Entrevista Especial

Viva o espaço público!
Abaixo o atraso político!

MALU MARCOCCIA - 05/03/1999

O caos urbano da Grande São Paulo tem uma saída. Ou melhor, várias: ruas, praças e parques amplos, bem cuidados, seguros e bonitos. É o que Jorge Wilheim, um expoente em urbanismo no País, chama de espaços públicos de convivência. A solução emperra, entretanto, em administradores atrasados, que na visão do arquiteto e urbanista ou são ignorantes ou têm pouco espírito público ao tratar do planejamento urbano. Wilheim põe os políticos da Região Metropolitana na saia justa: “De modo geral, os políticos atrasados são contrários à criação efetiva de órgão e poder metropolitanos, pois acham que tirariam de cada deputado a função de despachante que resolve os problemas de sua região” — cutuca.


Jorge Wilheim é considerado um grande pensador das metrópoles e entusiasta da vida em comunidade. Acha que é possível melhorar as grandes cidades e torná-las amadas pelos moradores se, por exemplo, for resgatada a qualidade dos bairros com muitos lugares de lazer e circulação social. “Parece-me muito pobre a vida de uma cidade cujos únicos pontos de encontro se dêem dentro de um shopping” — conceitua, com a autoridade de quem foi secretário-adjunto da Habitat 2, a festejada 2ª Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Urbanos realizada em Istambul em 1996 e que premiou Diadema, entre outros, pelo programa de recuperação de favelas.


Wilheim acha que o futuro da Região Metropolitana de São Paulo é tornar-se primordialmente um pólo de serviços e que a indústria remanescente se revolucionará pela automação computadorizada, ou seja, sobrará um parque de ponta. Também apóia projetos como os de recuperação da Avenida dos Estados em Santo André e dos vales dos rios Tietê e Pinheiros, na Capital, como pontos difusores de serviços, lazer e entretenimento.


Por que na sua visão não existe a cidade ideal, que proporcione aos cidadãos opções variadas de lugares onde se sintam bem e com os quais tenham ligações afetivas? Talvez as metrópoles mais antigas, como São Paulo, Rio de Janeiro e o Grande ABC, que cresceram desordenadamente, não se enquadrem nesse conceito. Mas cidades menores ou planejadas não poderiam ser o tão cobiçado pedaço de paraíso na terra?


Jorge Wilheim – Há cidades melhores e piores. Não há cidades ideais, em que tudo funcione com perfeição, sem problemas. São Paulo está muito longe de se classificar entre as cidades melhores; mas, em tese, apesar dos óbvios problemas de escala, não há razão para pensar que não possa melhorar. Para isso, três condições são imprescindíveis: criatividade, espírito público e vontade política.


O que o senhor quer dizer exatamente com vontade política?


Wilheim – Vontade de quem tem o poder nas mãos. Infelizmente temos notado ausência tanto de vontade política quanto de espírito público na maioria dos administradores. Seja por questão de prioridades, em que o planejamento urbano não é visto como tal, seja por ignorância técnica, em que o político não conhece o que é sociedade, o que significa desenvolvimento sustentado. Por isso, o assunto não lhe parece urgente ou importante. É há também os ignorantes arrogantes, que desconhecem e não querem que se faça nada. Estes vêem a política como algo pessoal e não a serviço do bem-estar social. São todas visões políticas atrasadas.


O senhor desenvolveu projeto para a Emplasa (Empresa de Planejamento Metropolitano) no qual a prioridade era pensar a Região Metropolitana como um todo, já que os municípios que compõem essa conturbada e maltratada mancha urbana têm um ponto em comum: cresceram de forma anárquica e nenhum administrador público levou a sério um plano que orientasse o futuro das cidades. O que emperra essa integração: interesses políticos, falta de engajamento da comunidade, desinteresse de empresários como parceiros, especulação imobiliária das grandes construtoras?


Wilheim – De modo geral os políticos atrasados são contrários à criação efetiva de órgão e poder metropolitanos, pois acham que essa instância tiraria de cada deputado a função de despachante que resolve os problemas de sua região. A ausência de planejamento também resulta, repito, de uma visão e de práticas atrasadas no exercício da política. Segundo essas práticas, qualquer disciplina e ordenamento do território são vistos como obstáculo à livre iniciativa e à negociação caso a caso. O planejamento estratégico mais avançado sempre contém uma fase de negociação, porém conforme critérios de interesse público e sem perder de vista os objetivos de longo prazo. Os empresários de visão têm muito a ganhar ao participar da construção de uma cidade em parceria com o setor estatal.


Há alguma possibilidade de recuperar a paisagem urbana de grandes cidades como as do Grande ABC, onde predominam a falta de verde, sujeira, populações inchadas, vilas operárias deterioradas pela evasão de indústrias e pequenas ilhas de moradores das classes A e B cercadas de favelas por todos os lados? Não é um pouco de utopia habitacional usar a rua, como o senhor sugere, como local de socialização e não apenas como via de trânsito?


