Política

Muito além de Santo André (4)

DANIEL LIMA - 06/11/2008

Pretendia esticar por mais alguns capítulos o enredo da zebra de branco Aidan Ravin, próximo ocupante do Paço Municipal de Santo André, mas razões de saúde e contratempos corporativos por conta de roubalheiras que estão na esfera judicial me obrigam a encurtar a trajetória de informações e análises.


Nada, entretanto, que impeça sequência errática destes textos. Daí a razão de manter a numeração desta série, em vez de encerrá-la. Ou seja: este trabalho seguirá, embora sem a frequência cronológica prevista quando me lancei a mostrar que a vitória de Aidan Ravin nada tem de combustão espontânea — foi sim e sobretudo uma obra-prima de terrorismo eleitoral que não costuma aparecer nas páginas de jornais nem no noticiário de televisão, mas é regra na disputa por votos.


Antes de repassar algumas das táticas de guerra de guerrilhas dos oposicionistas em Santo André, explico as razões de o governo do Estado ter optado pelo apoio a Aidan Ravin de forma incisiva, enquanto outros aliados, Orlando Morando em São Bernardo e Chiquinho do Zaíra em Mauá, praticamente não alteraram no segundo turno as medidas do turno inicial. O desempate do jogo pelo comando do Clube dos Prefeitos passava obrigatoriamente por Santo André, porque São Bernardo e Mauá eram observados como derrotas iminentes de tucanos e aliados.


Santo André tem classe média do tamanho da de São Bernardo, conforme dados que conferi da Target Marketing. Também entre pobres e miseráveis há semelhanças de participação relativa. Mauá é diferente: a classe média é proporcionalmente menor e as classes populares relativamente maiores que as de Santo André e São Bernardo. Em Mauá o refrão ideológico antipetista não tem abrangência eleitoral consistente. Um candidato conservador não tem futuro naquele território. Por isso o adversário de Oswaldo Dias foi Chiquinho do Zaíra de incubadora eleitoral no bairro mais populoso e mais problemático da cidade.


A diferença entre a classe média de Santo André e a classe média de São Bernardo é cultural, não econômica.


Santo André industrializou-se primeiro que São Bernardo. Com isso, reuniu agrupamentos de profissionais liberais e pequenos industriais em maior escala do que São Bernardo.


São Bernardo tem camada mais densa de classe média resultante da mobilidade social dos tempos de explosão da indústria automotiva. Executivos e trabalhadores graduados de chão de fábrica, principalmente das montadoras de veículos, fizeram de São Bernardo moradia.


Em larga escala, a classe média de Santo André pensa conservadoramente. Pensar conservadoramente é detestar desembolso para pagamento de impostos municipais da moradia urbana e esquecer que a moradia litorânea ou de campo é muito mais onerosa. Pensar conservadoramente é considerar o IPTU reajustado um acinte contra o bolso do contribuinte e aceitar bovinamente o IPVA extorsivo. Pensar conservadoramente é imaginar todo empresário ponte de enriquecimento da sociedade. Pensar conservadoramente é fechar-se em copas, restringindo relacionamentos aos bem-nascidos, em torno dos quais erguem-se barricadas preconceituosas.


Em larga escala, a classe média de São Bernardo pensa menos conservadoramente. Pensar menos conservadoramente é não acreditar piamente que esquerdistas comem criancinhas, que trabalhadores engajados sejam perniciosos ao capitalismo, é desconfiar de correlação imediata entre empresário e solidariedade.


Quem não conhece e se guia apenas pelos dados estatísticos provavelmente vai dizer que os dois municípios reúnem os mesmos cromossomos. O DNA social e econômico é semelhante, mas o agregado cultural que se reflete em manifestações como o endereçamento de votos da classe média é bem diferente. Um empresário tem muito mais possibilidades eleitorais em Santo André do que em São Bernardo. Um sindicalista morreria por asfixiamento eleitoral em Santo André mas acaba de conquistar a Prefeitura de São Bernardo.


Não é à toa que Lula da Silva apanha feio da classe média em Santo André e equilibra o jogo em São Bernardo.


Lula da Silva é espécie de símbolo da porção da classe média tardia de São Bernardo.


Newton Brandão é espécie da classe média de passado ascendente em Santo André.


