Nosso Século XXI (1ª Ed.)

A arte pode ajudar
a superar o atraso

MARTA DE BETANIA JULIANO - 09/07/2001

O nosso século XXI está desenhado com os problemas, a situação, as tristezas e alegrias que lhe couberam por herança. São mazelas por corrigir e esperanças antigas, antiguidades como os sonhos de um mundo melhor, o medo de que o mundo se acabe, as visões de um mundo ideal. O novo século nada tem de novo. Continua-se!

Apesar disso, o número XXI ganhou do povo e da mídia uma espécie de aura com ares de recomeço e — afinal de contas! — vive-se no XXI o início do Terceiro Milênio, da Era de Aquarius, quando os males serão aplacados e predominarão esforços regeneradores. Há, pois, compreensível expectativa por profundas transformações, de alcance e magnitude ainda desconhecidos. Em todo o mundo e em todos os setores espera-se por progresso, melhorias, desenvolvimento, justiça e qualidade de vida.

E isso vai acontecer, é inexorável, ensina a História, com maior ou menor rapidez, numa decorrência das iniciativas e na razão direta das forças empenhadas em cada lugar da Terra na viabilização desse futuro. E aqui? Com que mudanças podem, afinal, contar as populações das sete cidades do Grande ABC? É hora de encarar o nosso século XXI.

Chegando à região  

Trazidas pelos novos tempos, pelos avanços científicos e tecnológicos e pela chamada globalização da economia, essas transformações alcançarão rapidamente nossa região. Aqui reside importante parcela dos interesses da economia mundial e não seria crível que ficássemos à margem de todo esse processo. Na decorrência, para abrigá-las e fazer frente aos novos desafios, o Grande ABC deverá estar adequadamente aparelhado. Precisará equacionar seus problemas e encaminhar as soluções adequadas no menor tempo possível.

Posta essa premissa, uma questão se impõe: como será possível à região, em pouco tempo, vencer o atraso e conseguir fazer a transição, conquistando as melhores qualidades dos países desenvolvidos e o bem-estar de seus cidadãos?

A resposta não é simples. Complicam-na o acirramento das desigualdades, o desemprego, as drogas, a violência, o fracasso do sistema educacional, a degradação do meio ambiente, a inédita crise do setor de energia elétrica. Esses entraves perfazem nosso cotidiano e também de todo o País. Constituem uma realidade inaceitável, posta aí à frente de quem quer que pretenda olhar.

Reverter esse quadro complexo é a tarefa preparatória para o novo tempo, e muito trabalho com esse objetivo já vem sendo realizado em nossas cidades. É inegável que temos administrações programaticamente orientadas para o social atuando rotineiramente nesse sentido, o que implica a implementação de um conjunto de ações visando a integração social. 

Distância a percorrer

Mesmo assim, quaisquer que sejam hoje as direções para as quais se dirija o olhar, relativamente a pensar o futuro almejado e os percursos para sua consecução, percebe-se como é enorme a distância entre o que se vê acontecer no tempo presente e aquilo que se possa conceber como o nosso século XXI.

De fato, parece impossível uma sociedade em que todos tenham reais oportunidades para a construção do lugar em que vão morar ou para obtenção do indispensável alimento. Adicionalmente, ainda, é forçoso compreender que, se o homem precisa de um teto, de comida e de bebida, precisa também de reconhecimento social. Necessita de uma ocupação. Necessita de participação política, educação e atenção médica.

Para além da justiça e da inclusão social, existe um grupo fenomenal de questões sem solução que foram deixadas para os nossos dias, herança gerada nas angústias do século XX. Formam um complicador de peso e fôlego porque é enorme o leque de grupos temáticos que enfeixam e o elenco de variáveis temáticas de cada grupo. Há muito para se saber, responder, equacionar, vencer. 

Pensar e repensar  

As antigas respostas para as eternas perguntas vão ter que ser atualizadas mais de uma vez. Urge pensar e repensar o futuro, e novamente repensar o mundo todo, repensar a história do Grande ABC, os acertos e enganos, as causas e as consequências, diagnosticar e projetar a situação existente, planejar o processo de solução de problemas, a detecção de suas causas, determinar fontes e disponibilizar recursos, implementar as ações necessárias, democratizar a informação. 

Trata-se de construir aqui, nesta extensa região de feição eminentemente metropolitana, uma sociedade capaz de evoluir dando preferência às tecnologias compatíveis com o meio ambiente, respeitando a natureza, pré-requisito da sobrevivência. Humanidade, natureza e tecnologia: o surgimento de um novo mundo tensionando os atuais desafios.

Problemática desafiadora 

Nessa perspectiva, então, será necessário estabelecer quais, efetivamente, os passos que deverão ser dados em primeiro, segundo e terceiro lugar para mudar aquilo que deve ser mudado na nossa realidade e quais os recursos que precisarão ser mobilizados para esse fim. Será preciso saber se existem, se há meios para obtê-los ou se, ao contrário, dependem de novas fontes de arrecadação. Indo direto ao ponto: nossa economia crescerá? Quanto e em quanto tempo?

Concomitantemente, dever-se-á estudar a realidade existente e projetar o futuro imediato, pois alguns de seus elementos podem gerar diferenças significativas como evidencia, por exemplo, a educação pública, em crise há muitos anos e em todo o mundo, ou a saúde, onde a disseminada exiguidade de recursos impede que se lance mão de um arsenal estupendo de novíssimas drogas maravilhosas, descobertas recentes da ciência médica, capazes de promover uma revolução na expectativa e na qualidade de vida. Mais problemas? 

Agenda extensa  

Há, díspares e em profusão! A quantas estarão, em futuro próximo, os índices de criminalidade? Como se dará a mobilidade do homem? Quanto teremos que saber? Aproxima-se um paraíso sem trabalho exatamente nas cidades que se constituíram em símbolo do trabalho e da industrialização? Como proteger o que resta da nossa Mata Atlântica? E nossos mananciais? Que comeremos amanhã? A adoção dos modernos meios de comunicação terá importado quanto para o processamento e a disponibilidade democrática da informação?

Três grandes eixos  

Já se viu que todas as questões apontadas e inúmeras outras, igualmente inquietantes, podem ser organizadas em somente três grandes eixos temáticos: humanidade, natureza e tecnologia. São esses os três elementos a serem necessariamente enlaçados em um mundo que se pretende harmônico, o mundo que o imaginário antecipa há muito, a ficção alimenta e o senso comum espera, um mundo onde humanidade e natureza deverão haver-se com o conhecimento derivado da técnica. 

Daí, trata-se de reinventar a sociedade, formá-la, e essa formação vai precisar ser disparada simultaneamente na direção desses três grandes eixos temáticos. A rapidez vai deslizar pelas veias do novo mundo despejando baías de informações a serem trabalhadas. Será um ser muito especial e fascinante o homem capaz também de viver em harmonia.

Se quisermos mudar o mundo, teremos de formar o homem. Para formar será preciso educar. Educar é incubar o futuro, isso é sabido, mas o processo é complexo. Considerando-se nossas perplexidades e ignorâncias, mais os aspectos da herança deixada pelo século XX, os quais deverão ganhar ainda novas nuances, são naturais as indefinições sobre o conteúdo, o caráter e a modalidade da educação capaz de dar conta desse gigantesco desafio. Para qual futuro se educará? Como deverá ser preparado esse homem que vai herdar a Terra?

Erros e acertos  

Perdeu-se já muito tempo, é preciso que primeiramente se reconheça isso, e esse descompasso está indiscriminadamente em todas as nações da Terra, em diferentes graus de enfermidade. O Brasil tem a história permeada de acertos e erros, desmandos e desmazelos, períodos ditatoriais, recuos, dependência. Tornou-se abissal a distância entre os meios disponibilizados para servir ao processo educativo e aqueles outros, muito superiores, pensados e produzidos pela moderna tecnologia que não estão, nem estarão por muitos anos, disponíveis para o ensino — apesar dos esforços louváveis! — por uma razão muito simples: um hiato de tal envergadura e significância erigido em muitos anos demandará necessariamente muitos anos para sua superação. 

Portanto, se desejarmos agilizar o processo, acertando o passo no ritmo exigido pelos novos tempos, o caminho é outro. Temos clareza de que não será pelo caminho exclusivo do ensino propedêutico que se varrerá a ignorância e se dará ao novo homem a prontidão para enfrentar o futuro e avançar ainda mais. Não, pelo menos, na urgência exigida.

De toda forma, qualquer tentativa de fazer progredir um sistema educacional tradicional como panacéia para todos os males fatalmente fracassará. Aliás, esse sistema educacional sobrevivente já representa esse fracasso, pois não forma o homem novo que o novo mundo impõe, o homem capaz de ouvir e de entender estrelas, como o definiu Olavo Bilac, o homem que ama o mundo, o homem crescido, aberto para novas percepções e, finalmente, capaz de acrescentar-se, a cada instante, renovado sempre, em processo permanente de aquisição de conhecimentos, servindo-se da torrente irresistível de informações a velocidades impossíveis à qual estará permanentemente exposto. Formá-lo significará erigir cidadãos inteiros, na plenitude do exercício da sua cidadania, conscientes, intelectualmente independentes e permeáveis à mudança.

Mais sensibilidade  

O novo homem, então, não nascerá apenas da escolaridade, e sim da sensibilidade. Sabemos empiricamente que é possível dar passos gigantescos confiando ao poder formador da arte o papel civilizador. Não é mera teoria, é fato. Vivemos essa experiência em diversos momentos e mais recentemente em Diadema, entre setembro de 1997 e outubro de 2000. Com esse norte teórico pudemos estabelecer uma política voltada prioritariamente para o combate à exclusão social. 

Foram criadas milhares de oportunidades de aprendizagem das mais diferentes linguagens artísticas, muito bem aproveitadas — é obrigatório dizer-se! — por cidadãos de Diadema e de todo o Grande ABC, de todas as idades. Vimos crianças e jovens carentes iniciando-se em instrumentos ditos de elite, como o violino, dos quais jamais se aproximariam em outras condições, e as vimos depois, mostrando o resultado da sua dedicação e do seu trabalho, socialmente integradas, confiantes, construindo um futuro melhor. 

