Não resisto à tentação de, sempre que o caso Celso Daniel volta às manchetes — e sempre volta com imperfeições aperfeiçoadas por curiosos se metem a escrever sobre o assunto — me proponho a colocar em xeque quem se julga espertíssimo sobre o desenrolar dos fatos.
Em junho deste ano, com todo o respeito que o Ministério Público me merece, propus escrever a oito mãos, duas minhas e seis dos promotores que atuaram no Gaeco de Santo André, um livro que replicasse o sistema de júri popular. Eu os enfrentaria sem o menor temor. Disponho de bala suficiente, no sentido figurado, é claro, para provar o quanto se precipitaram nas investigações e também na relatoria estridente à Imprensa.
Pois agora que entrou em campo o celebradíssimo Francisco Cembranelli, com o recall de confiabilidade do caso Nardoni, amplio a proposta: façamos um livro a 10 mãos, ora bolas! Que Cembranelli seja bem-vindo. Serei eu contra eles. Quem ganhará será a sociedade, que terá o que sempre faltou como massa crítica nacional: o contraditório sobre um caso muito mal conduzido pela mídia sempre apressada e, nesse caso específico, por causa da conotação política e partidária, também tendenciosa.
Estou forradissímo de documentos e informações que comprovam à exaustão que o caso Celso Daniel foi transplantado do ambiente criminal, de sequestro seguido de assassinato, para a arena política.
Essa mistureba é dominante entre os brasileiros. Nove em cada 10 leitores de jornais, de revistas e também entre telespectadores, estão certos de que o crime que vitimou aquele que seria o coordenador da campanha que levou Lula da Silva à presidência da República, em 2002, tem estreita relação entre supostas propinas no centro de operações de arrecadação de fundos do Partido dos Trabalhadores no Estado de São Paulo, a Prefeitura comandada por Celso Daniel, e o desenlace policial.
Da mesma forma que já não tenho mais paciência para equalizar informações dos comentaristas esportivos sobre lances polêmicos, porque a maioria não tem personalidade para assumir o que afirmam nos bastidores, no caso Celso Daniel toda vez que as manchetes retomam a espetacularização de assassinato de origem híbrida entre administração pública e criminalidade propriamente dita, aparecem escrevinhadores de improviso. São profissionais de jornalismo que, à falta de informações vasculhadas pessoalmente e também de memória, submetem-se às armadilhas da Internet, caem de pára-quedas. São especialistas em mixagens cenaristas. A maioria não tem memória dos fatos, até porque não acompanhou os fatos. Preferem versões que interessam às respectivas publicações e emissoras de rádio e televisão.
Foi assim, aliás, o que se deu no final de semana com as revistas semanais. Mimetização que não fugiu também do padrão do jornalismo diário. Todos os veículos seguiram o mesmo trajeto errático de acreditar piamente na recuperação de informações ultrapassadas como fonte inesgotável e irretocável.
A engrenagem emperrada pela areia do imediatismo do jornalismo de múltiplas fontes de informação mas de escassez de reflexão teve contraponto saudável no texto de Fernando Porfírio, da revista eletrônica Consultor Jurídico, uma de minhas leituras preferenciais.
Especificamente um trecho da reportagem postada na última sexta-feira derruba o enunciado da maioria dos textos jornalísticos mais tradicionais. Leiam:
Nem os jurados nem o juiz entraram na questão de o crime ter tido ou não motivação política. Mas eles entenderam que o crime foi praticado por motivo torpe e com recurso que impossibilitou a defesa da vítima. As duas qualificadoras permitiriam ao juiz que presidiu o conselho de sentença dosar a pena entre 12 e 30 anos. O juiz concluiu que não houve agravantes ou atenuantes, mas que a vítima sofreu desnecessária privação de liberdade.
Ora, ora, não foi isso que li nos jornais diários francamente alinhados à tese de crime político que o Ministério Público tanto massificou ao longo dos anos, enquanto os policiais civis que apuraram o caso Celso Daniel em dois inquéritos excluíram a relação entre uma coisa (propina) e outra (assassinato).
É claro que o promotor Francisco Cembranelli, como afirma a equilibrada matéria de Consultor Jurídico, sustentou a tese de que Celso Daniel morreu porque decidiu impedir o enriquecimento pessoal, fruto de corrupção, dos envolvidos em um escândalo de fraude e propina na Prefeitura de Santo André. “De acordo com o raciocínio da acusação — escreveu Fernando Porfírio — o caso não foi um delito comum, mas um crime político. O prefeito fazia vistas grossas com os desvios de recursos dos cofres públicos. Celso Daniel mudou de atitude quando descobriu que os envolvidos passaram a se locupletar pessoalmente com os recursos arrecadados, que deveriam ser destinados ao Partido dos Trabalhadores” — escreveu o repórter de Consultor Jurídico.
Francisco Cembranelli repete velha ladainha dos promotores criminais do Gaeco de Santo André. Não há novidade alguma, exceto ênfase redobrada de credibilidade. Afinal, Cembranelli só faltou ser carregado em triunfo após o júri que condenou o casal Nardoni. O recall de que goza junto à sociedade não é pouca coisa. É um adicional importantíssimo à consolidação da tese de crime político.
Pensei com meus botões no final de semana que passou, enquanto repassava várias fontes de informações, se o jogo que está sendo jogado para trancafiar todos os envolvidos no sequestro e na morte de Celso Daniel é um jogo de um time só, do time da condenação. Sim, porque no júri da semana que passou nem o próprio indiciado, Marcos Roberto Bispo dos Santos, apareceu no tribunal da 1ª Vara de Itapecerica da Serra. Outros cinco acusados ainda vão ser levados a julgamento, provavelmente em 2012. Eles participaram efetivamente da ação criminal, conforme apurou a polícia paulista. Não estou considerando Sérgio Gomes da Silva, a quem os jornais chamam de Sérgio Sombra para desqualificá-lo. Afinal, sem qualquer participação no caso segundo as investigações policiais, a defesa de Sérgio Gomes impetrou recurso no Supremo Tribunal Federal para invalidar a investigação do Gaeco.
Por enquanto o Ministério Público ganha de lavada o jogo midiático e teoricamente está em grande vantagem também no campo de julgamento, já que a condenação de Marquinhos foi explorada como um gol de placa para a ligação de uma coisa (assassinato) a outra coisa (corrupção). Resta saber se se trata de uma competição desigual ou se a defesa de Sérgio Gomes estaria preparando contragolpe fatal à possibilidade do então primeiro-amigo de Celso Daniel ser conduzido ao tribunal do Júri.
De minha parte digo e repito que são tão evidentes os pontos de fragilidade do Ministério Público que não tenho receio de desafiar a todos eles, promotores, para um livro-júri. É claro que não vão aceitar uma disputa em que a racionalidade estará em primeiro plano. O que lhes interessa sempre e sempre é a espetacularização fomentada desde que iniciaram investida condenatória por conta da reação petista de politizar o sequestro num período em que a Região Metropolitana de São Paulo tinha tantos cativeiros quanto pizzarias.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP