Fascinado e enredado pelas possibilidades ilimitadas do mundo cibernético, com o qual ainda ensaia as preliminares de uma parceria que se pretende longa, o cidadão que entra no século XXI despreza, até com certa arrogância e asco, os sistemas de governo em operação, para não lembrar dos que a história acredita ter sepultado.
Que soberba pouco inteligente daqueles que integram a elite da raça! Fazem dinheiro, constroem conglomerados rentáveis, abrangentes e poderosos, fazem fortunas nos mercados financeiros e parecem não se dar conta de que toda essa abundância está ligada por laços atávicos e indissolúveis à questão da representatividade política.
O homem tem inequívoca necessidade de se ajeitar em tribos, feudos, estados ou nações, da mesma forma que não consegue prescindir de governos que, ao menos em tese, façam essas máquinas andar, ditem regras de convívio geral, ainda que para isso consumam expressivo botim das riquezas produzidas na esfera particular.
O arranjo parecia dar certo nas nações mais bem organizadas, era ignorado nas ditaduras e soberano, ou quase, nas monarquias ditas incontestáveis. À margem desses acertos, o povo a cada dia mais se rebela contra sistemas de governo que o ignoram, embora o utilizem como massa de manobra para consumir, quando pode, e apropriar-se daquilo que deseja e está indisponível pela formas convencionais de aquisição. Que modelo tem então mais possibilidades de se adequar ao mundo novo, a esse universo no qual a administração pública não atende mais aos interesses do homem dito moderno?
Para aumentar o poder de fogo de semelhante bomba, as drogas suprem, ou tentam suprir pela transgressão, aquilo que é objeto de cobiça mas só está disponível para grupos mais bem aquinhoados ou aos que se valem da força, da rebelião e do poder, o que cria um conflito que tem tudo para mudar a história, ao menos nos países ocidentais. É a guerra, completamente diferente dos enfrentamentos convencionais, despida do sentido espetaculoso dos dias atuais, quando nações se enfrentam sob os holofotes da mídia e por conta de claros interesses geoeconômicos.
Basicamente e conforme os manuais e tratados, os dois estilos principais de condução dos chamados negócios do Estado dividem-se em ditaduras e democracias. Tenham os rótulos que tiverem, como a História demonstra, apenas mudam detalhes nas embalagens, invertem-se as filigranas ideológicas deste ou daquele esquema de mando, mas o cidadão tem seu destino, de suas atividades produtivas e os de sua cidade ou região ligados a decisões tomadas nas altas esferas, nem sempre com qualquer conhecimento de causa sobre a realidade na qual se acha inserido o problema. Terceiros agem em nome da maioria e a partir disso acumulam-se as atitudes prepotentes e, o que é mais grave ainda, a apropriação escandalosa dos bens que deveriam pertencer ao Estado e retornar como serviços públicos ao contribuinte.
O divórcio entre os anseios naturais dos que convivem e dependem cada vez mais da tecnologia, entendendo que é o portal e a própria chave do admirável mundo novo que tanto se aguarda e da mesma forma custa a chegar, é a fonte de uma dicotomia pouco investigada. Cientistas políticos se furtam em tecer, ainda que pífias e simplórias, teorias mais aprofundadas sobre o assunto. Aliás, é norma geral fingir que algo não existe ou carece de importância para não incorrer no erro de perder tempo e supostos talentos com meras estátuas de sal. São fatos indiscutíveis na Grã-Bretanha ou na Suécia, monárquicas e desenvolvidas, na África do Sul, nos altiplanos andinos ou nas florestas geladas da Áustria e da Alemanha. Como os níveis de exigência teórica e de exercício democrático são mais apurados em algumas sociedades do que em outras, a convivência com a presença do Estado é mais tolerável em certos pontos do planeta, enquanto em outros se desenha, com todas as tintas e cambiantes, o Estado Leviatã com o qual Hobbes assustou o mundo político em meados de 1651.
Pronto a devorar seus próprios filhos, reduzindo-os à miséria e à indigência em nome de causas e propósitos discutíveis, o monstrengo do filósofo inglês tem antecedentes e precedentes dignos de nota. Nada permite supor que o olho do Grande Irmão, fruto mais da observação do que propriamente da imaginação literária de George Orwell, tenha se fechado para sempre. Continua atuante, apesar da queda do Muro de Berlim, do fim da História e de outros qualificativos que os cientistas políticos encontram para dourar a pílula da falta absoluta de concretude nas teorias que defendem. Os fundamentalistas, apenas para enfatizar grupos de convicções semelhantes, continuam unidos tendo como objetivo a conquista do mundo, sob o domínio de um ou mais irmãos, sem possibilidades de qualquer interferência dos destinos políticos e teológicos dos diretamente envolvidos.
Os seres pensantes em ação hoje em dia, não aqueles que só enxergam e veneram chips e bites como supremos sacerdotes do futuro, começam a dar sinais de desconforto com a crise inegável da chamada democracia representativa. Como se trata, sem dúvida, da forma menos dolorosa de transferência do poder do indivíduo para o Estado, esses soluços patológicos assustam e levam estudiosos a repensar a organização sociopolítica do mundo, da qual a que vem sendo chamada Terceira Via é apenas um esboço claudicante e repleto de utopias esgarçadas.
O futuro, a partir dessa inequívoca crise da democracia representativa, que no Brasil assim como em outros países da América Latina atinge contornos típicos da barbárie dos primeiros séculos da civilização ocidental, não está longe e nem mora distante do Grande ABC. Trata-se da região mais próspera da metade sul do continente e sem dúvida é termômetro preciso — no que isso é possível nos dias de hoje — para avaliar a intensidade e amplitude dos efeitos dessa morte anunciada da representação política.
O fenômeno da ausência quase total de voz no cenário nacional não é recente — que fique bem claro. Desde os tempos da figura nebulosa e embuçada de um tal João Ramalho, que veio dar com os costados na Borda da Mata, ninguém decifrou ainda por quê e como a história local é marcada mais pelas sombras do que pela evidência. Quando, a partir do início do século XX e da industrialização do País, a região parece ter encontrado sua vocação, não houve correspondência dessa ascensão em termos de representação política.
O Grande ABC viveu e vive em função de normas, preceitos e determinações emanadas das chamadas altas esferas, às quais nenhum filho da terra teve papel significativo, ontem como hoje. É possível argumentar que o Partido dos Trabalhadores rompeu esse silêncio e se fez ouvir, até com alguma estridência, durante fase importante da vida nacional, justamente aquela que marcou a transição entre os governos militares e o retorno à democracia. Isso de fato aconteceu, mas ainda está distante de concretizar as promessas de materialização da vontade popular nos grandes centros decisórios. A cada dia o partido mais e mais se assemelha aos congêneres, que se esgotam na falsa retórica do social enquanto se esmeram na manutenção de privilégios das elites, mesmo que à custa do empobrecimento geral da Nação.
Seria até alentador que semelhante quadro se registrasse aqui e ali, neste ou naquele ponto do território nacional. Qual o quê! A endemia se alastra por todo o canto, estende tentáculos nas mais diversas direções e coloca na vala comum populações historicamente excluídas de qualquer participação na vida política brasileira da mesma forma que subjuga praças tidas e havidas como oposicionistas e melhor preparadas para escolher seus dirigentes.
Até quando será possível manter esse estado de coisas é apenas a indagação mais frequente e simplória dessa complicada equação. Esse alheamento começa a dar sinais de que se trata de mera aparência, ou que os modelos contestatórios praticados até agora também estão sendo superados por fórmulas mais drásticas e, quem sabe, até ruinosas para a sobrevivência dos modelos de gestão pública e de suposta convivência social já testados pelo homem.
A indagação principal, sem resposta é bom adiantar desde logo, diz respeito à eficácia e durabilidade do modelo sociopolítico que vem sendo aceito a partir da 2ª Guerra e da queda do império soviético. É a partir daí que o reinado do autoritarismo e da autocracia fez renascer a utopia da liberdade democrática, com todas as dificuldades e tropeços para seu efetivo exercício. Está o mundo — ou boa parte dele — ainda em processo de gestação para oferecer aos seus habitantes os rios de leite e de mel de que fala a Bíblia. Seria mais fácil esposar essa confortável ideologia caso não fosse evidente o agravamento da miséria e da pobreza, em escandaloso contraponto com a busca desenfreada da opulência e da fortuna.
Difícil acreditar em teoria tão inconsistente em um mundo onde as guerras não se resumem a incontáveis conflitos no Oriente, em uma África negra abaixo de qualquer resquício de dignidade humana ou mesmo em uma China que pretende ditar regras, mas metralha seus filhos rebeldes em plena praça pública. Ou em uma América Latina espoliada e condenada a subdesenvolvimento estratégico, espécie de reserva ecológica para eventuais tempos de miséria e fome também nas nações tidas como desenvolvidas.
