Política

Anatomia eleitoral (I)

DANIEL LIMA - 04/11/2004

Como se explica a fratura exposta das eleições em Santo André que antagoniza os dois finalistas na apuração de votos de acordo com as características sociogeográficas?


Por que o triprefeito Newton Brandão, que governou a cidade durante 14 anos, amealhou maior votação relativa nos bairros centrais consolidados urbanisticamente e nos mais tradicionais do subdistrito de Utinga?


O que dizer sobre o predomínio do petista João Avamileno nas bordas do campo de Santo André?


Como justificar que, na medida em que a apuração se espalhava pelas urnas do centro do primeiro distrito em direção à periferia, e, da mesma forma, do centro do subdistrito de Utinga, igualmente em direção aos menos remediados e aos pobres, mais a cotação de João Avamileno aumentava?


Pois é disso que trataremos em alguns capítulos. Talvez três sejam suficientes. Quem sabe alguns eventuais estudiosos da variadíssima e muitas vezes conflitante ocupação demográfica de Santo André e do Grande ABC resolva se juntar a nós na prospecção de prováveis razões e, com isso, contribuam para o enriquecimento de análises que revelem uma anatomia eleitoral conectada com a realidade histórica?


Alguns eventuais mal-humorados vão dizer que os votos já foram apurados, que os resultados são de sobejo conhecidos, que agora é pensar no futuro e que o melhor mesmo é esquecer as urnas.
São, provavelmente, além de mal-humorados, despreparados para entender o passado, reconhecer o presente e interpretar o futuro senão com a precisão dos deuses, pelo menos longe do voluntarismo de especuladores.


Sei que os leitores podem se mostrar impacientes com a demora em apontar e sistematizar teoricamente as motivações sociais, culturais e econômicas encapsuladas nos números eleitorais em Santo André. Alguns poderão até indagar a razão de eu ter escolhido justamente Santo André para dissecar a gênese dos números das urnas de domingo. Com toda razão, aliás.


Aos primeiros, os impacientes com a demora, diria que o arrazoado que construirei precisa ser compreendido na plenitude de racionalidade, sem paixões exacerbadas. Portanto, se as cores partidárias forem deixadas de lado, tudo fica mais fácil. Ou menos difícil. Nada é mais desagradável, embora democraticamente imperdível, do que um bate-boca qualquer por causa de disputas eleitorais.


Quando se trata de preferência clubística, salvam-se todos os contendores porque nascemos, crescemos e morremos amando as cores que julgamos as mais importantes. Portanto, a fidelidade intrínseca do futebol é inabalável. Independentemente dos valores individuais que nos representam sob uniforme quase centenário, como são a maioria dos uniformes dos clubes brasileiros, o que prevalece mesmo é o louvor eterno ao clube. Ídolos de hoje podem ser vilões de apupos na temporada seguinte. Vejam Viola, que já vestiu a camisa de todos os grandes paulistas!


Na política partidária é diferente. Os partidos reúnem matizes ideológicos que se esboroam na medida em que vão rompendo etapas e acrescentam conquistas atrás de conquistas, ambições atrás de ambições. Os partidos, como se sabem, são os homens que os compõem. Os times de futebol, ao contrário, são os clubes que os concebem.


As agremiações políticas metamorfoseiam-se numa ciranda de oportunismo, de entreguismo, de compadrismo, de contra-senso e mesmo de sem-vergonhice. Portanto, diferentemente do futebol, por exemplo, onde se entregam os anéis das individualidades geralmente vendidas a preço de banana para a Europa, na política partidária tanto os jogadores, no caso os candidatos e os eleitores, quanto as agremiações a que estão vinculados, sofrem profundas mutações ao longo do tempo. São camisas que mudam de cores, disfarçados sob o mesmo distintivo.


Basta ver a aproximação mútua, embora envergonhada, de Paulo Maluf e lideranças petistas da Capital. Ou o antigo socialista Fernando Henrique Cardoso que se entregou às garras do capitalismo financeiro internacional durante oito tenebrosos anos, rasgando os escritos e solapando o próprio pensamento político.
Já, quanto a outra questão, de pinçar Santo André como laboratório sociológico, nada de privilégio deve ser entendido neste gesto.


Núcleo demográfico central do Grande ABC, por onde passa obrigatoriamente a cultura regional, e, mais que isso, onde os resultados de 31 de outubro foram mais marcantemente conflitivos, Santo André só poderia mesmo servir de base de apoio à incursão a que me proponho. Nada, entretanto, que nos impeça de avaliar também os demais municípios em desdobramento deste trabalho.
Amanhã escreveremos sobre o que chamo de conservadorismo patrimonialista para tentar explicar o que se passou com Santo André neste último domingo. Depois, virão outros temários, igualmente importante e amarrados mutuamente entre si.


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