Wilheim – A rua é apenas parte do espaço público da cidade. Defendo a recuperação, ampliação e embelezamento do espaço público como um todo. Vida urbana não se resume a trânsito. As cidades mais amadas por suas populações são aquelas que apresentam ruas, praças e parques amplos, bem cuidados, seguros e bonitos. Parece-me muito pobre a vida de uma cidade cujos únicos pontos de encontro se dêem dentro de um shopping center.


Seja pelas políticas econômicas que durante anos geraram hordas de excluídos, seja pela sucessiva omissão e falta de fiscalização das autoridades, o fato é que as ocupações de áreas periféricas, geralmente de proteção aos mananciais, crescem em níveis incontroláveis. Como corrigir essas invasões desordenadas, por exemplo, no cinturão verde da Serra do Mar e da Represa Billings? Seu colega Cândido Malta sugere criar cotas de ocupação, com número limitado de habitações em áreas demarcadas que não comprometam a preservação ambiental. Em São Paulo, a saída foi anistiar e regularizar espaços onde prevalecem as sub-habitações. Como conciliar esses dois extremos: ambientalistas refratários à expansão de áreas urbanas e um exército de cidadãos que ocupam espaços clandestinamente em busca do direito básico à moradia?


Wilheim – Há vasta parte da população cuja renda não é suficiente para entrar no mercado da habitação, não tendo recursos próprios para ter acesso à terra urbana. É então levada a aceitar as ofertas mais baratas de loteadores ilegais que organizam invasões de áreas públicas, apossando-se dessas áreas sem nada pagar, ou de áreas privadas de baixo potencial de adensamento (como as de preservação de mananciais). Essas invasões por vezes escamoteiam uma negociação prévia entre o proprietário da gleba e o loteador da invasão. São Paulo pode aprender com o que se fez em algumas cidades brasileiras, embora tenha de enfrentar as dificuldades próprias de sua escala. Repito: criatividade, espírito público e vontade política não fazem milagres, mas ajudam bastante…


Que cidade poderia ser referência?


Wilheim – O Rio de Janeiro fez intervenção muito interessante nos morros tomados por favelas. Cada núcleo ganhou projeto físico envolvendo vias para lixo e drenagem, por exemplo, praças públicas para dar um ar de civilidade aos locais e todo um trabalho social foi feito junto à comunidade, de integração de favelas. O programa Cingapura, da Capital, é conceitualmente correto. Os edifícios em lugar de favelas permitem melhorar as condições de habitabilidade. O problema é o alcance limitado. Como não há minicréditos aos interessados, a exemplo do que fazem outros países, nem subsídios3 públicos ou parcerias com a iniciativa privada, o Cingapura fica minúsculo diante da demanda metropolitana.


Há quem defenda o adensamento dos centros das cidades, com estímulos à verticalização como forma de aumentar a oferta e baratear a moradia. Isso permitiria que mais pessoas usassem a infra-estrutura instalada (equipamentos urbanos públicos, comércio, escolas, rede de transporte etc). Como ficam o trânsito, a poluição visual, o barulho noturno e a concentração populacional nem sempre atendida por parques e áreas de lazer?


Wilheim – O adensamento de áreas com redes de eletricidade, água encanada e esgoto implantadas deve também ser ponderado à luz da capacidade de as vias locais acolherem o tráfego de veículos. Esta exigência está, aliás, explicitada no texto da Lei do Plano Diretor do Município de São Paulo, ora na Câmara.


Toda cidade tem um anel intermediário entre o centro e a periferia que possui boa infraestrutura e pode ser adensado. Na Capital, fora do centro expandido, temos as regiões do Ipiranga/Sacomã, Casa Verde e Vila Sônia que podem ser mais bem ocupadas. Tudo, porém, deve obedecer a critérios de ocupação. Permitir adensar 10 vezes mais determinada área não é urbanizar, é fazer negócio. E qualquer adensamento deve priorizar espaços públicos, de convivência, como praças e parques.


O que ocorre com a Capital e o Grande ABC em particular, devido à concentração industrial, é uma expressiva migração de pessoas da classe média, empresas e novas oportunidades de vida para o Interior ou outros Estados que emergem como pólos econômicos. O que vai sobrar na Região Metropolitana? Como dizem que há males que vêm para o bem, seria a qualidade de vida inexistente (que incentiva essa evasão) a grande oportunidade para requalificar a Grande São Paulo? Que novas vocações econômicas e paisagens urbanas emergirão desse caldeirão do caos cosmopolita em que vivemos? O Grande ABC, por exemplo, pensa seriamente em explorar o turismo como nova engrenagem pós-industrial. O projeto vencedor da estruturação urbana e paisagística das marginais Pinheiros e Tietê transforma esses rios em eixos para expandir atividades de serviços e lazer, como instalação de marinas, centros de convenções, hotéis, plantio de árvores nativas etc. É mais ou menos o que Santo André pensa em fazer na prorrogação da Avenida dos Estados que vem da Capital. Não são planos mirabolantes de pranchetas?


