Entrevista Especial

Comércio de rua precisa
se espelhar nos camelôs

DANIEL LIMA - 05/09/1998

Uma boa notícia para quem tem comércio de rua: por mais que os grandes negócios disputem o mercado, por mais que as megarredes enlacem os consumidores e por mais que os shoppings seduzam o público, sempre haverá espaço para quem tem loja de rua. Entretanto, há ressalva que convém ser dita sem subterfúgio: num olhar prospectivo para os próximos 10 anos, a situação do comércio de rua se assemelhará aos camelôs de hoje; ou seja, precisam oferecer aquilo que o consumidor que anda a pé quer e pode comprar. A previsão é de Nelson Barrizzelli, um dos maiores especialistas em varejo no Brasil, professor da FEA (Faculdade de Economia e Administração) e da USP (Universidade de São Paulo) e supervisor de pesquisas da Fundação Instituto de Administração da mesma USP.


Nelson Barrizzelli é favorável à abertura do comércio aos domingos e defende medidas protecionistas aos pequenos empresários sem que essas posições sejam conflitantes. Em defesa da abertura aos domingos ele afirma que gera empregos. Em defesa dos pequenos, cita a legislação da Itália, da França e de Portugal, que restringe a concentração de megaempreendimentos no setor varejista.


O consultor faz críticas ao pequeno varejista por não saber gerenciar seu negócio. “Ele precisa aprender a precificar os produtos que vende. Deve entender que, tendo em vista seu tamanho, terá mais sucesso se operar em nichos de mercado onde os grandes têm dificuldade para entrar” — alertou.


Barrizzelli não faz parte do grupo de entusiastas que observam nas compras eletrônicas, por meio da Internet, do Disque 0800, da televisão e também de catálogos, sinais de que o varejo tradicional caminharia para o fim. “O comércio eletrônico jamais substituirá os aspectos lúdicos do ato de comprar” — garante o especialista.


Qual vai ser o futuro do comércio de rua, coalhado de pequenas organizações, diante do crescimento constante das receitas dos shoppings e também de redes de supermercados e hipermercados com leque cada vez maior de artigos (vide eletrônicos e informática dividindo gôndolas com frutas e verduras)? O Grande ABC e o Brasil como um todo vivem essa realidade de competição desigual. Que conselho você daria aos pequenos para sobreviver?


Nelson Barrizzelli – O comércio de rua continuará ativo sempre. As mudanças fundamentais em relação ao passado se referem principalmente ao sortimento oferecido. As lojas localizadas em corredores comerciais tenderão a oferecer produtos de compra por impulso que podem ser levados na hora pelo cliente. Além disso atenderão, de forma preponderante, às classes C e D. Durante algum tempo as lojas de móveis e de eletroeletrônicos serão tipicamente de distritos comerciais, como o centro das principais cidades do ABCD. Mas com o passar do tempo se transformarão em lojas-depósito e devem se mudar para regiões mais afastadas, onde o custo de operar é muito mais baixo. Se alguém quiser saber como será o comércio de rua dentro de 10 anos, deve olhar para o que os camelôs vendem. Eles têm a necessária sensibilidade para oferecer aquilo que o consumidor que anda a pé quer e pode comprar.


Por que o Brasil insiste em ignorar a construção de salvaguardas para os pequenos negócios no confronto com os grandes? Você não acha que permitir grandes empreendimentos sem qualquer observação quanto ao equilíbrio dos pequenos é política canibalesca? Na Europa e nos Estados Unidos não é bem diferente?


Barrizzelli – O comércio brasileiro nunca teve qualquer tipo de proteção. No início dos anos 70, quando por aqui chegaram o Carrefour, o Makro e a C&A, houve movimento entre os grandes varejistas e atacadistas para barrar a entrada dessas empresas. Mas nada de positivo foi feito. Como se pode perceber, sempre que alguém é colocado em xeque, reage independente de seu porte. Durante 20 anos a inflação crônica e a desordem econômica impediram a entrada de outros varejistas internacionais e o problema da concentração entre poucas empresas ficou esquecido. Além disso, não tivemos a ameaça de nenhum dos grandes category killers que dominam os mercados americano e europeu. Nesse ambiente sobreviveram grandes, médios e pequenos de tal forma que essa discussão só voltou à tona com a provável invasão das empresas comerciais estrangeiras.


No entanto, mais do que a concorrência, a pequena empresa varejista é refém da falta de legislação que lhe ofereça condições mínimas de sobrevivência e da mentalidade retrógrada de vários varejistas. A legislação protecionista está presente na Itália, na França e em Portugal, principalmente. Na Itália já existe há mais de 30 anos e é nesse país que ocorre a menor concentração varejista. Em contrapartida, na Inglaterra e na Alemanha, onde não existe proteção, as cinco maiores empresas de varejo representam, respectivamente, 70% e 60% das vendas do setor.


Nos Estados Unidos também não há nenhuma proteção específica, mas o Small Business Administration, agência do governo que cuida de empresas de pequeno porte, informa que aproximadamente 16 milhões de americanos têm seu próprio negócio. Eles representam quase 1/6 da força de trabalho norte-americana. Cerca de nove milhões de pequenas empresas são de propriedade de mulheres. Apesar de tudo isso, nos últimos oito anos 50% de todas as pequenas empresas daquele país deixaram de existir.


Que propostas você faria para os administradores públicos no sentido de preservar a competitividade dos pequenos?


Barrizzelli – No caso do Brasil o pequeno varejista precisa aprender a gerenciar seu negócio, administrando o crédito, o capital de giro, os estoques e o caixa. Ele precisa aprender a precificar os produtos que vende. Deve entender que, tendo em vista seu tamanho, terá mais sucesso se operar em nichos de mercado onde os grandes têm dificuldade para entrar. Esses problemas de legislação nenhuma resolve. Mas ele precisa também de crédito fácil e barato para reposicionar sua loja. Ninguém consegue crescer pagando juros de até 100% ao ano, com financiamento a curto prazo. A solução passa, portanto, pelo apoio que agências especializadas, como o Sebrae, podem oferecer. Agora, se essas agências funcionam ou não é assunto para outra entrevista.


O que será do médio e mesmo do grande varejista do Brasil diante da descoberta do nosso mercado por grupos estrangeiros? Teremos no varejo a mesma desnacionalização da indústria e do que também se encaminha no setor bancário?


Barrizzelli – Ao que tudo indica, sim. A realidade é que, tendo operado em um mercado fechado, imune à concorrência internacional e tirando o seu lucro de atividades não-operacionais, os empresários brasileiros não se prepararam para competir com o resto do mundo. É preciso reconhecer que o caótico sistema tributário nacional e os custos de operar neste País acabam inviabilizando várias empresas. Mas mesmo nesse ambiente temos varejistas que caminham bem, como por exemplo as Casas Bahia e o Grupo Pão de Açúcar. A chegada dos estrangeiros, entretanto, é irreversível e vai fazer muito estrago na estrutura varejista genuinamente nacional.


Que futuro estaria reservado para a Cooperhodia, uma empresa tipicamente regional, com 10 unidades no Grande ABC e uma no Vale do Paraíba? É possível resistir à globalização do varejo, em que grandes grupos internacionais ocupam cada vez mais espaços, por meio da regionalização?


Barrizzelli – Na minha opinião, são as empresas médias que terão mais dificuldades no futuro. Isso porque não têm o volume das grandes, mas têm custos muito parecidos. Portanto, as empresas médias ou se juntam para, por meio de fusões e aquisições, se tornar grandes, ou diminuem de tamanho e passam a operar em nichos de mercado.


O Grande ABC está discutindo a abertura do comércio aos domingos. Há posições antagônicas. Grandes empreendedores querem a abertura, pequenos dizem que vão ser prejudicados pois é no domingo que têm boas receitas, exatamente porque os grandes estão fechados. Como vê a situação?


Barrizzelli – Como prestador de serviços, o varejista deve estar disposto a servir seus clientes no horário mais conveniente para eles. Foi dessa forma que surgiram as lojas 24 horas, que atendem a um segmento de mercado que quer comprar a qualquer hora. Nesse contexto, estar aberto 365 dias por ano, pelo menos no horário comercial, é obrigação de todos os varejistas. A abertura aos domingos sofreu grande oposição dos sindicatos até perceberem o óbvio: abrir todos os dias gera empregos. Agora são os pequenos varejistas que se opõem à abertura indiscriminada aos domingos. Mas o argumento de que vendem mais se os grandes permanecem fechados é inconsistente, mesmo porque as grandes lojas não podem se subordinar ao interesse das pequenas. Mais uma vez a sobrevivência dos pequenos está na compreensão de que devem gerenciar os negócios com competência, encontrando nichos de mercado que garantam essa sobrevivência.


Há estudos que indicam duas vertentes apenas para o varejo de eletroeletrônico no médio prazo: grandes redes nacionais e companhias regionais de pequeno porte, com faturamento anual na faixa de R$ 120 milhões. As companhias de médio porte desapareceriam. É isso que ocorrerá?


Barrizzelli – O problema das empresas médias de eletroeletrônicos é idêntico ao das empresas desse porte em todos os ramos. Os eletroeletrônicos tendem a se transformar em commodities e, como tal, extremamente sensíveis a preço. Por essa razão, quem vende esses produtos vai procurar se localizar em áreas de custo muito baixo, para compensar as baixas margens de vendas.


Uma pequena rede de quatro lojas de Chicago, a Sunset, está utilizando o sistema drive-thru para fidelizar a clientela, que não precisa de outra coisa senão deixar uma lista de compras e pegar o produto depois, se desejar, ou leva na hora as mercadorias sem se preocupar com embalagem e colocação das compras no carro. Tipos como esses de marketing podem ser transpostos para o Brasil pelos pequenos empreendedores na disputa pelo mercado?


Barrizzelli – O exemplo se ajusta muito bem aos hábitos de compra dos americanos. Eles compram diariamente e têm pouco tempo para isso. Portanto, as empresas que atendem essas características têm mais possibilidades de sucesso. Mas as ideias que dão certo no Exterior devem ser testadas por aqui. Essa, por exemplo, pode dar certo com certos tipos de clientes que têm estilos de vida parecidos com os do americano médio. O varejista deve ter mente aberta para buscar sempre diferenciais que o tirem do lugar comum. Os supermercadistas têm sido muito criativos nesse sentido. Os Supermercados Sé, de São Paulo, tem programa de ginástica para a terceira idade, enquanto o Supermercado Planaltão de Brasília oferece o café da manhã em suas lojas. São exemplos de criatividade que podem levar à fidelização dos clientes.


Há tendência no setor de supermercados de que no futuro se trabalharão com 35 mil itens em média, contra os nove mil que prevalecem no Brasil. Essa possibilidade de as gôndolas terem de tudo um pouco não seria novo agravante a resistências dos mercados de bairro?


Barrizzelli – 35 mil itens é número muito pequeno para uma grande loja. O Wal-Mart nos Estados Unidos, por exemplo, trabalha com até 150 mil itens. As lojas pequenas de bairros, por aqui, trabalham com até 10 mil itens. O sortimento depende do público que se quer atender. As lojas de conveniência, por exemplo, têm número limitado de itens (não mais de mil) e, no entanto, são o formato de varejo que mais cresce. Expandiram 16% no ano passado, quando as lojas tradicionais ficaram praticamente estagnadas. O sucesso ou fracasso não depende do número de itens à venda, mas do sortimento adequado ao público alvo da loja.


O varejo do futuro seria a consagração do sistema de comunicações, com o aumento das compras sem necessidade de sair de casa? Até que ponto as compras eletrônicas por meio da Internet, Disque 0800, televisão e catálogos estremecerão as estruturas convencionais de vendas?


Barrizzelli – Os formatos de compras sem sair de casa têm feito sucesso em vários países há muitos anos. A Sears, que durante anos foi símbolo do varejo, começou com vendas por catálogo no final do século passado. A grande novidade hoje é a Internet, que permite o uso de recursos audiovisuais interessantes. Mas o futuro do comércio eletrônico está sendo superestimado. Nos Estados Unidos, onde existe o maior contingente de usuários da Internet, as melhores estimativas apontam para vendas, via canal eletrônico, de pouco mais de US$ 3 bilhões. A cifra parece grande, mas é ridícula diante das vendas do comércio tradicional, que ultrapassam US$ 1 trilhão.


O comércio eletrônico continuará existindo como existem outros formatos de varejo sem loja. Provavelmente aqui, pela falta de cultura informática, demorará um pouco mais para ser implantado. Mas o comércio eletrônico jamais substituirá os aspectos lúdicos do ato de comprar. É muito mais agradável passear por um shopping, onde há algo para comprar, do que se sentar na frente da televisão ou computador para escolher os produtos que lhe interessam. O comércio eletrônico e outros formatos de varejo sem loja serão utilizados quando a compra não envolver prazer. Isso, no entanto, sem afetar a estrutura tradicional de varejo.


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