Celso Daniel, com todo o brilho individual e esfuziante poder de articulação política, apanhou muito da classe média de Santo André, da qual era egresso economicamente mas se converteu em desvio ideológico imperdoável para a própria família. A morte, apenas a morte, nas circunstâncias conhecidas, foi capaz de sensibilizar moradores de classe média renitentemente oposicionista.


Celso Daniel enfrentou a classe média de Santo André com diplomacia mas sem abrir mão da coragem manifestada, entre outras medidas, com a instalação de radares e no reajuste dos valores até então simbólicos de impostos municipais, especialmente o IPTU, chave de ignição de populismo dos antecessores.


Mesmo sem ser reconhecido como classe média típica da cidade, mas longe também da ferocidade com que ainda se pinta e borda o estereótipo do sindicalismo local, Luiz Marinho alcançou nestas eleições votação impressionante nos bairros de estrato econômico mais elevado, mas menos patrimonialista do que se tem em Santo André. Marinho demarca a transitoriedade de um País em transe desde que Lula da Silva virou presidente da República: simboliza uma nova classe emergente além do poder econômico tradicional, pela capacidade de articulação entre capital e trabalho. Algo para o que São Bernardo está muito mais preparada a assimilar entre os formadores de opinião porque tem classe média que se distingue da convencional.


Com uma classe média majoritariamente antipetista em Santo André, embora em menor escala e intensidade que a de São Caetano, e ainda mais que a de São Paulo, o caldo de cultura para metabolizar a candidatura de Aidan Ravin estava pronto.


O mesmo Aidan Ravin que já dera mostras de que sabia sensibilizar o eleitorado mais humilde, depois de concentrar na Vila Luzita o estoque de votos que o levou ao Legislativo Municipal e a dobrar o eleitorado na campanha a deputado estadual.


O médico Aidan Ravin em muito se assemelha a Newton Brandão. É afável, educado, destila confiança entre os mais humildes exatamente porque é médico, médico sempre de branco, mesmo em campanha eleitoral. Para a classe média conservadora, Aidan Ravin virou o messias antipetista. As pesquisas qualitativas sob as ordens de Campos Machado reforçaram essa convicção. O que viria a seguir na campanha de segundo turno não se convertia, portanto, em tiro no escuro. O jogo estava praticamente perdido, mas havia uma porta entreaberta de possibilidades que não conviria desdenhar.


Agora, apresento três variáveis concatenadas praticamente em paralelismo temporal durante o segundo turno das eleições em Santo André.


Primeiro: dezenas de aposentados, velhinhos educados, cordatos, espalhados por igual número de ônibus em horário de rush. Todos combinadamente com o mesmo discurso de crítica à saúde de Santo André, à falta de segurança de Santo André, ao desconforto com o PT de Santo André. Discursos indignados de velhinhos indignados não são incidente do cotidiano geralmente monótono que se esqueça e se mantenha fechado entre corredores dos coletivos. Espalham-se por lares e bares, por igrejas e escolas.


Segundo: falsos petistas, camisas vermelhas, em pontos estratégicos de escolas privadas e públicas de Santo André, e em outros locais públicos, pregavam desinteresse pelo candidato Vanderlei Siraque, apesar da “paixão pelo PT”. Críticas ao candidato do partido esbravejadas por petistas têm efeito mortal entre indecisos, fortalecem a rejeição dos convictos de votos já definidos e se multiplicam em ambientes familiares.


Terceiro: nas escolas e também nas igrejas, principalmente igrejas evangélicas, propagou-se a dilaceração da imagem do candidato petista, atribuindo-lhe perfil abjeto. Tornaram-no pedófilo, estuprador e assediador, uma tríplice coroa de enfermidades da mente que cristãos não costumam perdoar e muito menos deixar de difundir como obrigação exorcizadora.


Para completar, a greve dos bancários que perdurou durante vários dias no período do segundo turno também serviu de ponto de apoio ao martelamento antipetista. Não foi à toa que Orlando Morando cresceu na reta de chegada, que Chiquinho do Zaíra encurtou a diferença nos dias finais e que Marta Suplicy naufragou de vez na Capital.


Hão de dizer os mais experientes guerrilheiros da política que nenhum dos quesitos bélicos é novidade, como de fato não é, embora a mídia de almofadinhas que dominam as redações não tenha conhecimento de nada disso porque é forjada em ambientes refrigerados do berço familiar ao túmulo profissional.