Wilheim – O destino da metrópole paulistana, isto é, seus riscos e oportunidades, deve ser visto no contexto das transformações estruturais e conjunturais que ocorrem no mundo, durante o presente período de transição da história. Toda metrópole torna-se primordialmente cidade de serviços. Porém, a forma de produzir da indústria está sendo revolucionada pela automação computadorizada; a organização da produção, com empresas transnacionais, também se altera e o tamanho de cada unidade produtiva diminui.


Creio que a metrópole passará por fase de reindustrialização, além de abrir-se o leque da demanda de serviços e diversificar-se a natureza dos usuários, os quais não serão apenas os moradores da metrópole. Tanto o projeto vencedor para a reurbanização dos vales do Tietê e dos Pinheiros quanto os projetos em elaboração para a Avenida dos Estados constituem diretrizes urbanísticas consistentes e geram paisagens urbanas apropriadas, na justa escala da metrópole. Não se deve amesquinhar essa escala. Como escreveu Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena, se não tens alma pequena”…


Qual sua sugestão para tornar a Região Metropolitana um espaço efetivamente a serviço do cidadão? Urbanistas falam muito em resgatar a vida em bairros, transformando-os em pólos de desenvolvimento onde as pessoas possam morar, trabalhar e se divertir sem o frenético deslocamento hoje existente entre municípios. Primeiro: isso é possível em um País onde planos diretores e leis de zoneamento são sistematicamente violados ao sabor dos governantes de plantão, que entopem as cidades ora com espigões em áreas que não suportam o acréscimo de moradores, ora criando zonas comerciais para trazer grandes shoppings e hipermercados que devastam os outrora bairros residenciais e canibalizam o pequeno comércio? Segundo: voltando à utopia, é possível conjugar função residencial, de comércio e de serviços, ou até atividade fabril, num único espaço?


Wilheim – Viver em cidade grande implica sempre em casar o aqui da moradia com o acolá das demais atividades; das distâncias e dificuldades do transporte decorre a vantagem de morar perto do trabalho e dos locais de abastecimento e lazer. Disto resulta a importância, sim, de reforçar a centralidade dos bairros, sua qualidade, abrindo também o leque de atividades do que neles se oferece.


Planejamento estratégico implica em transparência e participação em decisões. Estamos atrasados em ambos os aspectos, que são fundamentais. Dizia Rousseau: “O interesse público não é a mesma coisa do que o interesse de todos”… Em qualquer sociedade há conflitos de interesses, eventualmente legítimos; muitos podem não expressar o interesse público. Evidenciar, em todas as decisões, onde reside o interesse público é o desafio constante da política e dos políticos, a ser cobrado pelos cidadãos.


O que o senhor acha de experiências como a Riviera de São Lourenço, uma comunidade macroplanejada que conseguiu unir defesa do verde, coleta seletiva de lixo, abastecimento de água e tratamento próprio de esgoto, além de rígidas normas de ocupação em relação à metragem construída e preservada? E tudo realizado pela iniciativa privada, ou seja, sem estar sujeita aos humores de políticos de plantão? Por outro lado, não seria uma forma de aumentar a segregação espacial das cidades — aqueles bolsões de riqueza delimitados por condomínios de luxo e um cinturão de miseráveis ao redor?


Wilheim – A Riviera de São Lourenço é um bem-sucedido e bem orientado empreendimento de classe média, em uma gleba afastada da área urbana de Bertioga. Constitui exemplo para os empreendedores desse tipo de urbanização, pois neste campo de atividade imobiliária são frequentes os empreendimentos de baixo nível, feios e descuidados, predadores e descompromissados com o ambiente natural ou urbano em que se inserem. Por outro lado, não creio que uma cidade composta pela junção de condomínios fechados, com o abandono dos espaços públicos, resulte numa cidade boa. Cidade boa é ponto de encontro e de trocas, nunca de segregação e isolamento.


O arquiteto espanhol Eduardo Leira, que assessora a Prefeitura de Santo André na construção do que se chamou de Cidade do Futuro, criticou o traçado do famigerado Rodoanel. Em lugar de passar ao largo da Região Metropolitana — com o propósito de desafogar sobretudo o centro da Capital do trânsito pesado –, esse anel viário, na opinião de Leira, deveria ter seu traçado mais próximo do tecido urbano. Com acessos em todas as cidades, e não apenas nas conexões com as principais rodovias, toda a população metropolitana, não somente os caminhoneiros, usufruiria dessa megavia expressa. Que lhe parece?


Wilheim – Não considero famigerado o Rodoanel… A implantação de seu projeto vem com 15 anos de atraso. No seu setor norte e oeste o anel já passa dentro da trama urbana, embora em áreas de baixa densidade. Por razões de custos e inconveniências de desapropriações, o traçado evita áreas mais urbanizadas. Na trama leste poderia, de fato, aproximar-se e ter valorizada sua função urbana de acesso expresso, como sugere o arquiteto Leira.


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