O que você vai ler em seguida é assunto político, disfarçado de futebol. Também é assunto econômico, disfarçado de futebol. Também é assunto institucional, disfarçado de futebol. Por isso o que você tem a fazer é entender o que se passa. Temos um jogo de xadrez.
O São Bernardo Futebol Clube que enfrenta o Palmeiras neste final de semana num dos matamatas do Campeonato Paulista está na mira político-administrativa do prefeito Marcelo Lima. Não é fácil estabelecer juízo de valor sobre o que poderá ser desencadeado além do que já foi desencadeado. E o que foi desencadeado ganhou a forma de intervencionismo público em clube privado de interesse público.
O Clube Atlético Aramaçan de Santo André é uma agremiação associativa de interesse associativo. O Primeiro de Maio Futebol Clube também. Tantos outros clubes e instituições, igualmente. Mas quando se tem o futebol como produto principal, a situação é outra. O Esporte Clube Santo André é clube associativo de interesse público.
ESTATIZAÇÃO DESASTROSA
Diferentemente do antecessor, Orlando Morando, Marcelo Lima tem apetite voraz, quando não pantagruélico, por futebol. E o São Bernardo está atravessado na garganta do prefeito. Tanto em forma de grito de torcedor de ocasião ou não quanto de prefeito insatisfeito com o que tem como representação esportiva maior e de visibilidade imensa da cidade.
O São Bernardo privatizado após uma estatização abusiva é o time da cidade apenas no papel e na formalidade das competições. Trata-se de fato de um estranho no ninho popular, porque praticamente está instalado em Atibaia, onde realiza todos os treinamentos.
O São Bernardo só é de São Bernardo quando joga no Estádio Primeiro de Maio, em São Bernardo. A privatização do São Bernardo Futebol Clube concretizou um terceiro modelo de sustentação do clube ao longo da história. Um terceiro modelo também incompleto.
HIBRIDISMO ESTRUTURAL
Agora o prefeito Marcelo Lima dá indícios de que vai tentar uma quarta modalidade de identidade esportiva. Uma espécie de hibridismo entre o privado, o público e o associativo. É um desafio e tanto porque tanto pode melhorar quanto pode azedar o futuro que sempre chega.
Querem uma prova de que o privado e o público podem provocar entrechoques disruptivos ou quem sabe soluções conciliatórias no futuro? Marcelo Lima interferiu pessoalmente, com o poder de prefeito, para impedir que a direção do São Bernardo levasse o confronto com o Palmeiras para o Estádio do Morumbi.
A lógica empresarial foi soterrada em nome de uma lógica indicativa de mudança radical, ou seja, de que a cidade de São Bernardo deve ser prioridade da direção do São Bernardo Futebol Clube. O prefeito quer tirar o São Bernardo de Atibaia. Um São Bernardo competente nos gramados como jamais o fora até então.
A direção empresarial do São Bernardo vai perder muito dinheiro com a manutenção do jogo com o Palmeiras no Estádio Primeiro de Maio. Mas isso é só a ponta da agulha que deverá provocar mais incômodos entre o Poder Público e a direção do clube.
O distanciamento entre clube e cidade vai se dissolver, a se confirmar o andar da carruagem de intervencionismo já perpetrado como ensaio de uma jornada diferente da anterior. Esse é o ponto central da questão. O jogo negado no Morumbi é apenas o começo de tudo.
BEM-ACABADO, MAL-ACABADO
Acho que resumi bem resumido o que tenho como exposição inicial para a situação do futebol da melhor equipe do Grande ABC há várias temporadas. O São Bernardo pode não ser o melhor exemplo de profissionalização do futebol nestes tempos de grandes negócios, de imensas redes de clubes nacionais e internacionais, mas é o modelo mais bem-acabado num Grande ABC entregue às baratas de uma concorrência desigual com os grandes clubes da Capital. Se o bem-acabado também é mal-acabado, aí é outra história.
Só para lembrar: O Santo André segue o modelo associativista rezando para todos os santos para aparecerem investidores que o privatizem, o Água Santa é uma salada diretiva sem representação associativa para valer e o São Caetano virou um saco de gatos e ratos acionário que disputa a Quarta Divisão do Campeonato Paulista.
Por duas temporadas seguidas o São Bernardo esteve próximo de disputar a Série B do Campeonato Brasileiro. Perdeu as duas disputas na reta de chegada. A Série B só não é tão importante quanto a Série A, evidentemente, mas vale muito mais que a Série C ou a Série D, nas quais não há nenhuma representação do Grande ABC.
TIME COMPETITIVO
A Série B do Campeonato Brasileiro vale muito dinheiro de cota de transmissão de jogos. Quem está na Série B do Campeonato Brasileiro tem calendário, tem caixa forte e tem tudo para se sustentar com equipe rentável. Os ativos técnicos, em forma de jogadores, ganham novos olhares dos investidores. Estar na Série B é estar com um pé no paraíso dos negócios do futebol.
O São Bernardo ainda não chegou lá, mas pode chegar. Principalmente porque mantém um time competitivo há várias temporadas. Um time com uma marca registrada: joga um futebol em que cada lance parece decisivo. Considerando-se os investimentos de um lado e os resultados nos gramados, de outro, é um clube bem administrado.
Só peca por deixar um vazio de negócios rentáveis. O São Bernardo não vende jogadores por valores compensatórios aos investimentos. A gravidade se eleva porque não investe em equipes da base. Sem revelações, o hiato entre receitas e despesas é estreito.
O que se coloca em questão é até que ponto o perfil técnico-tático do São Bernardo Futebol Clube dentro de campo seria reflexo ou não da gestão empresarial de um proprietário com atividades em Campinas. O comandante do São Bernardo, Roberto Graziano, é visto como um torcedor do Guarani que mais dia menos dia vai comandar a SAF da agremiação de Campinas que já não se sustentaria como clube associativo.
TIRO DE PARTIDA
Provavelmente o prefeito Marcelo Lima não despreza os riscos de mexer nas peças de sutilezas políticas nesse tabuleiro de interesses esportivos e econômicos. É mesmo mais recomendável que não desconsidere todas as possibilidades construtivistas. O veto ao Morumbi de mais receitas é algo que precisa ser profundamente verificado.
Ao impedir diplomaticamente ou não que o São Bernardo levasse para o Morumbi o confronto com o Palmeiras, Marcelo Lima deixou evidenciado que as relações com a direção do clube serão diferentes de agora em diante. A sinalização teria decepcionado a direção do São Bernardo. Uma ruptura estaria no horizonte como possível alternativa?
Tudo é possível. Inclusive uma virada de mesa no sentido contrário – de encontro das águas de vantagens mútuas, entre o Poder Público e a agremiação.
O que se coloca em discussão é até que ponto o São Bernardo Futebol Clube exige mesmo a intervenção do prefeito Marcelo Lima. O arranjo que culminou na privatização da agremiação não contemplou cláusulas que poderiam oferecer salvaguardas a uma representatividade social que tornasse o São Bernardo mais de São Bernardo e menos de Atibaia ou Campinas. Preparar-se tecnicamente fora de São Bernardo não é crime algum. O erro é o São Bernardo abandonar completamente um marketing de representatividade local.
AÇÕES DE LUIZ FERNANDO
Mas nada foi contemplado. Tanto que o São Bernardo joga para literalmente meia dúzia de torcedores. O São Bernardo não é de São Bernardo depois da privatização. Mas o São Bernardo era falsamente de São Bernardo antes da privatização. Durante vários anos o São Bernardo foi estatizado pelo Partido dos Trabalhadores, nos dois mandatos da Administração de Luiz Marinho.
O São Bernardo do PT era o São Bernardo de Luiz Fernando Teixeira, espécie de supersecretário do então prefeito Luiz Marinho. Mais tarde Luiz Fernando Teixeira virou deputado estadual. E segue deputado estadual. Praticamente sumiu das numeradas do Estádio Primeiro de Maio. É um torcedor temporão. Só tem São Bernardo no coração quanto tem São Bernardo na direção.
A estatização do São Bernardo chegou a patamar tão elevado de absolutismo diretivo que a camisa 13 foi retirada dos vestiários e imortalizada, reservada ao então presidente Lula da Silva. Mais tarde, com a privatização, Lula da Silva perdeu a camisa 13. Lula da Silva jamais jogou futebol profissional. Muito menos no São Bernardo. Luiz Fernando Teixeira fez do São Bernardo um trampolim político.
TORCIDA TURBINADA
O que diferenciou o São Bernardo estatizado do São Bernardo privatizado é que Luiz Fernando Teixeira inaugurou o placar de um marketing político que industrializava torcedores nos jogos da equipe. Ingressos aos milhares eram distribuídos gratuitamente, o estádio ganhava cores e as bilheterias registravam arrecadações artificializadas. Luiz Fernando Teixeira, sempre espalhafatoso, chegou a desafiar os clubes grandes em termos de representação popular. Tudo isso e muito mais constam do acervo desta revista digital. Detalhadamente.
Quando o modelo estatizado foi descartado, com a derrota do PT à Prefeitura, a torcida predominantemente político-eleitoral desapareceu. Agora Luiz Fernando Teixeira está rondando a Prefeitura. Já apareceu em várias fotos com o prefeito Marcelo Lima. Há especulações de que estaria de olhos abertos em direção ao São Bernardo.
O outro modelo que marca a história do São Bernardo Futebol Clube é de origem associativista. Edinho Montemor, dirigente esportivo que chegou a eleger-se deputado federal, fez da agremiação um mais que bom ensaio de popularidade esportiva. A torcida do São Bernardo existia nos tempos de Edinho Montemor. Mas o clube não contava com requisitos de autossustentabilidade financeira.
MONTEMOR FACILITADOR?
Time associativo no turbilhão de clubes empresariais vira pó. O São Bernardo de Edinho Montemor não resistiu à troca de guarda na Prefeitura de São Bernardo e os planos do PT de contar com o futebol como alavanca eleitoral.
Para complicar ou mesmo simplificar, quem sabe, as conjecturas do São Bernardo Futebol Clube destes dias, Edinho Montemor é secretário-adjunto de Esportes da Administração de Marcelo Lima. Mais que isso: Edinho Montemor continua ligadíssimo à atividade. Atua como espécie de consultor na área. Tem um filho que atua como executivo de esportes, com passagens por várias agremiações. Em suma: Edinho Montemor é do ramo.
Reservado, Edinho Montemor praticamente não se manifesta sobre o São Bernardo Futebol Clube. As relações com Luiz Fernando Teixeira não são nada próximas. Divergências profundas os colocaram bem distantes do que poderia ser chamado de amistosidade mútua.
É possível que Edinho Montemor seja a peça mais relevante nas relações entre o Poder Público de São Bernardo e a direção do São Bernardo Futebol Clube. Ele poderia costurar um acordo que juntaria as duas bandas desgarradas.
MUDANÇA DE ENDEREÇO?
A alternativa a isso é a possibilidade de o dono do São Bernardo levar o São Bernardo embora, se é possível dizer que o São Bernardo já não foi embora. A legislação permite a medida. Por isso, o que se observa é uma cristaleira em meio a uma disputa corpo a corpo. A emenda da intervenção pode ser muito pior que a autonomia pragmática.
Edinho Montemor é importante na operação porque reúne muito mais conhecimento teórico e prático do que o prefeito Marcelo Lima. Além disso, sabe pelo passado e pelo presente vividos que futebol competitivo como o do São Bernardo não é um complemento automático de quem investe, mas a consequência mensurável de quem sabe investir.
O São Bernardo de dentro de campo é o time que dá orgulho à cidade de São Bernardo tão desprovida de marcas próprias. Falta ao São Bernardo de dentro de campo ser o São Bernardo de fora de campo. Sobretudo com um plano de adensamento da torcida perdida desde o desaparecimento do São Bernardo associativo.
É uma tarefa muito mais problemática do que passar pelo Palmeiras neste final de semana. Dependendo dos passos do representante máximo do paço, o São Bernardo pode embalar ou descarrilar.
PÉSSIMO EXEMPLO
O prefeito Paulinho Serra, em Santo André, não pode servir de exemplo de intervencionismo no futebol. Até hoje o Santo André pena por não ter obtido a liberação do Estádio Bruno Daniel para negociar a privatização de um modelo de representação associativista que não se sustenta.
O fato é que o São Bernardo do atual modelo fora de campo está distante do que poderia ser chamado de pertencimento esportivo, mas uma mexida desastrada poderá provocar desarranjos muito maiores.
O vizinho Santo André é prova disso. Não tem time competitivo, perde torcida a cada nova geração e se desgarra de potenciais investidores. Quando o Poder Público mete a colher de intervencionismo na arena privada, tudo pode acontecer.
O modelo de privatização do São Bernardo está longe de ser o ideal, mas está muito à frente dos modelos do passado que levaram a agremiação a ser o que é hoje dentro de campo. Mesmo tendo Atibaia como CEP operacional. Cuidado, portanto, com a cristaleira.
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15/08/2024 Ramalhão prioriza SAF para barrar decadência