. (…) Resta à CPI o efeito político. As comissões têm o grande mérito de concentrar a atenção da opinião pública durante os inquéritos. Contribuem assim para enfatizar a gravidade do problema e vivificar a necessidade de cobrança. Mas o mesmo espírito de cobrança que suscitam a respeito dos esquemas de corrupção deve ser exercido sobre comissões que pouco avançam na descoberta de fatos novos. Às CPIs, a Constituição confere um grande poder de investigação, o que tem faltado em seus trabalhos” — escreveu o editorialista da Folha.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP