A promessa é do coronel Roberto Nogueira, comandante do 6º CPA (Comando de Policiamento de Área-6) da Polícia Militar, com atuação nos sete municípios do Grande ABC: a Polícia Civil e a Polícia Militar vão atuar mais próximas entre si e também com a comunidade para combater a criminalidade na região. A declaração do coronel Nogueira foi a mais contundente — e a que oferece melhores perspectivas para a região — durante entrevista especial com a cúpula do policiamento no Grande ABC. Além do coronel Nogueira, participaram os delegados seccionais de Santo André, João Gilberto Pacífico, e de São Bernardo, Pedro José Liberal, responsáveis pela Polícia Civil.
Os três chefes da segurança no Grande ABC foram entrevistados separadamente, em dias diversos. A estratégia se revelou frutífera, porque retrata sem retoques as diferentes interpretações que o comando da Polícia oferece sobre determinados temas. O coronel Nogueira e os delegados Liberal e Pacífico, como são chamados pelas respectivas tropas, caminham na mesma direção, entretanto, quando se trata de avaliar o grau de periculosidade dos criminosos que atuam no Grande ABC: eles não ficam a dever nada, absolutamente nada, aos marginais que fazem de São Paulo e do Rio de Janeiro verdadeiros campos de batalha entre si, por disputas de territórios, e contra a população, vítima preferencial de seus ataques.
Combater para valer a criminalidade de modo a rebaixar gradualmente os indicadores que estão transformando o Grande ABC num barril de pólvora é o grande desafio da cúpula da Polícia. O coronel Nogueira afirma que vai buscar parcerias de autoridades públicas e entidades representativas da comunidade e das empresas para promover vigorosa cruzada contra os criminosos. Nesse ponto também eles concordam: só com apoio da comunidade será possível diminuir o aprofundamento da onda de violência no Grande ABC.
Uma onda, aliás, que cada vez mais faz a alegria dos surfistas da marginalidade. Entre 1995 e 1998, aumentou em 42% o índice de homicídios no Grande ABC. Isso mesmo: 42%. Em 1995 foram cometidos 788 assassinatos na região. O número aumentou para 904 no ano seguinte, para 1.115 em 1997 e atingiu 1.119 no ano passado. É gente demais assassinada. O rastro da criminalidade segue os passos do poderio e dos reveses econômicos: São Bernardo e Diadema, que representam 60% do PIB (Produto Interno Bruto) regional, acumularam 654 homicídios em 1998 — isto é, 58% dos casos na região.
O desequilíbrio maior tem Diadema como responsável. Os números indicam que praticamente não há rival nacional para os indicadores de homicídios: foram 351 casos em 1998 para uma população de 323 mil habitantes, o que significa, segundo padrões da ONU (Organização das Nações Unidas), 108 assassinatos para cada grupo de 100 mil habitantes. Para se ter idéia sobre o que esse índice representa, é nada menos que 50% superior aos 70 homicídios contabilizados no ano passado em Vitória, no Espírito Santo, a Capital mais violenta do País segundo estudos de secretarias de Segurança e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas).
No conjunto dos municípios do Grande ABC, que reúne 2,3 milhões de habitantes, a média de criminalidade para cada grupo de 100 mil habitantes é de 50. A taxa é elevadíssima, porque é o dobro da média nacional. Só dois municípios da região estão abaixo da marca nacional — São Caetano com 10,72 e Ribeirão Pires com 19,48. As demais ultrapassam largamente: Santo André tem 40,48; São Bernardo tem 45,90; Mauá, 47,80 e Rio Grande da Serra, 40,34.
A situação de Diadema é gravíssima porque, com população levemente inferior a Mauá (342 mil habitantes contra 323 mil) e com características socioeconômicas próximas, a diferença da taxa de homicídios é exagerada — mais que o dobro. Se confrontar o número de homicídios de Diadema com São Caetano, o contraste fica ainda mais evidente e preocupante. Embora São Caetano tenha 2,3 vezes menos população que Diadema, a incidência de homicídios é 10 vezes menor. Resumidamente: no ano passado morreram assassinadas em São Caetano 15 pessoas. Bastam 15 dias para que se tenha o mesmo número de homicídios em Diadema.
Diadema terminou a temporada de 1998 com marca extraordinariamente elevada de homicídios. Foram 108 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes, o que supera em muito a criminalidade de Guaianazes, a região mais violenta de São Paulo, cujo índice atinge 88 por 100 mil habitantes. O que se tem feito para tornar a situação menos grave?
Pedro José Liberal – Diadema já tem tradição de cidade violenta, por força de características sociais, mas esse quadro está sendo revertido. Hoje já observamos tendência de estabilização, o que é um avanço. Temos feito combate duro, dentro de nossos limites físicos, humanos e materiais. Temos combatido principalmente o porte de arma e efetuado batidas em pontos de maior incidência de criminalidade, além de investigar e prender quadrilhas de bandidos. Com relação a homicídio, é um crime até certo ponto imprevisível, porque normalmente não ocorre em vias públicas mais movimentadas. A grande maioria ocorre nas favelas, nas vielas, motivada principalmente por tráfico de drogas e acerto de contas entre marginais.
João Gilberto Pacífico – A fama de Diadema é mesmo de violenta. Embora esteja dirigindo uma Seccional que não está ligada a Diadema, tenho me mantido informado sobre os acontecimentos. Acho que a criminalidade no Município é preocupante também porque sofre os efeitos da proximidade com bairros carentes da periferia de São Paulo.
Coronel Roberto José Nogueira – Estamos atacando o problema com patrulhas nas ruas, batidas em bares, parando veículos, retirando armamento das ruas. Aliás, o número de armas nas ruas é muito elevado. Chegam muito fácil. Por isso, é importante trabalhar preventivamente e indagar de onde estão vindo. Precisamos reprimir o uso de armas nas ruas mais intensamente. Estamos investindo sobretudo onde há maior incidência de problemas. Quem por uma simples discussão puxa uma arma, certamente tem por trás de si raízes culturais de banalização da vida, de imposição pela força. Os números da criminalidade em Diadema não me surpreendem, mas temos de acreditar na solução dos problemas. Não adianta reclamar de falta de infra-estrutura e de homens. Temos de ser criativos e ir para a linha de frente para capitalizar resultados, derrubar os índices. Para isso, podemos até restringir o horário de funcionamento dos bares.
O Estado brasileiro investe no policial apenas um quarto do governo americano. Um patrulheiro de rua nos Estados Unidos chega a ganhar até seis vezes mais do que um policial brasileiro. Essa é uma das explicações para a criminalidade no Brasil e também na região?
Coronel Nogueira – Isso não justifica. É preciso, antes de tudo, medir o potencial que o Estado brasileiro tem para investir em segurança, em saúde, em educação e em outras áreas. Segurança não é responsabilidade pura e exclusiva da Polícia Militar e da Polícia Civil. Compreende também o Judiciário, o sistema penitenciário, o sistema educacional, o planejamento urbano. De alguma forma, tivemos melhoria nos últimos tempos. Não temos ainda, por exemplo, coletes a prova de balas em número necessário, mas contamos com o equipamento. Também em armamentos e em viaturas tivemos melhora. Não é o ideal, é claro, mas evoluiu.
Pedro José Liberal – É evidente que a remuneração do policial tem muito a ver com criminalidade. Tanto é verdade que dificilmente um policial paulista não tem o chamado bico para reforçar o orçamento doméstico. Se fosse bem remunerado e se dedicasse exclusivamente à sua corporação, teríamos melhoria na qualificação. O policial brasileiro é reconhecidamente muito bom, segundo autoridades norte-americanas que aqui estiveram para trocar experiência. É inventivo, improvisador, tem potencial de trabalho muito bom. Nos Estados Unidos, o policial ganha para atuar em determinado período. Fora disso, recebe remuneração extra. Inclusive em competições esportivas, em finais de semana, quando se habilita voluntariamente, o policial americano recebe para isso. Aqui temos de tirar o sangue do policial para operações extraordinárias, nos finais de semana, à noite, sem remuneração alguma. Nossa legislação estabelece o mínimo de 40 horas semanais. O máximo depende da resistência física de cada um. Estou me referindo, é claro, aos policiais operacionais, não aos de área de suporte, cuja carga horária é delimitada pelo teto.
João Gilberto Pacífico – Realmente o policial brasileiro, em alguns Estados, recebe bem menos que o policial do chamado Primeiro Mundo, como os Estados Unidos. Mas há Estados em que se paga bem, casos do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, alguns Estados do Nordeste e o Distrito Federal. Em São Paulo não se pagam os mesmos salários em função de dificuldades orçamentárias do governo, mas isso não deve servir de justificativa para o aumento da criminalidade. O policial paulista trabalha com salário defasado, mas o faz com afinco, com determinação. Dá o máximo de si. Isoladamente salário não serve como explicação para o aumento dos níveis de violência. Questões sociais e econômicas é que determinam isso.
Qual sua avaliação sobre a Tolerância Zero, lançada com sucesso em Nova York? O que o senhor acha sobre a conceituação do prefeito Rudolph Giuliani de que tirar um traficante da rua por portar documento falso é o que interessa? Por que pequenos delitos não são priorizados pela nossa Polícia?
João Gilberto Pacífico – Os pequenos delitos são priorizados aqui na nossa área. Entendo que todos os delitos são importantes, mas a aplicação do conceito no Brasil é problemática, por causa das dificuldades operacionais que encontramos.
Coronel Nogueira – Os Estados Unidos contam com legislação que permite a aplicação desse sistema, além de homens e meios aparelhados. Um delito cometido nos Estados Unidos leva o infrator imediatamente à frente de um juiz e a sanção lhe é imputada de pronto. Como faremos algo parecido aqui se a legislação é completamente diferente? Esse é apenas um dos problemas. Há vários outros, como a necessidade de preparar o policial para a tarefa. Acho que as diferenças estruturais tornam a Tolerância Zero menos importante no Brasil do que a Polícia Comunitária.
Pedro José Liberal – Pequenos delitos nem podem ser priorizados. Temos de trabalhar como pescadores. Os peixes miúdos vêm a reboque de operações desenvolvidas para apanhar peixes graúdos. Não posso, por exemplo, designar os poucos policiais de que dispomos para caçar motoristas sem habilitação. Saímos para pegar peixes grandes e o que cair na rede pescamos.
William Bratton, responsável pela queda da criminalidade em Nova York, disse recentemente que pobreza social obviamente interfere nos índices de violência, mas não é determinante como muitos estudiosos tentam fazer crer. Ele fez pesquisas relativas ao período da Grande Depressão pelo qual passaram os Estados Unidos e constatou que a taxa de criminalidade e a violência eram muito menores do que atualmente, quando a riqueza é bem maior. Para ele, a sensação de impunidade, a sensação de que a cidade não tem controle contra a desordem, é a principal matriz da violência e da criminalidade.
Pedro José Liberal – Não sou cientista social e nem tenho tempo para me ater a esse tipo de análise comportamental. O que a prática de 30 anos de carreira me ensinou é que nossa realidade é diferente da dos Estados Unidos. Para mim, a influência da situação econômica e social é óbvia. Só não é imediata com relação ao quadro de desemprego, de dificuldades econômicas. Mas a médio e longo prazos, não há dúvida. O trabalhador que perde emprego hoje perde o padrão de vida, é obrigado a atuar no subemprego, seus familiares sofrem com isso. A mulher tem de ir à luta também, os filhos igualmente, porque muitas vezes a família se muda de residência, vai para a periferia mais próxima da violência, da marginalidade. No médio e longo prazos, esses filhos desempregados poderão cair na marginalidade. Estamos vivendo hoje as consequências do desemprego de 10 anos atrás. A situação tende a piorar se não houver reversão econômica. O agravante de tudo é que faltam na periferia opções de lazer, de entretenimento, de cultura. Um passeio de helicóptero pela periferia nos dá a imagem exata do quadro. Temos imensidões de casas em construção, sem reboco, e uma constante presença de bares, bares e bares. Com R$ 1 se compram seis doses de pinga e ainda sobra troco. Está aí o combustível para a criminalidade.
João Gilberto Pacífico – Se tivéssemos uma população culta, tenho certeza de que a pobreza não teria repercussões criminais tão intensas. O problema é que vivemos num País pobre, com alto nível de desemprego e baixa taxa educacional.
Coronel Nogueira – Concordo em gênero, número e grau com a primeira parte. O problema econômico não gera criminalidade. Se isso não fosse verdade, um cara que trabalha e ganha R$ 800 por mês não iria assaltar, como tem acontecido. Temos casos de trabalhadores que largam o emprego para se dedicar ao crime porque entendem que acabam ganhando mais. Quando à impunidade, sem dúvida é problema sério. Num momento em que o mundo se globalizou, em que as telecomunicações agilizam as decisões, como se pode admitir que uma punição ao infrator demore seis meses, um ano, dois anos? Não sei até que ponto a Justiça tardia funciona. Acho que o sistema, como um todo, precisa de reestruturação. O sistema como um todo: desde o policial, passando pelo Judiciário até o penitenciário. Temos meliantes nas ruas que já foram presos mais de 10 vezes; e isso não é exceção. Além disso, os presídios precisam recuperar os presos e devolvê-los à sociedade prontos para ser produtivos. Infelizmente, todo mundo sabe que a realidade é outra. Eles voltam piores, mais perigosos.
Os jovens brasileiros entre 15 e 24 anos são as principais vítimas da violência no País. A proporção de adolescentes que morrem assassinados no Brasil, e o Grande ABC segue essa trilha, é quase seis vezes maior do que a de vítimas de homicídios na população total. Existe alguma estratégia específica para reduzir essa proporcionalidade na região?
Coronel Nogueira – Esse é um problema internacional das grandes cidades, onde aparecem as gangues, os crimes organizados, o tráfico de entorpecentes. Aliás, o tráfico de drogas é extremamente agressivo porque envolve queima de arquivos, disputa de pontos, o desespero pelo próprio vício. Particularmente essa faixa etária está muito ligada ao tráfico de entorpecentes. Acho que nossa legislação precisa ser aperfeiçoada para perseguir as grandes fortunas que explodem em decorrência de ações voltadas para as drogas. Essa conta precisa ser aberta. Sem isso, acho que vamos continuar a fazer o trabalho de coleta, retirando os jovens e colocando-os nos rabecões em direção aos necrotérios. Sem o combate às drogas, não temos saída para os jovens.
Principalmente os jovens que vivem em regiões mais pobres e desprotegidas, como as favelas dominadas por bandidos que submetem moradores ao terrorismo do amedrontamento em relação à lei e lhes oferecem um tipo de assistencialismo que funciona como cala-boca. Infelizmente, esses jovens vão virar estatística.
João Gilberto Pacífico – Temos levado avante alguns programas de ação dirigidos para os jovens. Acreditamos que atacando o tráfico de drogas rebaixaremos os indicadores de criminalidade. É verdade que não existe nada especificamente dirigido ao jovem, exceto palestras que realizamos em escolas.
Pedro José Liberal — Não temos como vigiar a população pela faixa etária. Nossa segurança é para todos, rico, pobre, velho, novo. O ideal seria a convivência entre o Poder Público e a sociedade. Não podemos ficar tomando conta dos filhos de todos. Muitas vezes o próprio policial vive esses problemas. Mora na favela e os filhos estão desprotegidos, sem acompanhamento familiar.
Como os senhores analisam o fato de Jundiaí ter reduzido a delinquência infantil em 50% e também de deter a menor taxa de reincidência de infrações entre adolescentes do Estado? Lá existe uma organização, o Comej (Centro de Orientação ao Menor de Jundiaí), que há 10 anos atua na recuperação de adolescentes infratores com apoio de empresas e da comunidade. Está faltando algo parecido por aqui?
Pedro José Liberal – Não conheço esse trabalho, mas pela experiência de vida policial entendo que a aplicação desse programa não é complexa lá, por causa das características socioeconômicas de Jundiaí. Entendo até que algo parecido poderia ser feito em São Caetano, por exemplo. Já a introdução desse sistema em Santo André e em São Bernardo é muito difícil. Entretanto, entendo que a comunidade tem de participar sob pena de as classes mais favorecidas sofrerem ainda mais com a deterioração da qualidade de vida. Infelizmente, Segurança Pública tornou-se prioritária por causa da situação emergencial que estamos vivendo, quando deveria vir depois da Educação e da Saúde.
João Gilberto Pacífico – Sem dúvida, entidades como essas, em parceria com a Polícia, contribuirão para reduzir a criminalidade. É importante que a sociedade entenda que a responsabilidade pela segurança é nossa, da Polícia, mas que é indispensável contar com a participação da população. Segurança Pública é dever de todos.
Coronel Nogueira – Se o modelo é bom, vamos analisá-lo, vamos manter contatos com autoridades públicas, com representantes da sociedade e vamos utilizá-lo. Se há 10 anos está em execução, é sinal de que os meninos que completaram 20 anos agora deixaram de virar estatística. Acho que devemos montar um fórum sobre a questão, mobilizar as pessoas que decidem. Temos de avançar nesse projeto com os sete prefeitos, com todas as instituições voltadas para melhorar a qualidade de vida na região. Estamos prontos para estabelecer esses contatos. Vou procurar todos que tenham interesse e potencial de colaboração. Vou procurar a igreja, a maçonaria, os prefeitos, o Fórum da Cidadania, a Câmara Regional, os Legislativos. Vamos nos aproximar mais do conjunto da sociedade regional. Qualquer serviço público tem de adotar transparência em suas ações e é isso que estamos aplicando aqui na região. As marcas de criminalidade precisam ser reduzidas. A violência não pode ser banalizada.
