Administração Pública

E ninguém fala sobre a origem do
nó logístico, o abuso imobiliário

DANIEL LIMA - 09/11/2011

Como era esperado, os jornais repercutem hoje a decisão tomada ontem pelo Clube de Prefeitos do Grande ABC na tentativa de adequar o caos no trânsito regional a um nível suportável de responsabilidade social. Especialistas foram ouvidos, lideranças empresariais também, gente ligada às transportadoras idem, mas nenhum parágrafo, nenhunzinho sequer, sobre o maior vilão de toda essa situação: o mercado imobiliário arredio, impetuoso, guloso e desmesurado que tem no presidente da Associação dos Construtores, Milton Bigucci, síntese de descaso social.

É claro que para os jornais o mercado imobiliário precisa, deve e sempre será poupado de qualquer ação crítica porque nestes tempos de vacas publicitárias cada vez mais magras e dependentes em excesso do setor público, é melhor não mexer no vespeiro dos construtores, bons de lobby, como se sabe.

As medidas do Clube dos Prefeitos já eram esperadas mas estão longe de se converterem em solução ou meia-solução. Restringir o tráfego de caminhões em três macroeixos viários, exatamente as principais artérias que ligam a Província do Grande ABC, é automatizar a exibição de um vídeo do cotidiano paulistano: os motoristas vão procurar rotas alternativas, secundárias, e infernizar a vida dos moradores de bairros residenciais, com impactos ambientais extremamente desconfortáveis.

Estuda-se também a eliminação de vagas de estacionamento nesses mesmos macroeixos e até, num gesto provavelmente ilegal, embora providencial, invadir a seletiva serpentina de asfalto por onde os trólebus trafegam há muitos anos.

Prefiro não sobrepor detalhes das medidas neste espaço, já que estão muito bem acomodados nos respectivos jornais que dão cobertura ao assunto. Só sei que se a situação já é problemática e enseja dores de cabeça, o que vem por aí é inimaginável. Tudo porque os municípios locais não se prepararam tecnicamente para enfrentar duas febres consumistas, a de motorização ensandecida (são mais de 1,2 milhão de veículos de passeio na Província) e de moradia retardatária, após décadas de restrições a financiamentos.

Mais que não se prepararem, administradores públicos que passaram e alguns dos atuais, nada fizeram, exceto atirarem-se docilmente nos lençóis de vantagens de lobbistas do mercado imobiliário. Somente há pouco tempo o prefeito de São Caetano, José Auricchio Júnior, e agora o prefeito Luiz Marinho, de São Bernardo, enquadraram os investimentos imobiliários numa bitola ajuizada. E provocaram chiadeira quando não deboche público de Milton Bigucci.

Por isso, repito e repito sempre que Milton Bigucci é o principal artífice da derrocada de mobilidade veicular da Província.

Verticalização endoidecida

Ainda recentemente, exteriorizando a versatilidade com que pretende transformar o mercado imobiliário em território à parte do bom senso e do equilíbrio social, Milton Bigucci defendeu a aprovação de edifícios residenciais e comerciais que poderiam chegar a 80 pavimentos. Isso mesmo, 80 andares.

A proposta só não é exclusivamente insensata porque o autor também é ignorante em urbanismo. Em defesa do absurdo, Milton Bigucci sugeriu alguns endereços do Primeiro Mundo que veem arranha-céus cada vez mais deslumbrantes para quem gosta de imagem. Esqueceu-se, é claro, de informar ao distinto público que os empreendedores imobiliários dessas megalópoles seguem legislações cada vez mais rigorosas em forma de contrapartidas. É o que chamamos de outorga onerosa, mecanismo que assegura compensações financeiras direcionadas a investimentos em serviços públicos que dão suporte aos impactos provocados pela densidade ocupacional.

Milton Bigucci tem uma aritmética toda particular quando fala em outorga onerosa, porque só enxerga prejuízos na contabilidade de sua empresa. É lógico que não menciona, nesses prejuízos, por exemplo, a fraude que o levou a arrematar na bacia das almas uma área pública que vai virar megaempreendimento imobiliário num dos pontos de estrangulamento do trânsito em São Bernardo, na esquina da Avenida Kennedy com a Avenida Senador Vergueiro.

Reforma estrutural

Tudo isso quer dizer que só vou acreditar que os dirigentes políticos da Província do Grande ABC estão mesmo decididos a minimizar para valer o gigantesco nó de mobilidade veicular regional se abandonarem medidas tópicas, ou pelo menos deixar de colocá-las no altar de solucionáticas (para lembrar o atacante Dario Maravilha) e, unidos numa ação regional que ficaria para a história, contassem com os melhores especialistas a fim de, em tempo recorde, tratarem de reorganizar o uso e a ocupação do solo de acordo com referenciais de Primeiro Mundo mesmo, não do insensato Milton Bigucci.

Para quem acha que a questão envolvendo o sistema viário deve ser reduzida à Segunda Divisão de Preocupação com Cidadania, sugiro uma leitura atenta de uma matéria do The Wall Street Journal, traduzida na edição de hoje do jornal Valor Econômico, da qual pinço alguns trechos:

 Cidades congestionadas estão se tornando tubos de ensaio para cientistas estudarem o impacto da poluição do trânsito sobre o cérebro humano. Quando as rodovias se estrangulam com o trânsito, pesquisadores suspeitam que o escapamento dos carros e caminhões — especialmente as pequenas partículas de carbono já relacionadas a doenças do coração e respiratórios, e ao câncer — podem também danificar as células cerebrais e as sinapses que são elementos-chave para o conhecimento e a memória. Novos estudos de saúde pública e experiências de laboratório sugerem que, em cada estágio da vida, a fumaça do trânsito tem um efeito mensurável na capacidade mental, inteligência e estabilidade emocional. “Mais e mais cientistas estão tentando descobrir se e por que a exposição à poluição do escapamento do carro pode danificar o cérebro humano”, diz o médico epidemiologista Jiu-Chiuan Chen, da Universidade do Sul da Califórnia, que está analisando os efeitos da poluição do trânsito sobre a saúde cerebral de 7.500 americanos. “As informações sobre efeitos nos humanos são muito recentes”. Até aqui, a evidência é basicamente circunstancial, mas preocupante. E ninguém tem certeza ainda das consequências para a biologia do cérebro ou comportamento. “Existe motivo real para preocupação”, diz a neuroquímica Annette Kirshner, do Instituto Nacional de Ciências da Saúde Ambiental da RTP, uma organização de pesquisa científica na Carolina do Norte: “Mas nós devemos proceder com cautela”.

 Estudos recentes mostram que respirar o nível de fumaça de uma rua por apenas 30 minutos pode intensificar a atividade elétrica em regiões do cérebro responsáveis pelo comportamento, personalidade e tomada de decisão, mudanças que são sugestivas de estresse. Respirar o ar normal da cidade com alto nível de poluição de trânsito por 90 dias pode mudar a maneira como os genes se ativam e desativam entre os mais velhos; também pode deixar uma marca molecular no genoma de um recém-nascido para o resta da vida, reportaram pesquisas feitas por pesquisadores das universidades Columbia e Harvard. (…). Cientistas acreditam que medidas simples para acelerar o trânsito são um fator de saúde pública. (…) Pesquisadores em Los Angeles, a cidade mais congestionada dos Estados Unidos, estão estudando ratos que cresceram no laboratório respirando ar de uma rodovia próxima. Eles descobriram que as partículas inaladas pelos ratos — cada partícula menor que um milésimo da largura de um cabelo humano — de alguma forma afetam o cérebro, causando inflamação e alterando a química entre os neurônios envolvidos na capacidade de aprendizado e na memória.

Promessa jornalística

Por essas e tantas outras, garanto aos leitores deste CapitalSocial que serei cada vez mais um operário na luta contra estripulias urbanísticas. Ou seja: os Milton Biguccis da vida não terão sossego porque eles representam a consagração de malfeitos e se apresentam à sociedade como benfeitores, quando, de fato, não passam de corruptores da qualidade de vida. Ou alguém é capaz de defender de crime contra o bom senso um dirigente classista que acintosamente desclassifica as ações de prefeitos que, finalmente, resolveram iniciar uma jornada de ocupação minimamente decente do solo urbano?

Leiam também:

Clube dos Prefeitos chega atrasado demais para aliviar caos no trânsito



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