Sobraram-nos algumas certezas, dentro do quadro de inquietações, de buscas e experimentos, alguns caminhos que nos parecem definitivos. Se não o forem, que sirvam, quando menos, para alimentar o imprescindível debate.

Continuidade e eficácia 

As ações de formação, fomento e difusão cultural devem ser compreendidas como parte de um processo e desenvolvidas em caráter permanente, de modo contínuo e não eventual, assim se garantindo a sua eficácia. Seu objetivo explícito: combater a exclusão social garantindo-se às pessoas de todas as classes, principalmente crianças e jovens das periferias, especialmente os segmentos menos favorecidos, o mais amplo acesso ao fazer artístico nas mais diversas linguagens. 

A arte torna-se, pois, sob o ponto de vista do que aí se articulou ideologicamente, o agente civilizador que, com seu formidável poder de transformação, é capaz de abrir a percepção humana e de fazer com que se revele o amor do homem pelo mundo e pelas coisas do mundo.

Papel civilizador  

Poderia parecer estranho atribuir-se o papel civilizador a alguma coisa não imediatamente necessária, como não parece ser imediatamente necessária a arte. Tomada como instrumento, porém, a prática artística figura uma chave para uma leitura às claras do mundo, a sua compreensão mais completa, um meio para o objetivo maior de promover a inclusão social. O homem novo do Terceiro Milênio nascerá a partir do desenvolvimento da sua sensibilidade, aguçada com a visão da beleza propiciada pela arte.

Fica claro, então, o nosso pensamento: a partir de um muito amplo e democrático programa de formação, crianças, jovens e adultos serão iniciados nos segredos dos instrumentos musicais, das telas, cores e tintas, na magia da dança e nos mistérios da palavra, abrindo-se para uma nova cultura e uma nova vida. 

Serão desmitificadas as formas e modalidades elitistas, como a dança clássica, a fotografia, os instrumentos mais raros, e incentivadas a arte circense, a escultura e a literatura, além de garantidas as legítimas expressões populares como o cordel ou o hip hop, espaço para o saudável questionamento da sociedade. Imersas na comunicação socializadora, as pessoas alcançam, então, novo patamar para os sentidos e desenvolvem leitura do mundo muito enriquecida e plural.

Papel do Poder Público  

Para um eficaz equacionamento dos problemas existentes e soluções adequadas, cada unidade federada, no seu âmbito, se responsabilizará por planejar e implementar ações que concorram para essa integração harmoniosa entre homem, natureza e tecnologia. Ora, ninguém em sã consciência esperaria que a população se mobilizasse em bloco e atuasse pronta e espontaneamente nessa direção, estando ausente o envolvimento visível e decisivo do Poder Público, desde as ações de estímulo e conscientização. 

Mas não nos enganemos! A participação compromissada da sociedade toda, engajada desde cedo a serviço dessa conquista, é pré-requisito para o êxito das ações e a eficácia de todo o esforço regenerador, o que significa desenvolvimento generalizado da consciência para agir ao invés de reagir; em última análise, educar. E rápido. Tudo para não fazer abortar o sonho de um futuro melhor.

Fica também muito claro, então, que há muito mais a ser feito, muito trabalho pela frente. À indispensável participação das unidades federadas e dos seus governos deverá se juntar a responsabilidade coletiva para enfrentar e vencer o desafio. De seu turno, as ações a serem desenvolvidas não são compartimentos estanques. 

Cadeia de problemas  

Não se dirá que os casos de fome, analfabetismo, violência ou necessidades especiais sejam afetos a este ou aquele departamento, a este ou aquele grupo de trabalho. Os problemas intercomunicam-se e é assim que deverão ser observados e resolvidos. Essa é uma atribuição de toda a sociedade e atribuições não são delegáveis, o que faz com que o coletivo e cada indivíduo sejam igualmente responsáveis e possam cobrar-se e exigir-se, mutuamente, pelos resultados obtidos. 

Além do envolvimento de todos, Estado e sociedade civil, se deverá procurar a solução regional, pragmatismo decorrente e lógico, economizando, otimizando e multiplicando os recursos existentes, derrubando fronteiras para melhor usufruir de avanços e para alavancar o desenvolvimento comum.

As cidades que compõem nossa região têm problemas e vivem situações muito semelhantes, haja vista a história de cada uma — a causa do seu atual retrato! –, mas atuam muitas vezes isoladamente, sem tirar melhor proveito do fato de se identificarem, não raro profundamente, em um sem-número de aspectos. Se acordarem a sua força conjunta, Diadema, Santo André, São Bernardo, São Caetano, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, em futuro próximo, depois de um grande esforço regional civilizador, em atuação solidária e determinada, terão resolvidas as suas mais agravadas questões e avançado em direção à sua vocação de pólo de irradiação cultural. As idéias podem tornar-se realidade e uma realidade infinitamente melhor do que a que observamos.



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