O Canadá é o melhor local para se viver entre as 174 nações do mundo, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano divulgado pela ONU. Nas últimas décadas, o Parlamento e setores da sociedade civil organizada têm controle direto sobre a Polícia, seja nacional (Polícia Montada), sejam as das províncias e municípios. Desde 1980, duas experiências canadenses se destacam como exemplos de eficiência. A primeira é a filosofia de policiamento comunitário; a segunda, as comissões civis de reclamações. Lá, a população tem o dever e o direito de participar do processo decisório policial. A Polícia do Canadá não trabalha com os efeitos da violência, mas também com as causas. Isso tudo é utopia no Brasil?
Pedro José Liberal – Atualmente, sem dúvida. Em cidades menores pode até funcionar, mas nas grandes não. A Polícia Comunitária, que, aliás, está sendo implantada em todo o Estado de São Paulo, é o ideal. Só que no Canadá e em outros países desenvolvidos o policial tem nível socioeconômico igual ao do restante da sociedade. Aqui, dificilmente se encontra um policial, um carcereiro, um investigador, vivendo em bairro de classe média. O ideal seria colocar o policial para trabalhar perto da casa dele, onde conhece as pessoas. Temos um caso assim em São Paulo. A Zona Norte é o ponto geográfico da Capital onde se concentra o maior número de policiais militares, porque lá tem a Escola de Formação de Oficiais. É exatamente ali que tem o menor índice de criminalidade de São Paulo. Lá o índice é de um policial para cada grupo de 500 habitantes, contra um para mais de mil de outras zonas de São Paulo. O ideal, segundo padrões internacionais, é de um policial para cada grupo de 250 habitantes. É difícil dizer de quantos policiais dispomos na região, até porque boa parte do efetivo dedica-se a tarefas administrativas. Entre os policiais operacionais que sobram, precisamos dividir em quatro turmas, porque ninguém trabalha 24 horas por dia. Temos apenas 25% da capacidade ideal de policiamento operacional, e mesmo assim atuando com as dificuldades que todos conhecem.
Coronel Nogueira – Acho que temos de caminhar para o ideal, esse é nosso objetivo. Não podemos esquecer, entretanto, que os canadenses têm também seus desencontros. Nos contatos que tive com o comandante de Toronto, ele me disse sobre problemas que surgiram. Mas o principal é que têm algo indispensável, que é transparência. Nesse sentido, homens de nossa corporação que eventualmente não se comportam bem terão de ir a julgamento para que toda a sociedade sinta que somos uma instituição de responsabilidade. O infrator precisa ser julgado com todo o rigor. Mais até do que os civis, porque teve preparo especial para representar a sociedade como autoridade. Dizem que nosso regulamento é rigoroso, mas não concordo. Acho que deveria ser muito mais rigoroso. O regulamento canadense é absolutamente severo. O conceito da Polícia canadense me agrada como objetivo. A forma de fazer terá de ser culturalmente nossa. O sistema japonês também é muito interessante.
João Gilberto Pacífico – Não é utopia. Acredito que isso é possível no Brasil, talvez não com a mesma intensidade, evidentemente. Estamos longe disso, sem dúvida, porque a sociedade precisa participar muito mais.
Em setembro de 1996 os comandos da Polícia Civil e Militar do Grande ABC tiveram prazo de 10 dias para desenvolver programa de combate à violência na região. A determinação foi dada pelo então secretário de Segurança Pública do Estado, José Afonso da Silva. Já naquela época a PM da região trabalhava diariamente com déficit de 25% de seu efetivo, que deveria ser de 2,7 mil homens mas contava com apenas 2,1 mil. O que mudou de lá para cá?
João Gilberto Pacífico – Estou em Santo André há apenas seis meses. Encontrei carência de recursos humanos e técnicos. Temos um efetivo, para todas as tarefas, de 630 profissionais e menos da metade atua efetivamente na área operacional. Precisaria para a área de pelo menos mais 100 homens no efetivo, entre delegados, investigadores e carcereiros.