As grandes cidades, sem exceção, apontam em direção ainda pouco explorada pelos estudiosos das ciências sociais e políticas. Suas periferias, condenadas a condições de vida inadmissíveis, principalmente pelo contraste dos entornos e dos guetos milionários, talvez detenham a chave do enigma. Não será o camponês, o ribeirinho das imensidões amazônicas ou pantaneiras, divorciado e alheio ao que se passa no resto do planeta, que irá se rebelar contra uma ordem que desconhece desde tempos imemoriais. É o homem das grandes cidades, a juventude dividida na vida real entre a opulência e a miséria, a fome e o desperdício, o poder pela via da transgressão ou a submissão que consumiu a existência de seus pais e avós, sem que nada mudasse, a não ser para pior.
Basta ter olhos para ver e alguns poucos neurônios para entender que é por essa rebeldia geralmente criminosa e sem qualquer escrúpulo que algo poderá mudar. A panacéia é tão violenta que pode causar o óbito do paciente, mas também pode proporcionar não apenas algum conforto como uma nova perspectiva de vida. Nesse quadro, é importante não esquecer, as drogas alucinógenas têm papel fundamental e a tendência é que sua utilização se transfira dos excluídos e marginalizados para as parcelas bem postas na vida. Justamente as que podem pagar pelo consumo e comprar a impunidade diante de qualquer investida policial.
É caldo de cultura capaz de subverter e aniquilar qualquer ordem com mais vigor e produtividade do que centenas de legiões de combatentes e na qual a chamada tecnologia cibernética apenas servirá como meio de agilização das pelejas. Aliás, exemplos não faltam na história da humanidade, mas a China colonizada é o modelo perfeito dessa estratégia. O imperialismo usou e abusou do ópio para amansar não os incultos e inócuos plantadores de arroz, mas a elite dinástica e decadente que desapareceu acreditando ainda possuir algum poder enquanto pipava seus cachimbos entalhados com ouro e pedras preciosas e Mao empreendia a Grande Marcha como timoneiro dos miseráveis e ofendidos.
Pensar o século XXI em termos globais, nacionais ou locais é inadmissível sem que essas e outras variáveis desse imenso painel não sejam analisadas e interligadas. Por exemplo: ainda continuam sem respostas razoáveis indagações sobre a eficácia e sobrevivência da tecnoeconomia, hoje o bezerro de ouro das nações desenvolvidas e o grande desafio daquelas que esperam ser convidadas para essa festa. E as guerras, terão mesmo mudado seu perfil a partir do cinematográfico e espetacular conflito no Golfo ou continuarão por muito tempo com o perfil dos combates quase animalescos do Afeganistão e da Bósnia? A água passará a ser mesmo o bem mais precioso do planeta, como apregoam as pitonisas da hecatombe e do juízo final? E as doenças ampliarão seu caráter endêmico para se transformar em pandemias de disseminação e controle impossíveis? A fome continuará a ser presença permanente em milhões de lares pelo mundo afora, condenando gerações e gerações ao esgotamento senil antes do tempo, quando não à morte logo após o nascimento?
O elenco das grandes indagações para o século XXI vai por aí. Infelizmente, qualquer inventário entre lucros e perdas continua resultando em preocupantes números vermelhos. Nem mesmo a idéia de que também é possível contabilizar resultados positivos ao longo do tempo aquieta corações e mentes dos que tentam enxergar um pouco mais adiante e além do que o aqui e agora da vida cotidiana.
Esse sentido de urgência apenas foi acentuado pelo século que ora termina. A velocidade com certeza é uma das características marcantes desse período da história. Desde o avião às telecomunicações, incluindo-se aí as demais tecnologias decorrentes desses passos iniciais, até o reinado da cibernética recém-inaugurado e ainda pleno de enigmas e possíveis descobertas, tudo faz dos últimos 100 anos a era da velocidade. Assim, nada surpreendente que também nas importantes questões sociopolíticas não seja mais admissível cruzar os braços e esperar que a roda da história complete seus ciclos.
