Caso Celso Daniel

Grande circo Celso Daniel

DANIEL LIMA - 08/12/2010

O espetáculo é mambembe como sempre, mas como a demanda por espetacularização é crescente no mercado brasileiro de informação criminal, com programas televisivos e radiofônicos que registram audiências sempre compensadoras, vira e mexe o caso Celso Daniel volta ao picadeiro de subjetividades e de politização disfarçada de Justiça. Desta vez, o julgamento do primeiro dos sete sequestradores do então prefeito de Santo André, o pé-de-chinelo Marcos Roberto Bispo dos Santos, causou frisson. Novembro repetiu agendas anteriores, desde que o corpo de Celso Daniel foi encontrado numa estrada vicinal em Juquitiba, naquela manhã de domingo, em 20 de janeiro de 2002. Um crime que vai completar nove anos de sessões intermitentes como chuvas de verão.


Não bastasse a certeza de que a retomada da pauta do assassinato do prefeito petista monopolizaria famosos e anônimos, desta vez quem atraiu holofotes foi o promotor criminal Francisco Cembranelli, disputadíssima celebridade após atuar no rumoroso julgamento do casal Nardoni. Com Cembranelli no júri, não há quem segure as emoções.


Jornais e revistas esquecem, entretanto, de um detalhe: quando reproduzem coberturas antigas de páginas de Internet e de arquivos em papel tornam as reportagens do caso Celso Daniel caricaturas de bom jornalismo. Principalmente porque copiam fraudes originais, alimentadas e retroalimentadas por imprecisões bem ao gosto do freguês político de ocasião.


Entenda-se por fraudes um conjunto de anomalias midiáticas que começam com distorções propositais de informações oficiais, manipulação de dados, perpetuação de fantasias e multiplicação de versões rocambolescas. Tudo rigorosamente preservado por monolítico sistema que só reconhece um lado do disco em 78 rotações ditatoriais, sem tecnologia democrática alguma.


Valem apenas as versões que cristalizem o assassinato de Celso Daniel como manobra maquiavélica daquele que todos evitam chamar de primeiro-amigo, no caso o empresário Sérgio Gomes da Silva. Uma identidade asfixiada em nome do desclassificatório Sérgio Sombra. Não há registros da Imprensa antes do assassinato de Celso Daniel que Sérgio Gomes da Silva fosse chamado de Sérgio Sombra. Nem como composição de nome, como Luiz Inácio Lula da Silva e tantos outros.


O contexto em que o promotor Francisco Cembranelli deitou e rolou cátedra não poderia ser mais apropriado. Seria algo como entregar a Ronaldo Fenômeno, mesmo fora de forma, a possibilidade de dominar a bola na pequena área adversária e, sem zagueiros a combatê-lo e sem um goleiro a atrapalhá-lo, esperar que ele fizesse o gol. Se com todos os infortúnios Ronaldo Fenômeno ainda dá seu show particular, o que esperar de Francisco Cembranelli que, diante de jurados mas sem testemunhas, porque o sequestrador Marcos Roberto Bispo dos Santos estava foragido, desenvolveu toda uma oratória que vincula o crime às supostas algazarras administrativas de Celso Daniel e seus amigos à frente e nos arredores da Prefeitura de Santo André.


Uma teoria que segue à risca o enredo traçado pelo Gaeco, a força-tarefa de promotores criminais que o governo do Estado criou no Grande ABC logo após o assassinato para desclassificar a tese de crime comum que a Polícia Civil de São Paulo, também sob o controle do governo estadual, concluiu após duas detalhadas investigações. Seria demais esperar que Cembranelli, escolhido a dedo para atuar no júri, navegasse em outras águas. Na realidade, o promotor criminal fez uma participação especial.


Alguns dias depois da atuação no tribunal de Itapecerica da Serra, Francisco Cembranelli anunciou que não participará dos julgamentos dos demais sequestradores de Celso Daniel, previstos para o ano que vem. Coincidentemente, um ano de novas disputas eleitorais. Acredita-se que o resultado do julgamento já estabeleceu o ritmo dos demais. Em linguagem do Direito, já teria criado jurisprudência, no caso, em termos de tratamento da mídia e de reação popular. Transportar o caso Celso Daniel para o ambiente emocional é uma maneira praticamente certeira de desclassificar a atuação da polícia paulista.


A concentração do noticiário em torno do papel de vigilante da Justiça do promotor criminal Francisco Cembranelli demoniza ainda mais Sérgio Gomes da Silva como autor intelectual do assassinato de Celso Daniel e procura enterrar o que poderia ter restado de prestígio ético do Partido dos Trabalhadores depois do Mensalão. O noticiário que se seguiu à condenação a 18 anos em regime fechado do bandido Marcos Bispo dos Santos, semanas depois detido em Diadema, foi um samba de uma nota só. O PT industrializava propinas em Santo André.


Uma olhadela na Internet dá a dimensão do quanto veículos de comunicação repetiram a mesma ladainha de sempre, alimentados por agências de notícias: Sérgio Gomes contratou um bando de sequestradores para, juntamente com amigos próximos e interessados no dinheiro que jorrava na Prefeitura de Santo André, perpetrar o sequestro e a morte do prefeito petista. Celso Daniel, segundo a versão difundida pelo Ministério Público, foi eliminado porque reagiu a supostos desvios de recursos amealhados por parceiros de uma jornada de arrecadação para financiamento de campanhas eleitorais.


Celso Daniel seria tão estúpido — segundo um contraponto à versão do Ministério Público — que, em pleno ano de disputa eleitoral à Presidência da República, quando coordenaria o plano de governo de Lula da Silva, interromperia a placidez diplomática com que sempre administrou os interesses do partido em Santo André e no Estado, e partiria para uma cisão irrevogável com beneficiários e industrializadores de caixinhas eleitorais. Teria sido morto porque, sempre no condicional, interromperia o fluxo de recursos de campanha.


O mínimo que se pode recomendar aos leitores do caso Celso Daniel é cuidado com as informações. O espetáculo circense é canhestro mas adquire a cada sessão novas camadas de credibilidade dos incautos. Uma leitura moderada para esterilização preventiva é o site Consultor Jurídico, revista criada em 1997 e especializada em levar para as páginas digitais o mundo do Direito e da Justiça.


A cobertura do julgamento do Consultor Jurídico em matéria postada em 18 de novembro é comedida e contradiz jornais, revistas e sites diversos num ponto decisivo para a compreensão da sentença proferida pelo juiz Antonio Augusto Galvão de França Hristov, da 1ª Vara de Itapecerica da Serra:


Nem os jurados nem o juiz entraram na questão de o crime ter tido ou não motivação política. Mas eles entenderam que o crime foi praticado por motivo torpe e com recursos que impossibilitaram a defesa da vítima. As duas qualificadoras permitiram ao juiz que presidiu o conselho de sentença dosar a pena entre 12 e 30 anos. O juiz concluiu que não houve agravantes ou atenuantes, mas que a vítima sofreu desnecessária privação de liberdade.


Os parágrafos seguintes da matéria de Consultor Jurídico descrevem a atuação do promotor:


 O promotor Francisco Cembranelli sustentou a tese de que Celso Daniel morreu porque decidiu impedir o enriquecimento pessoal, fruto de corrupção dos envolvidos em um escândalo de fraude e propina na Prefeitura de Santo André. De acordo com o raciocínio da acusação, o caso não foi um delito comum, mas um crime político. O prefeito fazia vistas grossas com os desvios de recursos dos cofres públicos. Celso Daniel mudou de atitude quando descobriu que os envolvidos passaram a se locupletar pessoalmente com os recursos arrecadados, que deveriam ser destinados ao Partido dos Trabalhadores.


A interpretação do Ministério Público a partir da atuação do Gaeco, passando pelos argumentos de Francisco Cembranelli, é muito apreciada entre homens públicos como exemplo de ingenuidade. O pressuposto de que haveria propina na Prefeitura administrada por Celso Daniel não combina com a teoria de que o desfecho de seu assassinato tenha sido reação do próprio prefeito aos desvios para bolsos pessoais de terceiros. Desde que política e eleições foram inventados pelos democratas, dinheiros arrecadados com a influência de gestão pública vazam para contas bancárias ou para propriedades imobiliárias e econômicas alheias às da agremiação política envolvida. A calibragem de repasses é compulsória.


A vereda pela qual o Ministério Público encaminhou a imbricação do assassinato de Celso Daniel e a suposta rede de financiamento eleitoral espúrio na Prefeitura de Santo André foi a forma encontrada para sufocar a versão mais plausível de crime comum. Um golpe de mestre que teve em João Francisco Daniel, primeiro-irmão de Celso Daniel, principal propagandista. Quem duvidaria de um lamentoso irmão, principalmente quando se escondeu o tempo todo o contexto dessa relação sanguínea: João Francisco (e também Bruno Daniel Filho) mantiveram distância quilométrica do irmão prefeito por conta de conflitos ideológicos. João Francisco é conservador de carteirinha e Bruno Daniel um extremista de corte cubano.