Pedro José Liberal – Tivemos algum acréscimo do efetivo. Na Polícia Militar não posso dizer, mas na Civil perto de 20%. Temos na nossa Seccional cerca de 600 funcionários. Uns 350 vão para a rua. Dividindo por quatro turmas, temos menos de 90 homens por turno, que trabalham todos os dias. Em 1996 não estava em São Bernardo para falar sobre essa determinação. O que posso dizer é que estabelecemos trabalho em conjunto com a Polícia Militar e todos os dias executamos o que chamam de blitz em determinados pontos geográficos. O ideal é que executássemos essa ação integrada todos os dias em todos os pontos, mas é impossível. Atacamos evidentemente os pontos de maior reincidência de criminalidade. Hoje estamos fazendo esse trabalho no centro de Diadema, por causa de denúncias dos comerciantes quanto ao índice de furtos e roubos.
É preciso abrir parênteses para algumas explicações. Na verdade, a Polícia Militar é preventiva, ostensiva e fardada. A Polícia Civil é repressiva, cabendo-nos todavia o policiamento preventivo especializado, o que constitucionalmente não é nossa atribuição. Mas sabemos que a Polícia Militar está assoberbada. O segmento investigativo nos Estados Unidos e em outros países do Primeiro Mundo não se utiliza de viaturas convencionais e sim de veículos originais de fábrica. Aqui não. Aqui fazemos investigação em carro preto e branco. Somos uma Polícia repressiva, investigativa e ostensiva, o que é um absurdo. O Secretário de Segurança do Estado está trabalhando no sentido de dotar a Polícia Civil dos chamados veículos frios, que facilitam as investigações.
Coronel Nogueira – À época estava aqui na região sim, mas saí para comandar interinamente a região de Osasco e agora estou voltando para o Grande ABC. O problema do efetivo é muito sério. Tanto quanto o do alistamento. É mais importante cuidar da qualidade do policial. O policial tem de servir à população, não se contrapor. Se acontece um entrevero entre duas pessoas, ele não pode fazer parte da ocorrência. Ele tem de baixar o ânimo dessa briga. Ao observar uma pessoa descontrolada, o policial não pode torná-la ainda mais nervosa. Essa é a função do policial. Esse é o perfil do policial comunitário. Infelizmente o que encontramos é muito desrespeito ao policial. O número de desacatos é impressionante. Acho que isso é resultado da desagregação social, da falta de diálogo. A sociedade de maneira geral está estressada e o policial sofre por causa disso. Cada policial passa oito, 10 horas nas ruas, só tratando de conflitos. Muitos já passaram situações terríveis, espancados em ônibus e assaltados por quadrilhas, entre outras ocorrências. No Canadá isso não acontece. Quando estivemos no Canadá, quatro anos atrás, eles registraram uma morte de policial por ano. Aqui, é uma por dia no Estado de São Paulo.
Qual é o índice de esclarecimento dos casos de crimes em sua região de atuação nos últimos 12 meses? Estamos mais próximos da Capital, onde recentes estudos constataram que não chega a esquálidos 3%, ou do Interior, onde ultrapassa a 80%?
Pedro José Liberal – Os números da Capital não são verdadeiros. Não sei quem teve essa iniciativa, mas não corresponde à realidade. Pelo menos 50% de ocorrências registradas nas delegacias não correspondem efetivamente a crimes. São ocorrências rotineiras. Casos de desinteligências, de extravio de documentos, de desaparecimento de pessoas, entre tantos outros. Quem conhece o dia-a-dia das delegacias de Polícia sabe que há uma montanha de registros que não podem constar como situação não esclarecida. Quem fez esse estudo comparou o número de ocorrências, o número de inquéritos e o número de casos esclarecidos. Equivocadamente.
João Gilberto Pacífico – Os crimes de autoria desconhecida são esclarecidos em pelo menos 7% dos casos. É um número baixo, mas decorre das dificuldades que temos para operar. Já os de autoria conhecida apresentam níveis de esclarecimentos bem acima. Diria até que a quase totalidade. Acredito que o índice ao qual se refere a pergunta se limite a crimes de autoria desconhecida.
O que fazer contra a constatação de que há 1,6 milhão de viciados em crack, cocaína e maconha na Região Metropolitana de São Paulo? A situação não se torna incontrolável quando se sabe que o envolvimento com drogas foi a principal causa das chacinas nos últimos cinco anos?
