O título é provocativo sim, mas não é exagerado. Exceto nas situações em que ocorreram mortes, o noticiário das encrencas envolvendo torcidas organizadas é muito mais palatável do que o noticiário político nestes tempos de eleições. Já era esperado que o ambiente esquentasse, que manhas e mumunhas fossem fabricadas, que malfeitos fossem descobertos, porque ninguém é santo quando está em disputa um cargo de vereador, quanto mais de presidente da República. Mas, peralá: essa encrenca em que se meteu o candidato José Serra foi demais.
Atingido ou não atingido por um objeto qualquer na caminhada no Rio de Janeiro, o tucano extrapolou na dose midiática. Recorrer ao médico, passar por exames detalhados, alardear cuidados pós-impacto, quando, e isso é fácil de ver, a carequinha do presidenciável estava tão lustrosa quanto intacta, tenha a santa paciência. Com que tipo de marqueteiro Serra conversou para forjar o que seria um golpe de mestre na tentativa de reverter tendências do eleitorado?
A encenação de cuidados médicos a José Serra após a polêmica agressão de militantes petistas é apenas mais um capítulo diário das artimanhas de uma campanha eleitoral que ultrapassa todas as expectativas de marginalidade ética. Artimanhas visíveis. As dissimuladas são reservadas a especialistas em mensagens subliminares, invasivas na alma. Pobres leitores e telespectadores que acreditam na neutralidade ou na imparcialidade de determinadas mídias.
Querem mais um exemplo de que a situação está escuríssima? O Instituto Vox Populi anunciou no começo da semana que a distância entre a candidata petista Dilma Rousseff e o tucano José Serra, em votos válidos, aumentara para 12 pontos percentuais. A tropa de choque dos tucanos botou a boca no trombone. Nem o presidenciável José Serra ficou fora da execração pública. Acusaram o instituto de manipulador. Os jornais praticamente ignoraram o placar no dia seguinte. Comportamento mais que estranho. O Vox Populi sempre ocupou as páginas políticas com estudos.
O Vox Populi teria sucumbido à moralidade, e, portanto, deveria ser banido do noticiário. O Vox Populi caíra no buraco do descrédito. No dia seguinte apareceram os números do Ibope. Surpresa para os incrédulos: eram semelhantes aos do Vox Populi. Eram 11 os pontos percentuais de diferença. Constrangidamente, os números do Ibope tiveram de ser impressos e veiculados nas emissoras de TV com destaque. O Vox Populi estava reabilitado? Dependeria do resultado do Datafolha, que acaba de sair do forno. Doze pontos de diferença. O que esperar?
Coloque-se o leitor na condição de dirigente do Vox Populi. Quanto teria custado para a imagem do instituto de pesquisa a enxurrada de críticas de tucanos, desclassificando os dados?
CartaCapital, publicação de centro-esquerda muito mais próxima de jornalismo responsável do que o Estadão de extrema-direita, deverá deitar e rolar na próxima edição. Recorram à leitura da Veja, da extremista Veja, para verificar se constará o ataque contra o Vox Populi. Se os números de Ibope e Datafolha confirmassem os desejos da candidatura de José Serra, o Vox Populi estaria morto e enterrado.
A diferença entre a carnificina cometida nestes tempos eleitorais contra o jornalismo que todos os leitores esperam consumir e o noticiário esportivo digerido todos os dias do ano é que o nível de maturidade principalmente nos veículos impressos é muito maior entre os rapazes e as moças que perseguem os craques de futebol. Todos têm paixões clubísticas, todos torcem e sofrem com suas equipes, mas na maioria dos casos não são despudoramente mistificadores como os jornalistas políticos, muito mais próximos do raio de ação dos donos dos negócios que giram em torno do jornalismo.
A democracia da bola é muito mais pronunciada do que a democracia eleitoral. A democracia da bola é explicitamente pública, exibida nos gramados que quase não mentem ou que sofrem menos possibilidades de contaminação dos bastidores. A democracia eleitoral vive dos escaninhos, dos trambiques verbais, da semântica vitimizadora.
A democracia da bola não é levada a sério nas redações. A democracia eleitoral é o centro das atenções dos magnatas da informação.
O perigo da democracia da bola é que os negócios da bola podem também contaminar o ambiente das editorias de esporte.
Estava pensando em reproduzir neste espaço diferentes textos publicados ontem pelos principais jornais brasileiros (Estadão, Folha de S. Paulo e O Globo) sobre o caso da quebra de sigilo fiscal dos tucanos pelo jornalista Amauri Ribeiro Júnior. Preferi recuar e cuidar de outras questões porque mais uma vez o tratamento é semelhante a do médico que diante de um paciente moribundo diz que em breve estará correndo uma maratona, enquanto outro médico garante que não demorará muito para que o paciente pelo menos sobreviva numa cadeira de rodas e um terceiro médico, mais contundente, sugere que o acamado chame o padre.
Não é possível, convenhamos, que a verdade tenha tantas faces. E não tem mesmo a olhos mais desconfiados quando se leem os três jornais sobre o mesmo assunto. Em algum ponto as informações chegam a um paralelismo lógico, mas é o momento, a forma e a dimensão desse encontro de águas que faz a diferença de interpretação. O Jornal Nacional e os demais noticiosos televisivos seguem o mesmo ritual. Tudo de acordo com interesses recônditos.
Por isso, um fato com histórico definido ganha versões aparentemente conflitantes a partir de uma manchete cuidadosamente oblíqua, de uma submanchete matreira e de um lide (abertura do texto) que procura o atalho da seletividade. São técnicas desenvolvidas pelo maquiavelismo de quem acredita que é possível ludibriar o distinto público. E como ludibria!
Lamentavelmente não se veem profissionais de comunicação a adotar postura crítica contra essa Torre de Babel mais que interesseira, exceto nas páginas virtuais do site Observatório da Imprensa. Agora, bastam torcidas organizadas saírem a campo para patrocinar quebra-paus e o mundo cai.
Será que ainda não entenderam que esses jovens são extensão e efeitos de causas muito mais nobres e decisivas para o futuro do País? Esses meninos malvados dos estádios, que oferecem em contra-partida espetáculos extraordinários nas arquibancadas, são bem melhores que a média dos protagonistas das páginas políticas. Sabem por quê? Porque os efeitos perversos do fanatismo se esgotam na dispersão do final do domingo, enquanto a disputa eleitoral ensandecida não termina jamais. Pior: fortalece-se com a disseminação midiática, entranhando-se de forma deletéria no seio social como permanente curso de pós-graduação em malandragem.