Enquanto decifrar e conhecer a informática transformou-se no cerne do conhecimento tecnológico do século XX, é fundamental que o ser humano repense modelos de poder político, visto ser claro e insofismável que a democracia representativa, como concebida na maioria dos países, não mais atende aos interesses gerais. Longe de significar qualquer retorno a práticas também já esgotadas e inegavelmente piores, como a autocracia, o que está em jogo é a necessidade de serem encontrados novos modelos para que a massa tenha verdadeira participação nas decisões emanadas das cúpulas diretivas.
É uma questão de cidadania e educação política dos cidadãos, sem dúvida. Mas o facilitário do diagnóstico não resolve a questão e tampouco a aprofunda. Antes, cria uma espécie de círculo vicioso extremamente conveniente para os que chegam lá através do voto e de partidos políticos nada representativos, como no caso brasileiro. Nada mais do que isso: a representação é pífia porque os eleitores não sabem votar. E assim eles continuam enquanto o mando estiver nas mãos dos que sabem que o fim dos privilégios, das sinecuras e das vantagens indevidas implica no aprimoramento ou na explosão das cidades. Então, mudar para quê?
O Grande ABC é exemplar desse estado de coisas. Jamais teve voz política digna de nota, embora engorde os cofres da União e dos Estados com parcela substancial do esforço produtivo da Nação. Impôs-se e cresceu ao deus-dará, enfrentando toda sorte de dificuldades, quando muito recebendo migalhas em termos de obras e serviços públicos. O resultado aí está: uma soma de problemas estruturais e sociais cujo nó ninguém consegue desatar, até porque a divisão política em sete municípios mais complica do que ajuda a resolver questões de abrangência mais ampla.
Não bastassem equívocos desastrados dessa natureza, que terminam por subverter a ordem essencial ao processo democrático tradicional e representam risco permanente para o futuro da atividade econômica, as instituições que poderiam colaborar para atenuar esses desvios estão sendo contaminadas escandalosamente pela geléia geral que toma conta do País. A impunidade generalizada induz ao delito, aos acertos escandalosos entre autoridades e indivíduos e corporações que deveriam ser banidas do mundo dos negócios. A crônica dos escândalos e da dilapidação dos recursos públicos não tem mais limites e termina desaguando na falência dos serviços básicos que o Estado deve às pessoas, até como imposição constitucional.
O mais sagrado totem das democracias, as eleições livres e soberanas, transformou-se em espécie de concurso pela posse do bezerro de ouro, da chave da caverna de Ali Babá e vale tudo para cooptar o eleitor a acreditar nos bons propósitos deste ou daquele. Gente sem qualquer antecedente de serviços públicos ou a anos-luz de atividades comunitárias desinteressadas e produtivas arvora-se em candidata a qualquer cargo eletivo que esteja disponível. Uma espécie de roda da fortuna onde o grande prêmio é o mandato, mesmo que seja o de vereador em qualquer lugarejo que não produz nem um prego ou um latão de leite. A União — leia-se contribuintes — desembolsa anualmente determinada importância a fundo perdido para manter essas sinecuras, embora a rotulagem oficial indique se tratar de verba para as necessidades comunitárias.
A democracia representativa, nos termos hoje exercida, está em crise e só não enxerga quem não quer. É impossível que esse estado de coisas possa avançar pelo século XXI sem que algo aconteça para que as coisas ganhem dimensões mais aceitáveis. E embora seus reflexos sejam sentidos com maior intensidade nos municípios — afinal, o ser humano não mora na União e nem no Estado, mas na cidade — o quadro é o mesmo nas demais esferas.
Centrar as expectativas do novo século apenas nas conquistas econômicas e tecnológicas pode ser um dos grandes equívocos do pensamento político atual. São áreas de grande importância, mas pouco significarão em um mundo onde a falta de atendimento às necessidades básicas das pessoas fará dos vizinhos inimigos mortais e do proprietário de um par de calças o objeto de desejo da comunidade em torno. Nem mesmo a cibernética ou assemelhados impedem que a imagem remeta o pensamento para a Idade da Pedra e épocas semelhantes. Para finalizar a tentativa de compreensão desses fenômenos, ainda à espera de análises e estudos mais profundos, Thomas Hobbes é adequado ao momento atual quando lembra contemporâneos e adventícios que o homem será o lobo do homem, aconteça essa revolução na oportunidade em que foi concebida, em 1651, ou nos dias de hoje.
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27/07/2001 Aparelho cultural está desatualizado