O que pesou em favor de Aidan Ravin e do grupo comandado pelo deputado estadual Campos Machado, braço armado do governo do Estado na Operação Santo André, foi o salto alto dos petistas, que já se imaginavam no Paço Municipal depois dos 48,9% dos votos válidos no primeiro turno. E como condenar os petistas que afrouxaram o ritmo se essa era a percepção generalizada não apenas de Santo André mas de qualquer eleitor que respirava o ambiente eleitoral no Grande ABC?


A pesquisa do Ibope publicada na véspera do segundo turno pelo Diário do Grande ABC e que dava empate técnico entre os finalistas (a diferença chegou a 10 pontos) apontava que 69% da população acreditava que Vanderlei Siraque venceria a disputa. Como explicar essa contradição? Simples: a guerra de guerrilhas foi essencialmente nas entranhas sociais de classe média e da periferia, no varejo, silenciosa, enquanto no atacado permanecia a sensação de que o resultado do PT do primeiro turno homologaria a vitória no segundo turno. O PT propagou às claras os acordos eleitorais e os apoios de estrelas partidárias. O PTB preferiu os subterrâneos de votos.


Há acordos de bastidores que azeitaram no campo midiático o desmonte petista em Santo André. Alguns foram mais competentes do que outros na arte da dissimulação. O pacote de manobras para a derrubada de Vanderlei Siraque não se restringiu a formulações locais. Até o cargo de uma autoridade pública com base em Santo André foi colocado a prêmio. Surpreendentemente, preferiu silenciar-se após a queda.


Mesmo admitindo-se que em política o vale-tudo faz parte do jogo, porque o pau canta mesmo fora das páginas de jornais, inclusive porque para a maioria da mídia o que mais interessa mesmo é o jogo do faz-de-conta da imparcialidade, mesmo admitindo tudo isso, repito, não posso passar recibo de desconhecimento do ritual utilizado, sob pena de fraudar a história da maior zebra do segundo turno no Brasil.


Estes capítulos são o testemunho explicativo de uma vitória surpreendente motivada por razões nada metafísicas como pretenderam fazer crer os preguiçosos analíticos de plantão.


Não se vira uma eleição como se virou em Santo André por obra do acaso. E tampouco estaria apenas em foco de fragilidade estrutural do adversário a justificativa para o resultado.


Primeiro porque o mesmo grupo que orquestrou a campanha de Vanderlei Siraque no primeiro turno atuou no segundo turno. O salto alto não teria maiores consequências se o adversário não tivesse obtido um reforço que demorou para ser detectado e, quando o foi, a reação se tornou inócua.


Segundo porque foi esse mesmo núcleo que venceu as prévias petistas em Santo André, tendo como opositores especialistas na conquista de votos tanto de filiados partidários como do eleitorado em geral, em campanhas vitoriosas de Celso Daniel.


Conquistar em média por dia mais de seis mil votos e, com isso, virar um jogo tão próximo do encerramento no primeiro turno foi façanha da qual o próprio vencedor ainda não está inteiramente convencido de que não passe de sonho.


O problema é que o sonho pode virar pesadelo porque Aidan Ravin é um moço sem enraizamento partidário para sustentação administrativa e, como já se percebe no noticiário, começou a ser assediado e a sofrer o que chamaria de chantagens psicológicas. Até que ponto terá estofo para resistir a tanto assédio sem colocar em risco a governabilidade?


Espera-se que à estrutura partidária do PT que dirige Santo André há 12 anos não se sobreponha um arremedo multipartidário sob o jugo de mentores intelectuais e operacionais de ocasião.


Aidan Ravin corre sim o risco de ser tutelado por um condomínio de interesses disformes, até mesmo antagônicos, mas de fome pantagruélica de usufruir do poder.


Refém de situação que já dá sinais de estar fora de controle, Aidan Ravin precisará de consistência institucional para não se tornar mais que uma imensa zebra de branco.


O bom da democracia, apesar de todos os custos implícitos dos experimentos, é que os discursos são colocados à prova dos nove. As promessas de campanha deveriam constar de um site permanentemente monitorado, à esquerda e à direita do eleitorado.


O candidato petebista apadrinhado por uma ação de Campos Machado e aliados locais representa alternativa de comando político em Santo André que recoloca o PT mais próximo da realidade prática, depois de considerar-se invencível. Entretanto, e não custa alertar, deve despertar o senso crítico de quem acompanhou o processo eleitoral em Santo André e recolheu pacientemente as propostas de programa de governo.


Da mesma forma, é indispensável espírito colaborativo que não se confunda com adesismo.


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