Pedro José Liberal – Preocupante, preocupante. Tanto que o secretário de Segurança Pública estabeleceu metas ao assumir ao posto e uma dessas metas é o combate ao crack. Por que principalmente o crack? Porque é a droga do pobre, a mais violenta, a que mais provoca dependência e degeneração física e moral. Esses números me assustam, mas não me surpreendem. Nessas alturas do campeonato, vou dizer uma coisa: sinto até saudades dos tempos da maconha. Não vejo muita diferença entre a maconha e o cigarro. A maconha pode levar a práticas criminosas, mas talvez o álcool seja muito pior. O crack realmente é preocupante. A cocaína é mais utilizada na alta sociedade, mas não vejo esse pessoal envolvido em crime, pelo menos nos crimes banalizados que acontecem no dia-a-dia.
Coronel Nogueira – Esses números são muito fortes. Não quero crer que tenhamos uma geração perdida. Acho que temos de resgatar esses jovens. Tão importante quando cuidar dos jovens é investir nas crianças.
João Gilberto Pacífico – A Secretaria de Segurança tem estabelecido políticas de combate às drogas, o que demonstra a preocupação das autoridades policiais. Em nossa seccional reativamos a divisão que trata do assunto e os resultados já começam a aparecer, embora ainda falte muito em termos de estrutura. A droga é um dos fatores de violência, sem dúvida, mas não pode ser responsabilizada isoladamente. É mais um componente da violência que se espalha justamente porque encontra terreno fértil.
A unificação das polícias Civil e Militar é uma das alternativas para diminuir a criminalidade no País? Critica-se muito o desperdício de recursos e a sobreposição de ações como entraves ao bom trabalho das corporações. Geralmente há concordância quanto aos diagnósticos, mas o que emperra é quem vai comandar as operações; daí o impasse. Há alguma saída?
Coronel Nogueira – Temos saída sim. Precisamos conversar sobre isso abertamente. Posso garantir que tanto eu quando os dois delegados seccionais da região estão abertos para promover uma Polícia que a sociedade tem como anseio. Já conversei com o doutor Liberal e firmamos compromisso de direcionar juntos nossos objetivos. Só não falei com o doutor Pacífico por falta de oportunidade, mas tenho certeza que ele terá a mesma postura. Deveremos, inclusive, nos reunir sistematicamente para tratar dos assuntos mais cáuticos. Nossa preocupação maior é o resultado final favorável à população. O que me interessa é a população, senão não teria razões para estar aqui. Poderia estar na reserva.
Pedro José Liberal – Esse problema é muito complexo. Até delicado de analisar. Primeiro, é preciso perguntar a quem interessa ou a quem não interessa a unificação das polícias. Considero bastante difícil a unificação por causa da tradição e da forma de atuação. Me contentaria com uma regressão ao tempo de quando ingressei na Polícia, há 30 anos, na Delegacia da Freguesia do Ó, em São Paulo. Tínhamos no mesmo prédio a Guarda Civil e a Polícia Militar, a Força Pública, como era chamada na época. Trabalhavam no mesmo prédio o delegado titular, o comandante da companhia e o comandante do agrupamento da Guarda Municipal. Todos com autonomia, mas o delegado coordenava as operações conjuntas. Todos subordinavam-se de fato ao delegado de Polícia, como é o caso do delegado que não é formalmente subordinado ao juiz correcional, mas acata as decisões. Por isso, acho que a unificação é difícil, mas a integração é indispensável. Aliás, isso é comum nas pequenas cidades do Interior. O delegado é quem comanda as operações. Esse tipo de trabalho é difícil de ser aplicado nas grandes cidades, onde cada corporação ocupa seu espaço, um já passa a achar que não é subordinado ao outro, começa a guerra de poder e isso atrapalha bastante. Trabalhei em Taubaté, cidade que não é pequena, e não tivemos dificuldade alguma. Já em São Paulo é praticamente impossível. No Grande ABC é possível. Não com as facilidades do Interior, é claro. Temos excelente relacionamento com a Polícia Militar. O problema é a funcionalidade, porque temos diferentes formas de atuar. Entendo inclusive que o policial civil deveria atender às ocorrências, porque poderia facilitar as investigações. Uma viradinha que se dá num cadáver por um policial militar, adeus investigação! Costumo dizer que PM (Polícia Militar), PC (Polícia Civil) e MP (Ministério Público) formam uma coisa só. Não pode haver competição, medição de poder, nada disso.
