Nosso Século XXI (1ª Ed.)

Institucionalidade
depende de todos

MAURICIO SOARES - 08/07/2001

A perplexidade e o desencanto dos países em desenvolvimento são um dos fenômenos mais angustiantes de nossa era. Frustam-se as esperanças e os esforços. Aprofunda-se o fosso entre os mais ricos e os mais pobres. Por que tudo isso acontece? Pode-se dizer que os sistemas econômicos, a relação entre países ricos e pobres, a voracidade do capital volátil, a globalização, a ditadura do comércio internacional, a dívida externa dos países em desenvolvimento etc, tudo está sendo questionado. A massa crítica forma-se em todos os recantos, desde os países subdesenvolvidos até os centros de riqueza. As reuniões do G-7 e G-8, recentemente ocorridas, mal puderam concluir seus trabalhos. Há revolta generalizada contra a forma como se trata a humanidade nesse limiar de século.

Todos clamam por mais ética nas relações entre os povos. Ninguém suporta mais a exclusão social nos níveis em que acontece. Pergunta-se: pode haver desenvolvimento sem princípios? É possível fazer justiça social num mundo em que o chamado mercado passa a ser referência básica para tudo, em detrimento do ser humano? O desenvolvimento econômico, ligado a esse mercado selvagem, pode produzir desenvolvimento social?

Nosso tempo clama por ética, clama pelo desenvolvimento sustentado em favor do ser humano. Falta uma ética mundial ao mercado. Uma ética de responsabilidade. A tese do suíço Hans Kung, conhecido por suas polêmicas com o Vaticano, afirma: “Sem moral, sem normas éticas comumente aceitas, sem padrões globais (nada a ver com a Rede Globo), as nações correm o risco de, através de acúmulo de problemas durante decênios, caminhar para uma crise que pode levar ao colapso nacional, isto é, à desmontagem social e à catástrofe política”. Os exemplos provindos de alguns países da África e Ásia podem ilustrar muito bem tais situações.

Libelos contra mercado 

Dois autores franceses, Christophe Dejours e Viviane Forrester, escreveram libelos contra as violências cometidas pelo mercado contra os direitos humanos e do cidadão. O primeiro, especialista na área do trabalho, verruma a violência contra o ser humano cometida nos processos de enxugamento e reestruturação das empresas, conhecidas como downsizing, no seu livro A Banalização da Injustiça Social. A segunda, no seu livro-denúncia O Horror Econômico, trata da trituração das sociedades promovida pela onda chamada neoliberal, em cujo favor milita o Estado por meio das políticas, especialmente a econômica.

De fato. Para cumprir os objetivos da escola econômica hoje em vigor, o ser humano junto com suas necessidades e as da família é jogado para fora como se lixo fosse. As expressões combater a esclerose, a ancilose, fazer faxina, dão bem a medida do que realmente ocorre — o descaso para com o sofrimento, as aflições de cada um em particular e da sociedade como um todo.

O diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho, o chileno Juan Somavia, mexeu com os brios da ortodoxia ao falar aos participantes da X Unctad, em Bangkok, Tailândia, em fevereiro do ano passado, encontro preparatório à conferência sobre Financiamento ao Desenvolvimento, no próximo ano, no México. “Já conhecemos bastante os fundamentos do mercado” — disse; “é hora de nos ocuparmos também dos fundamentos da pessoa humana. Isso significa que temos de prestar atenção às preocupações e aos temores cotidianos das pessoas e de suas famílias”.

“A população — acentuou Somávia — assiste desconcertada, em todo o mundo, as organizações internacionais e os governos perderem a capacidade de impedir ou mitigar as consequências dos traumas que sacodem a sociedade, as crises financeiras repentinas e graves ou fechamento de fábricas do dia para a noite. Há um abismo cada vez mais profundo entre as aspirações e a realidade”.

Compromissos éticos 

Que compromisso ético podemos vislumbrar nos chamados choques econômicos, provocados pelos ataques especulativos do capital volátil que anulam ou provocam retrocesso nas políticas sociais dos países contra a pobreza, espalhando desespero sobre as populações mais pobres e sobre os pequenos e médios empreendedores? Nenhum. Todos os esforços são vão. O livre fluxo do mercado faz parte do credo.

Cerca de US$ 1 trilhão gira o mundo todo o dia, movimentados com espantosa agilidade, alimentados por rumores, em busca do maior rendimento possível em curtíssimo prazo. Esse dinheiro vem do simples cidadão, de empresas, dos fundos de pensão, de bancos privados e tem ainda o dinheiro, devidamente lavado, oriundo das máfias, da corrupção e da droga.

O cenário é trágico e dolorido: o país alvo, feito boi de piranha, já vem extenuado. Já fez a tal lição de casa, privatizou tudo. As sanguinolentas piranhas atacam com classificação de risco, dão uma nota baixa para o país. Agudiza-se a crise. Um funcionário qualquer do FMI faz uma visita ao país, dá declarações nem sempre coerentes; representantes da área econômica do país vítima visitam o funcionário, em seu escritório em Washington, mais notícias, a moeda desmorona, os governantes se desesperam.

Piranhas sagradas 

Então, vem a cena final: a humilhação do país, a angústia da população, a contaminação de países vizinhos, a sensação de traição e de estar sendo roubado na cara dura e a submissão: mais aperto, mais cortes nos orçamentos, redução de proventos, metas de controle fiscal. Enquanto tudo isso acontece, as piranhas sagradas são saciadas sob o olhar complacente dos tais organismos internacionais de Bretton Woods (FMI, Bird, Et caterva). Esses mesmos organismos que exigem toda uma regulamentação e estruturação das contas dos governos e dos países não impedem e não tomam qualquer ação contra as piranhas sagradas.

Um livro escrito em 1995 a partir de um grupo de pesquisadores sobre a dívida externa da Virgínia, sob o título Dança à Beira do Abismo, mostra como esse desatino foi se plasmando e consolidando, configurando interessante cenário geopolítico de dependência em favor de alguns interesses internacionais. Há aspectos tão graves em nossa dívida que a Constituição de 1998 deixou autorizada a criação de um mecanismo para ser estudado. E é pesado demais o tributo pago anualmente pelos países em desenvolvimento e enormes as repercussões negativas sobre suas economias e seus povos.

“A alma do capitalismo é a dívida, a dependência que gera” — frisou o teólogo americano não-católico Carl Oglesby no final dos anos 60, tempos de mobilização contra a guerra do Vietnã. E, uma vez firmada a dívida, é preciso precaver-se também contra o exército do país credor. Oglesby lembra, a propósito, orientações emblemáticas a esse respeito, feitas pelo presidente liberal Woodrow Wilson, em 1907. Ele entendia que as concessões obtidas por financistas devem ser salvaguardadas por ministros de Estado, mesmo que a soberania de nações relutantes seja ultrajada no processo. Oglesby conclui: “Queremos a paz, é certo. Todas as nações querem a paz. Mas nós queremos uma certa espécie de paz, a qual tem muito pouco a ver com deixar vizinhos a sós, com democracia ou progresso, parece. Falemos sem rodeios: para nós, a paz existiria quando o mundo estiver garantido, finalmente, para os homens de negócio americanos, a fim de que realizem seus negócios em qualquer parte, nos melhores termos possíveis, em ambientes orientados pela classe média nativa, de preferência, porém, se preciso for, por aqueles oligárquicos e repressivos, pelos velhos diplomados estrangeiros de Fort Bragg, ou por nossos próprios fuzileiros, se o pânico acertar num lugar vital”.

Bem. Atualmente os métodos são menos explícitos, mas igualmente eficazes. E sob a batuta de um belicista atrasado como George W. Bush, toda cautela é pouca.

Liderando a dívida externa

No final de 1998, os países em desenvolvimento deviam US$ 2,53 trilhões, o Brasil à frente com US$ 232 bilhões. A questão da dívida externa é a grande pedra no meio do caminho de países em desenvolvimento. A lista dos 10 maiores devedores é liderada pelo Brasil, com aproximadamente US$ 360 bilhões de dívida externa, à qual deve se somar assombrosa dívida interna, de crescimento vertiginoso, em função do aumento exagerado das taxas de juros. A situação é de arrepiar. O Brasil encontra-se empenhado numa dança louca, à beira do abismo da bancarrota e da degradação como nação.

Vale a pena parar para pensar. Quais são mesmo nossos interesses hoje? Temos em linhas gerais o esboço do que seria um projeto nacional ou são os de fora que o fazem por nós? A questão do desenvolvimento evidencia tudo isso. Quem empreende no Brasil? E quem trava? Fizemos uma bela Constituição em 1988, que oferece alguns bons instrumentos para o presente e o futuro. Falta-nos dizer, parece, se queremos ou para quê queremos esses instrumentos. Em outras palavras: retomar as rédeas, auscultar a população que, apostando no restabelecimento da democracia, está frustrada, seja pela violência cada vez mais descontrolada, seja pelo desemprego, pela corrupção desenfreada, seja pela desapropriação indébita de ativos nacionais, via privatizações obscuras, impostas de cima para baixo.

O PNDU (Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento) alinhou sete pecados cometidos na questão das privatizações: 1) Limitar-se a elevar ao máximo as receitas, sem se preocupar muito em criar um clima competitivo; 2) Substituir monopólios públicos por monopólios privados; 3) Vender mediante procedimentos discricionários e não transparentes; 4) Utilizar as receitas obtidas para financiar déficits orçamentários e para amortizar a dívida nacional; 5) Atulhar os mercados financeiros com empréstimos públicos; 6) Fazer promessas aos trabalhadores sem procurar redirecioná-los para novas indústrias; 7) Recorrer a ordens autoritárias, em vez de criar consensos.

História eloquente 

Quero ilustrar essa questão do descaso para com o sentimento da população com uma estória sumária e eloquente: “Aquele era um dia muito especial. O país tinha, enfim, conseguido eleger o homem de todos os sonhos. Era festa de posse. Estado de graça. Depois veio o trabalho, a dura tarefa de corresponder às expectativas; a dificuldade de separar as verdades dos correligionários e do staff das verdades verdadeiras. Vamos bem. Veja as pesquisas, señor presidente. Ninguém para lhe falar a verdade das ruas. Ninguém para lhe dizer que o povo estava magoado com a frustração gradual de suas expectativas. Ninguém para lhe lembrar: És mortal! Finalmente, a perda de sustentação e a fatal derrota”.

O relato, misto de ficção e realidade, está no início do livro Adeus, Senhor Presidente, do economista chileno Carlos Matus, amigo e ministro do presidente Salvador Allende, a quem o livro homenageia com uma amarga reflexão e construtiva contribuição. Trata a estória da esperança e do risco de frustração, da voz rouca das ruas de que falava o saudoso deputado Ulisses Guimarães. De fato, quantas vezes já se não viu essa história acontecer a homens públicos, de formação democrática, mas que decepcionaram o povo após passarem pela administração pública.

Quem compreende esses sons, quem interpreta essa voz rouca que teima em gritar e protestar?

A violência que toma conta das cidades de forma tão avassaladora indica que o tecido social está profundamente comprometido. Tão grave quanto isso é ver a resposta do Estado, tão pífia, tão desatenta às vítimas. A prevenção e a repressão são absolutamente desproporcionais. A sociedade reage lenta e inadequadamente, preferindo recolher-se atrás de grades cada vez mais altas, em vez de brigar, organizar-se, contribuir. A violência é efeito de causas mais graves e estruturais. O País precisa de um projeto audacioso para concretizar alguns pontos essenciais à nossa vida enquanto povo, enquanto Nação.

Desenvolvimento em xeque 

É, portanto, o momento de nos indagarmos, que direção é a nossa? Que desenvolvimento buscamos? Que apostas temos para os males que fizeram explodir a violência urbana? O que temos para propor aos adolescentes e jovens sem horizontes, sem educação decente, sem comida, sem teto, sem emprego, sem lazer? Os traficantes e as quadrilhas têm propostas para eles.

Estruturar as políticas econômicas em harmonia com as políticas sociais é o que recomendam todos os organismos da ONU e as principais instituições mundiais da área social, começando pelo Conselho Mundial das Igrejas, que reúne quase 300 denominações sérias. O econômico existe em função do social, não o contrário, como sempre é feito. A solução dos problemas sociais não se dará com campanhas por mais generosas que sejam. É preciso romper com a mania de governar o Brasil como se tivesse apenas um quarto da população que realmente tem, como denuncia Frei Beto num texto sobre Crise de Modernidade e Espiritualidade.

Acreditamos que um governo nacional ou local existe, em primeiro lugar, para os 50 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza (ganham menos de US$ 1,08 por dia) e para outros milhões que ganham um pouco mais. Temos que juntar e otimizar o que de bom construirmos e distribuir os frutos: a estabilidade da moeda, a Constituição de 1988 que abriu caminho à participação popular, as ONGs sérias e prestadoras de serviços ao pobre, a instauração e controle das contas públicas de que faz parte a recente Lei de Responsabilidade Fiscal, o recente Estatuto da Cidade, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a participação forte do Brasil nos fóruns internacionais (vide questão dos remédios contra a Aids e o Mercosul), a participação dos trabalhadores e empresários em instituições e conselhos em todos os níveis, os emergentes programas sociais (Bolsa-Escola, Primeiro Emprego, Renda Mínima) e tantos outros, oriundos dos mais diferentes níveis de governo, a Defesa do Consumidor, entre outros. Temos muita coisa para aplaudir e aperfeiçoar.

1) Em março de 2002, dar-se-á no México uma conferência internacional que tratará do tema Financiamento ao Desenvolvimento e Financiamento à Erradicação da Pobreza. A principal proposta apresentada por instituições católicas da Europa, representadas pela belga Cides (Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e Solidariedade) e pelo Centro para a Pesquisa Econômica e Política dos EUA é a imposição da chamada Taxa Tobin de 1%, a ser aplicada internacionalmente sobre as aplicações financeiras de curto prazo. A idéia é do economista americano James Tobin, apresentada em 1972 e agora retomada. A proposta provocou contrapropostas e muita polêmica.

2) Na última reunião do G-8 na Itália, no atribulado 21 de julho de 2001, diante das massivas manifestações contra a globalização ocorridas no mundo todo, mais particularmente em Gênova, sede do encontro, dois fatos se destacaram: o grupo do G-8 pelo menos declarou que a globalização deve atender especialmente às ansiedades dos países pobres e, como corolário muito tímido, anunciou o cancelamento de US$ 53 bilhões, relativos à dívida de 23 países mais pobres, de um estoque de US$ 74 bilhões. Pouco? Sem dúvida. Mas, também foi dito que outros países podem ser beneficiados, mediante algumas condições. Anteriormente, outros US$ 15 bilhões já haviam sido cancelados nas reuniões do G-7, em Okinawa, Japão.

3) A questão de normas éticas para as multinacionais está sendo objeto de uma extensa rodada de negociações junto à OIT. Pretende-se a constituição de conjunto de normas éticas para esses grandes conglomerados que, salvo exceções honrosas, têm práticas predatórias e envolvem-se em processos escusos de negociação com governos locais.

4) Em 8 de setembro do ano passado, em assembléia geral, a ONU divulgou a chamada Declaração do Milênio, com ênfase na redução da pobreza no mundo. A década 1997-2006 foi declarada pela ONU Década Internacional da Erradicação da Pobreza.

5) A Folha de São Paulo de 26/08/2001 (caderno A página 12) divulgou documento denominado Dissenso de Washington, no qual se destacam 10 propostas a serem adotadas pelos governos locais e uma outra pelos países ricos. A proposta dirigida aos países ricos defende que sejam reduzidas as barreiras protecionistas postas em prática pelos países desenvolvidos. Porém, nada fala sobre a dívida externa. O documento reconhece: “É quando mais ganham os que possuem ativos reais e financeiros, ao mesmo tempo em que são os pobres os primeiros a perder os postos de trabalho quando ocorre uma recessão”. O documento trata ainda, dentre outros temas, da construção de rendas suficientes para as famílias, escola para os pobres, prega uma nova reforma agrária e recomenda maior tributação para os ricos e gastar mais com os outros.

Boas intenções 

É certo que tudo isso é um amontoado de boas intenções que podem ficar no papel. Mas é relevante que dos Estados Unidos surjam documentos com claro sentido distributivo e social.

O processo de desenvolvimento, notadamente na área social, é construído em conjunto, um grande esforço de aprendizagem, de afirmação, de tentativa e erro. Desde a década de 70, essa concepção de ações, difundida até pelo Banco Mundial e FMI, tem sido a direção do trabalho de educação para o desenvolvimento realizado pelas equipes da ONU para a agricultura e alimentação (FAO). Há nisso muita influência de Paulo Freire. Outro brasileiro que deixou marcas na instituição foi o compatriota Josué de Castro, autor de Geopolítica da Fome e de outras obras fortes sobre pobreza e que morreu no exílio.

A idéia está presente, entre outros textos, na Declaração das Nações Unidas pelo Milênio, na qual, no item relativo aos Direitos Humanos, democracia e boa governança, os chefes de Estado comprometem-se, entre outros aspectos, em trabalhar coletivamente por processos políticos mais inclusivos, possibilitando a genuína participação de todos os cidadãos em nossos países. Como escrevi alhures, no livro A Emoção de Governar, editado no ano passado, acho que o nosso tempo não nos permite tanto, como antes, fazer escolhas. O caminho parece ser o de articular o econômico, o social e o ambiental. A articulação de interesses, doravante, haverá de presidir as decisões, os pactos e os consensos. Nossa aprendizagem será eficaz, juntando-se a teoria ao concreto de cada situação, aliando o conhecimento ao fazer de todo dia, através de uma prática coletiva de inclusão social e de cidadania.

Busca de consenso 

A busca de consensos é a pedra de toque da modernidade democrática. Não exclui o debate, às vezes até mesmo apaixonado, das idéias e concepções. Mas, depois disso, deve comumente surgir o consenso honesto, verdadeiro, expressão e criação da participação de todos. Os adversários não se tornam inimigos, mas apenas a outra parte, o outro componente do cenário, que, com certeza, poderão enriquecer o conjunto. Este tema da busca do consenso ganhou grande prestígio no âmbito da ONU.

O governante sério, assim como boa parte das instituições, precisa claramente da configuração de pontos de consenso se quiser executar plataforma eleitoral ou projetos com aceitação por parte do povo. Deve-se, entretanto, evitar as versões e pressões de agrupamentos que tentam monopolizar os controles dos canais de conformação das vontades. Um bom instrumento de aferição da vontade social é usar, com frequência, variados instrumentos, não se restringindo a um só.

Nossa região conhece bem essa temática. Conhecemos o desenvolvimento econômico e sabemos bem o resultado quando caminhou solitariamente. A multidão de miseráveis que nos cabe agora incluir atesta que nem sempre o desenvolvimento econômico resolve o problema de todos. Acumulamos aqui alguns privilégios que poucos tiveram. No passado, tivemos a construção da Represa Billings, da Via Anchieta. Depois, a indústria automotiva e toda cadeia de produção. A proximidade do grande pólo consumidor que é a Grande São Paulo, dos mais modernos meios de comunicação (rodovias, porto, aeroportos, telefonia, fibra ótica etc). Nossa infra-estrutura, somada à presença da mão-de-obra qualificada e à presença de instituições e universidades, permite-nos sonhar com a atração de investimentos, principalmente de alta tecnologia.

Integração regional 

A constituição de organismos regionais (Consórcio de Prefeitos, Câmara Regional, Fórum da Cidadania e Agência de Desenvolvimento Econômico) permitiu à região a sinergia e a crescente integração de todos os agentes econômicos e sociais, indispensáveis aos saltos em direção à modernidade e à excelência.

A região é a única do País que definiu seu rumo mediante planejamento estratégico regional, construído coletivamente, em três anos de intensos debates, incluindo todos os segmentos locais mais o governo do Estado. Podemos dizer tranquilamente que temos uma Agenda Regional 21, materializada num conjunto de 50 acordos com o governo do Estado. Isso é inédito no País e talvez raro no mundo. O planejamento estratégico é composto por sete eixos: 1) Educação e Tecnologia; 2) Sustentabilidade das áreas do manancial; 3) Acessibilidade e infra-estrutura; 4) Diversificação e fortalecimento das cadeias produtivas; 5) Ambiente urbano de qualidade; 6) Identidade regional e estruturas institucionais, e, 7) Inclusão social – eixo este sob minha coordenação.

O espaço não me permite alongar sobre o conteúdo de cada um dos eixos, mas posso garantir que alguém que queira seriamente tratar da região e do seu futuro, não pode deixar de levar em conta o que, em conjunto, ficou definido. Quero, entretanto, avançar um pouco mais na análise do eixo 7, que é tema desse artigo e que entra fundo nas questões sociais.

Inclusão gigantesca 

As prefeituras, o governo do Estado, os empresários, os trabalhadores e a sociedade civil como um todo têm tarefas assoberbantes a cumprir no que diz respeito à inclusão: crianças, analfabetos, adolescentes e jovens carentes, deficientes, mulheres, idosos, moradores de rua, desemprego, violência urbana, saúde, são faces de um mesmo e grande problema. Nosso desenvolvimento econômico gerou muita riqueza e gestou muita miséria. Na tarefa de fazer inclusão social, todos os agentes têm feito muito não somente na área meramente assistencial, mas sobretudo na promoção humana. Seguimos o conceito do velho ditado chinês que prega ser melhor ensinar alguém a pescar do que lhe dar o peixe.

Prefeituras, empresários, trabalhadores e sociedade civil, juntamente com o Estado, têm promovido movimentos de grande envergadura como o Mova (Movimento de Alfabetização de Adultos); o Movimento Criança Prioridade 1, destinado ao atendimento de crianças e adolescentes no qual se abrigam projetos como Andrezinho Cidadão, Juventude Cidadã e outros; os cursos de qualificação e requalificação destinados principalmente aos mais jovens, mas que também cuidam de requalificar desempregados; atendimento às mulheres vítimas de discriminação e violência; intensos programas voltados aos portadores de necessidades especiais, acolhimento e recuperação do morador de rua, e projetos especiais voltados à Terceira Idade. Seria longo entrar no detalhe de cada um desses trabalhos, que contêm, além de grande emoção, quantidade enorme de resultados positivos.

Importância social

Imagine o mundo sem uma Cruz Vermelha. Seria uma calamidade. Tem mais de 300 mil funcionários e mais de 100 milhões de voluntários. Nasceu da generosidade e do espírito de serviço de um comerciante suíço, Henry Dunant, que se comoveu durante uma viagem pela Itália, na região de Mântua, quando estava em curso o fim da famosa batalha de Zolferino, que produziu cerca de 40 mil mortos e feridos. Ali mesmo, junto com a população local, organizou o atendimento possível. No retorno à Suíça, passou a batalhar para constituir uma entidade para atuar nesse tipo de serviço e outros. A Cruz Vermelha ganhou quatro prêmios Nobel da Paz, um para o fundador, e obteve, via diplomacia internacional, uma convenção internacional que reconhecia o soldado ferido em condição especial. O mundo tem sorte de ter numerosas organizações de voluntários, como os Médicos Sem Fronteiras (Prêmio Nobel de 1999), a Anistia Internacional (Prêmio Nobel de 1979) e, no Brasil, a Pastoral da Criança (candidata ao Prêmio Nobel de 2001).

Como se sabe, a ONU declarou 2001 como o Ano Internacional do Voluntário e também o Ano Internacional de Diálogo entre as Civilizações. No Brasil, nossa primeira-dama Ruth Cardoso, presidente da Comunidade Solidária, passou a difundir de forma mais profissional a difusão de idéias, organizando centros de voluntariado em algumas Capitais brasileiras.

A administração de São Bernardo comprou a idéia. Fizemos a Lei do Voluntário Municipal, abrimos inscrições às quais acorreram mais de 1,5 mil munícipes, organizamos encontros e encaminhamos os voluntários para as várias áreas de serviço público ou da rede de entidades sociais. Lá, eles estão se realizando e prestando serviços de grande valia, especialmente aos mais pobres. Agora, estamos começando a organizar um Centro Municipal de Voluntário.

Um curso especial e modelar está sendo oferecido aos que frequentam o segundo ano de nossa Faculdade Aberta da Terceira Idade. Os alunos já estão organizados e prestando serviços em entidades da cidade. Outros municípios estão igualmente organizando serviço voluntário.

A responsabilidade social das empresas está cada vez mais presente na região. Estudo do Ipea com 1.315 empresas do Sudeste mostra que prestam mais serviços do que se pensa. Do total, 67% apoiam ações sociais para a comunidade. Apenas 16% das empresas informaram não prestar qualquer atenção ao social, nem mesmo para seus empregados. As empresas de Minas Gerais parecem destacar-se na solidariedade, com 81% declarando ter realizado ações sociais para a comunidade, contra 67% em São Paulo e 59% no Rio.

Índice confortável 

Com base na experiência de minha cidade, posso dizer que, se a pesquisa do Ipea pudesse ser desagregada ou mesmo produzida aqui, teríamos, certamente, um índice confortável. De fato, temos recebido demonstrações incontáveis de preocupações sociais e feito parcerias muito proveitosas com empresas de todo porte e procedência. É certo que ainda podemos fazer mais. Incito a todos os empresários (aqueles que têm Imposto de Renda a pagar) que usem a possibilidade de deduzir 1% e entregá-lo ao Conselho Municipal da Criança e do Adolescente de sua cidade. Esse percentual é dedutível do imposto a pagar.

O fortalecimento das instituições regionais passa pela maior integração de todos e sobretudo por uma participação menos passiva e mais engajada e propositiva. Não pode haver desenvolvimento social sem ética. O fruto do desenvolvimento econômico sem princípios acumula as riquezas nas mãos de poucos. Sem uma ética internacional, aprofunda-se o abismo entre o norte e o sul do Planeta. Causas como o capital volátil e as dívidas externas impagáveis devem ser removidas. O desenvolvimento social é obra de construção coletiva da qual nenhuma pessoa ou segmento está dispensado. As parcerias e o voluntariado são ferramentas indispensáveis.

Os caminhos, como ficou dito, devem ser construídos coletivamente, numa experiência que exige persistência e sensibilidade. Termino com a graça e o sentimento do poeta espanhol Antonio Machado, cujos versos são clássicos nos debates sobre desenvolvimento e trabalho social.

“Caminante, son tus hellas,

El camino, y nada más;

Caminante, no hay camino,

Al andar se hace camino

Y al volver la vista atrás

Se ve la senda que nunca

se há de volver a pisar

Caminante no hay camino,

Sino estellas en la mar”.



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