O ex-ministro José Dirceu, petista que também está no mundo digital com um blog disputadíssimo, manifestou-se criticamente contra o promotor Cembranelli. E fez uma revelação que a Imprensa simplesmente ignora: Bruno Daniel implorou a ele que não processasse João Francisco Daniel porque a acusação que vincula o crime a supostas propinas na Prefeitura de Santo André teve razões exclusivamente políticas e necessidades financeiras. João Francisco teria provocado a situação porque o induziram a montar a farsa para atingir o PT.


A versão contada por José Dirceu sobre a inconfidência de Bruno Daniel alinha-se com confidência de alta autoridade do governo de Celso Daniel um dia após o sepultamento do petista. João Francisco Daniel teria acabado de sair do prédio do Paço Municipal com as mãos vazias depois de exigir uma parte do saldo de suposta conta bancária de Celso Daniel num paraíso fiscal. João Francisco não teria se conformado com a resposta da autoridade municipal, que negou a existência dos depósitos. Na semana seguinte estourou a denúncia de corrupção no Paço Municipal.


José Dirceu desabafou as seguintes frases após o julgamento de Marcos Bispo:


 Não há nada nos autos do processo que autorize o promotor a fazer as deduções — ou alucinações — que fez ao ligar o partido ao assassinato covarde e bárbaro de Celso Daniel. Sem contar que o caso já foi objeto de dois inquéritos e duas investigações — os dois últimos a pedido da família — conduzidos pela polícia do governo do PSDB de São Paulo, todos concluindo que o ex-prefeito foi vítima de crime comum.


Três dias antes, ou seja, um dia após o primeiro julgamento do caso Celso Daniel, José Dirceu lembrou no espaço digital que João Francisco Daniel enfrentou a Justiça:


 Eu processei João Francisco, já que ele dizia que ouvira do hoje chefe de Gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho, a informação de que recursos oriundos de contribuições ilegais de empresas da cidade com contratos com a Prefeitura eram enviados ao PT e que foram entregues a mim. Ele fala de R$ 1,2 milhão. Gilberto nega isso. Depois de anos consegui levar Francisco, como se diz, às barras do tribunal. Ele retratou-se em juízo, retirou as acusações, inocentou-me. A sentença do juiz é pública, está à disposição da imprensa. Mas toda vez que o assunto é retomado, sou obrigado a protestar já que a mídia não deu nenhum destaque à retratação de Francisco, apesar do amplo destaque dado durante anos à calúnia contra mim.


Se as informações do site Consultor Jurídico basearam-se unicamente no desenrolar do julgamento do sequestrador Marcos Bispo, a edição de 24 de novembro de Veja pegou o atalho da ideologização. Alguns parágrafos são ilustrativos da linha panfletária da revista da Editora Abril:


 Foi uma vitória da Justiça e uma derrota para o PT. A condenação (…) por participação no assassinato do prefeito Celso Daniel foi a primeira decisão judicial a furar o cerco de impunidade em torno de um crime que estava fazia quase nove anos sem culpados. Santos foi sentenciado a 18 anos de prisão por ter atuado como motorista do bando que, em 2002, capturou o então prefeito de Santo André, torturou-o, crivou-o de balas e abandonou seu corpo em uma estrada na periferia de São Paulo. (…) Para todos que não compactuam com a impunidade, porém, a condenação de Santos pelo Tribunal do Júri foi um alento. Já para o PT, a sentença teve um efeito devastador — confirmou a suspeita de que o partido abriga um submundo sórdido e que esse submundo não se furta a usar de métodos torpes para atingir seus objetivos. Ao condenarem o bandido, os jurados acolheram na íntegra a narrativa apresentada pelo Ministério Público: a de que Celso Daniel foi assassinado porque se desentendeu com os participantes de um crime do qual ele fazia parte com a cumplicidade e a anuência do PT — o crime de corrupção com vistas a abastecer o caixa dois do partido.


A reportagem de Veja ocupa três páginas e está recheadíssima de incorreções porque, como tantas outras, a base de informações são bancos de dados de noticiários repassados em mão única durante vários anos pelos agentes do Gaeco, os promotores criminais escalados para contrapor-se às críticas do PT por conta de que naquele 2002 o quadro de criminalidade no Estado atingia picos alpinos. Foi a partir da repercussão do caso Celso Daniel que o governo paulista deflagrou revolução na área de Segurança Pública. Os índices de criminalidade caíram drasticamente.


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