João Gilberto Pacífico – Até parabenizo o secretário de Segurança Pública por colocar como um dos pontos principais de seu governo uma relação mais próxima entre Polícia Civil e Polícia Militar, inclusive ocupando o mesmo espaço físico. Minha experiência profissional como delegado, que tem origem em 1969, é de reconhecer os desperdícios e as sobreposições de funções entre as duas corporações, cujo objetivo é único, isto é, o combate à criminalidade. A Constituição Federal definiu as atribuições de cada segmento para dirimir dúvidas a respeito de comando. À Polícia Civil compete, como prioridade no exercício de suas funções, a responsabilidade da investigação. Não vejo conflito de atribuições com a Polícia Militar, cujas tarefas de prevenção e repressão também são constitucionais. Cabe à Polícia Civil investigar os casos.
Divulgou-se que dos 28 distritos policiais do Grande ABC, somente 11 têm plantões 24 horas e abrem aos sábados e domingos. Os demais funcionam apenas durante a semana, entre 9h e 18h30. Não se tem a impressão, com esses dados, de que estamos caindo na anedota de fechar o restaurante para o almoço, já que haveria estreita relação entre distritos policiais abertos e redução da criminalidade?
Pedro José Liberal – Não concordo. Das 11 delegacias de minha região, quatro abrem 24 horas. Nem poderia ser diferente. Se todas as delegacias de São Bernardo funcionassem 24 horas, a maioria fecharia sem ocorrência policial no período noturno. Além disso, não acredito que seja o plantão que inibe a criminalidade. Trocaria a extensão do horário de funcionamento por uma ou duas viaturas rondando naquela região diuturnamente.
João Gilberto Pacífico – Apenas cinco dos distritos policiais da Seccional de Santo André, que abrange também São Caetano, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, atuam diuturnamente, a qualquer hora. Com toda tranquilidade posso afirmar que, se todos os distritos trabalhassem 24 horas por dia e inclusive nos finais de semana, os benefícios seriam sentidos pela população. Os moradores de determinados bairros não precisariam se deslocar muito para ser atendidos, como ocorre hoje. A mudança também permitiria facilidades para as próprias autoridades policiais, que têm maior intimidade com as respectivas regiões geográficas em que atuam. Um policial sediado no 1º DP que atende a uma ocorrência do 6º DP, porque não há plantão de final de semana ou o expediente se encerra mais cedo durante a semana, sente dificuldade de relacionamento. Mas para isso tudo precisaria de mais 100 homens pelo menos, mais infra-estrutura, mais viaturas. Hoje não temos condições. Faltam delegados, carcereiros, investigadores.
Quais são as diferenças entre trabalhar onde o senhor esteve e no Grande ABC?
Pedro José Liberal – Osasco preserva condição interiorana superior a São Bernardo. Costumo dizer que São Bernardo tem algumas vantagens de cidade de Interior e todas as desvantagens de Capital, porque não há diferença entre a criminalidade de São Paulo e a daqui e de Diadema. Provavelmente pela proximidade geográfica, pela crença de que São Bernardo é uma cidade rica. Os policiais que me acompanharam na transferência de Osasco ficaram surpresos com a qualidade do bandido desta região. Em Osasco são raros os roubos com armamentos pesados; aqui o número é elevado. Os ladrões daqui são mais violentos, mais profissionalizados. Já na primeira vez que estive em São Bernardo, no final dos anos 70, o bandido daqui tinha know-how paulistano. Hoje está no mesmo nível de São Paulo e Rio de Janeiro, sem dúvida. Aqui eles são igualmente agressivos, armados e estruturados. Para combatê-los é preciso, entre outras coisas, contar com a colaboração da sociedade. Não adianta falar em Polícia Comunitária se apenas o policial se dá à comunidade. A comunidade também precisa se dar ao policial.
João Gilberto Pacífico – Vim de muitos anos de atuação em São Paulo e posso dizer que o bandido do Grande ABC não difere do bandido da Capital e do Rio de Janeiro. Não há diferença entre eles. O modus-operandi é o mesmo. Eles são igualmente perigosos.
Coronel Nogueira – A violência que se registra na região não se percebe em Osasco, de onde estou chegando. Já tivemos casos aqui em que quadrilhas ofereciam prêmios por cabeça de policiais. Quando houve o confronto para a prisão dos bandidos no Jardim Farina, em São Bernardo, o tiroteio foi impressionante. Três meliantes foram mortos porque não ofereceram outra alternativa. Nossos homens agiram como profissionais também depois do confronto, prestando socorros aos elementos. A região tem violência semelhante a de São Paulo. Precisamos evitar que armamentos pesados cheguem aos meliantes e os coloquem em vantagem em relação à Polícia Militar.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira