A proliferação de candidatos às chefias de governo municipal extratifica a diversidade congênita dos regimes democráticos. Por mais que a polarização persista entre dois candidatos e estimule a conclusão de que a disputa é apenas aparentemente múltipla, o direito constitucional de competir lubrifica a engrenagem da multiplicidade.
A oportunidade que concorrentes de diversos matizes do espectro ideológico desfrutam para expor idéias e propostas parametriza aos eleitores o ritmo econômico e social que cada um poderá escolher.
Há, entretanto, como se sabe e a campanha eleitoral parcialmente encerrada em 3 de outubro comprova, um festival de besteiras que assola a política regional e nacional. Quando se contrapõe ao preço dessa algazarra o silêncio do autoritarismo de tempos idos, o melhor é se conformar. Ou melhorar o modelo.
Que realidade estaria acondicionada na embalagem especial do segundo turno, que atinge 35% do eleitorado residentes em 68 municípios brasileiros com mais de 200 mil eleitores, quatro dos quais no Grande ABC? A julgar não pelas portas escancaradas do noticiário, mas pelas frestas de entrelinhas e burburinhos pós-primeiro turno, tem-se na prorrogação eleitoral fantástica usina de inventividade e de arrecadação de recursos.
Longe de generalizar o açodamento com que minorias de votos se comportaram à abertura de urnas, a literatura política acrescenta ponto sobre ponto nos desdobramentos de aproximações de convencimento. Praticou-se e ainda se pratica espécie de luta entre gato e rato, com a diferença de que, nesse caso, tanto o felino quanto o canino são de fato, raposas esfomeadas.
O segundo turno está consolidando a cultura do levar vantagem que estigmatizou Gerson, nosso Canhotinha de Ouro. O roteiro consiste em algo semelhante a investir na loteria, com a vantagem de que as probabilidades de retorno do capital são infinitamente mais elevadas do que as convencionalmente previstas por matemáticos famosos.
O lance especial da engrenagem do jogo de interesses nos municípios onde o segundo turno é legalmente previsto está em dividir para faturar. Os favoritos desdenham a possibilidade de nova rodada de votos ao mesmo tempo em que os menos cotados rezam para que a porteira dos 50% mais um não seja aberta. Levar o jogo para um tempo extra significa a possibilidade de incorporar nacos do programa de governo, a ocupação parcial de secretarias e postos avançados na máquina pública e, principalmente, em casos não pouco usuais, de, digamos, recuperar os investimentos de risco do primeiro turno.
Em muitos casos, cargos no organograma público ficam para segundo plano. Propostas de governo, que se lixem. Retorno do capital investido é prioridade absoluta.
Como se nota, na prática o instinto supostamente agregador do segundo turno se transformou em grande enrascada eleitoral e administrativa. Em vez de lideranças partidárias anteciparem-se no primeiro turno para composições programáticas, definindo-se a conceituação e a operação de governo, transferem-se negociações para potencial rodada extra.
Trabalham os favoritos estrategicamente com a possibilidade de supressão do segundo turno, mas correm na zona de risco de que, levado para uma etapa suplementar, o pleito passa a contar com atores geralmente esquálidos em votos nominais, mas vigorosos na correlação de forças. Em disputas cuja diferença percentual entre os votos obtidos pelos finalistas não supera a margem de manobras que assegurem a bandeira da vitória, os candidatos menos votados mas cujas somas pretensamente podem influir na nova disputa acabam supervalorizados. Principalmente se os mapas eleitorais cristalizarem áreas geográficas ou temáticas de efetiva doutrinação.
Além de convidativo a estripulias éticas, como bem lembra o advogado Raimundo Salles, especialista em composições partidárias, o modelo abre fissuras de governabilidade. O calor da disputa chamusca neurônios de planejamento substituídos pelo pragmatismo, pelo simples fato de que, pior que governo adaptado às circunstâncias eleitorais é ser oposição.
Falta estudo detalhado sobre a efetiva influência no resultado final dos perdedores de primeiro turno que se tornam vencedores do segundo. Há casos e casos. E não faltam no mercado de votos minoritários quem procure vender gato por lebre. Sabe-se apenas que dificilmente quem consegue chegar com mais de 20 pontos percentuais na dianteira sofra, na sequência, qualquer percalço. Mas esses casos são raros. O comum é o que se vê: balcões de votos explícitos para reverter ou confirmar a matemática eleitoral.