Política

Dilma, aborto e um professor de
ética que subestima os leitores

DANIEL LIMA - 19/10/2010

O que se espera de um centroavante? Que faça gols. O que se espera de um sapateiro? Que conserte sapatos? O que se espera de um pedreiro? Que assente tijolos. O que se espera de um professor de ética? Se o professor de ética (e também doutor em Comunicação e diretor do Master em Jornalismo) for Carlos Alberto Di Franco, colunista do Estadão, é melhor não esperar muita coisa. Principalmente nestes tempos eleitorais, quando alia-se a grupo partidário e ideológico e joga fora a própria biografia. Uma grande decepção, confesso, porque já consumi dezenas de textos do professor Di Franco. Ele escreve com classe, com segurança, com habilidade. Pena que se deixe levar pela falta de ética. É um pedreiro que não sabe assentar tijolos, um centroavante escasso em gols, um sapateiro estupefato diante de uma Havaianas.


Espero que os leitores não se precipitem no julgamento dessa avaliação. Não faço juízo de valor sobre o tema central ao qual se dedicou o professor Di Franco, a polêmica da candidata petista no caso de aborto. Esse texto não tem coloração política, partidária nem religiosa. É pura e unicamente questão de coerência de um jornalista que se sentiu incomodado com a pregação de algo que para muitos não passa de moralismo barato, medieval. Não acho que seja isso. É um direito individual condenar ou aceitar a descriminalização do abordo. Já a reprodução dos fatos é uma questão de honestidade intelectual.


Quem falseia declarações de terceiros para sustentar teorias sob encomenda não poderia ficar impune se jornalismo fosse extensão dos critérios de avaliação, por exemplo, dos profissionais de medicina. Erros médicos costumam ser punidos. Maus advogados também caem nas garras de código apropriado. Jornalistas deliberadamente enganadores, entretanto, além de ficarem livres, leves e soltos, fortalecem posições em empresas de comunicação com as quais os vínculos vão muito além de critérios técnicos. Falta uma Ordem dos Jornalistas do Brasil para senão impedir manipulações, pelo menos desmascará-las no âmbito classista.


Vejam os trechos principais (e sem qualquer corte no conjunto de ideias) do professor Carlos Alberto Di Franco, em artigo publicado no Estadão de ontem, segunda-feira:




  • (…) Dilma, em sabatina no jornal Folha de S. Paulo e em entrevista à revista Marie Claire em 2007, defendeu a legalização do aborto. Reproduzo suas palavras: “Acho que tem de haver descriminalização do abordo. No Brasil é um absurdo que não haja”. Logo, não se trata de boato, invenção ou terrorismo fundamentalista. Dilma mudou seu discurso quando passou a vislumbrar os riscos eleitorais de sua opção. Ela deixou de falar de legalização e, ambiguamente, diz que se trata de problema de “saúde pública”. Esconde sua verdadeira posição e não diz uma única palavra sobre a principal vítima de aborto: a criança morta no ventre materno. O PT, após o recado das urnas e num exercício incrível de hipocrisia, estuda tirar o aborto de seu programa. O leitor não é tonto — escreveu o professor de ética.

Acompanhem as perguntas e as respostas de Dilma Rousseff à revista Marie Claire (em abril de 2009, não em 2007 como afirmou o professor) e confrontem-as com o texto do emérito professor de ética que desfila ideias, muitas das quais brilhantes, nas páginas do Estadão, veículo para o qual trabalhei durante muitos anos.




  • Pergunta – Uma das bandeiras da Marie Claire é defender a legalização do aborto. Fizemos uma pesquisa com leitoras e 60% delas se posicionaram favoravelmente, mesmo o aborto não sendo uma escolha fácil. O que a senhora pensa sobre isso?


  • Dilma Rousseff – Abortar não é fácil pra mulher alguma. Duvido que alguém se sinta confortável em fazer um aborto. Agora, isso não pode ser justificativa para que não haja a legalização. O abordo é uma questão de saúde pública. Há uma quantidade enorme de mulheres que morre porque tenta abortar em condições precárias. Se a gente tratar o assunto de forma séria e respeitosa, evitará toda sorte de preconceitos. Essa é uma questão grave que causa muitos mal-entendidos.


  •  Pergunta – Hoje, o que é preciso para legalizar o aborto no Brasil?


  • Dilma Rousseff – Existem várias divisões no país por causa dessa confusão, entre o que é foro íntimo e o que é política pública. O presidente é um homem religioso e, mesmo assim, se recusa a tratar o aborto como uma questão que não seja de saúde pública. Como saúde pública, achamos que tem de ser praticado em condições de legalidade.

Ora, ora, ora, as declarações de Dilma Rousseff à Marie Claire há mais de um ano são rigorosamente as mesmas que expressou ontem à noite em entrevista ao Jornal Nacional. E nada diferente do que dissera antes, durante a campanha eleitoral. E muito, muitíssimo diferente da transcrição parcial e manipuladora de um professor de ética que se utiliza de espaços nobres num dos jornalões brasileiros para proselitismo político temperado de preservação da vida.


Vou mais longe sobre a atuação de Carlos Alberto Di Franco. Retiro do mesmo artigo no Estadão de segunda-feira mais alguns trechos. Acompanhem o delírio do professor:




  • A legalização do aborto, estou certo, é o primeiro elo da imensa cadeia da cultura da morte. Após a implantação do abordo descendente (a eliminação do feto), virão inúmeras manifestações do abordo ascendente (supressão da vida do doente) — a eutanásia já está sendo incorporada ao sistema legal de alguns países — do idoso e, quem sabe, de todos os que constituem as classes passivas e indesejadas da sociedade. Acrescente-se ao drama do aborto, claro e indiscutível, os imensos danos psicológicos e afetivos que provoca nas mulheres.

Carlos Alberto Di Franco é jornalista e professor engajado. Nada que seja diferente de tantos outros profissionais. A atividade política é inerente ao jornalismo. Só não pode ser contaminada por vieses supostamente escamoteadores para ludibriar o distinto público. Por mais que carregue títulos, por mais que seja bem relacionado, Carlos Alberto Di Franco não pode acreditar que tem o monopólio do conhecimento e que as páginas do Estadão induzem os leitores a dobrar os joelhos críticos.


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