Entrevista Especial

A voz que
sabe ouvir

RAFAEL GUELTA - 05/07/1999

Santo André prepara-se para viver experiência única na cena política brasileira: a instituição do ouvidor público totalmente desvinculado do prefeito ou de partido político, escolhido por 17 entidades da sociedade civil. Vera Giangrande, ombudsman do Grupo Pão de Açúcar desde 1993, pioneira na função no varejo brasileiro, vê com otimismo a possibilidade de Santo André tornar-se modelo de qualidade de administração pública para o País. Basta que autoridades constituídas e representações da comunidade expressem desejo permanente de preservar a figura do ouvidor público de qualquer tipo de controle, sobretudo o de caráter político-partidário. E que esse desejo se manifeste com mais força ainda nos períodos pós-eleitorais de transição administrativa, quando ânimos exaltados e rivalidades políticas costumam aniquilar realizações do poder passado.


Premiada em 1998 com o PNBE de Cidadania, concedido pelo grupo Pensamento Nacional das Bases Empresariais na categoria melhores relações com o consumidor, Vera Giangrande deu inestimável colaboração à recuperação financeira do Grupo Pão de Açúcar, que passou por maus bocados no início da década. Ouvidora de queixas, elogios, observações e sugestões feitas por milhares de clientes da rede de supermercados, e crítica dos que se calam quando deveriam falar para o bem de todos, ela ajudou o Pão de Açúcar a mudar completamente a imagem junto ao consumidor.


Graças ao que ouviu do público e transmitiu aos diretores, a rede ganhou eficiência e agilidade no atendimento e deu vez a reivindicações aparentemente esdrúxulas, mas importantes para centenas de clientes, como a criação de cachorródromos — local fora das lojas onde consumidores deixam cães enquanto fazem compras. Nasceu também no seu departamento o Grupo de Representação do Consumidor, como se chama o projeto de empregar donas-de-casa como atendentes e consultoras de preços e produtos na rede.


Quem não gostaria de estar no lugar de Vera Giangrande, que recebe salário para ouvir queixas contra a empresa na qual trabalha e quase sempre apóia o reclamante? Ou então de gozar a liberdade de dizer ao patrão, sem risco de ser demitida, que tem muita coisa errada na empresa? Pensa assim, e se engana, quem acha que ser ombudsman é tão simples e elementar como acomodar-se numa mesa de escritório e passar o expediente com o telefone colado ao ouvido, rabiscando em folha de papel o que de bom ou ruim diz o interlocutor.


Vera Giangrande é cidadã com formação e sensibilidade para ser justa na medida certa. Inclusive para dizer ao cliente do Pão de Açúcar, quando é o caso, que a queixa não procede, que é ele que precisa mudar de atitude, não a rede.


Realizada como profissional de Relações Públicas, Vera Giangrande teve de fechar a própria empresa, em 1993, aos 63 anos de idade, para atender a convocação pessoal do empresário Abílio Diniz, presidente do Grupo Pão de Açúcar e um dos nomes mais influentes da cena empresarial brasileira. Vera garante que não encontrou resistências de diretores do Pão de Açúcar porque eles, tanto quanto ela, estão empenhados em aprimorar a qualidade do atendimento ao consumidor. Mas enfrentou, aí sim, dificuldades com funcionários impermeáveis a mudanças.


Confessa que chegou a propor até pequenos castigos a quem se recusava a mudar depois de ter recebido orientação de chefias. Mulher de fibra, Vera Giangrande tem acesso à sala de Abílio Diniz em qualquer horário do expediente. Se um dia tivesse de medir força com algum diretor do Pão de Açúcar, o que garante estar fora de cogitação, diz que sairia ganhando porque tem autoridade para isso.


Vera leva tão a sério a função que fez questão de participar, mês passado, de audiência pública na Câmara Municipal de Santo André sobre a importância da instituição do ouvidor público na cidade. Enfrentou com disposição o trânsito engarrafado de fim de tarde no percurso da sede do Pão de Açúcar, na avenida Brigadeiro Luiz Antonio, em São Paulo, até o Centro de Santo André. Chegou mais cedo do que a maioria dos demais debatedores, todos residentes no Grande ABC. A audiência, marcada para às 19h, começou com quase uma hora de atraso. É possível que se Santo André já tivesse ouvidor queixas seriam encaminhadas aos promotores da audiência, para que atrasos não se repetissem.


De que forma o ombudsman pode influir na melhoria da qualidade da Administração Pública?


Vera Giangrande – Da mesma maneira que ajuda e influi na iniciativa privada. Ou seja: colaborando com melhor prestação de serviços e com maior respeito ao cidadão, que é o principal alvo de toda Administração Pública. O contribuinte quer ser atendido com cortesia, rapidez e eficiência, tanto quanto na iniciativa particular.


Há fundamental diferença entre as formas de gerir empresas pública e privada. A pública sofre interferências políticas e está sempre de olho no eleitor. A privada participa de mercado competitivo e visa o lucro. Como deve se comportar o ombudsman na empresa pública?


Vera Giangrande – Se o serviço público estiver sendo usado, e mal usado, para fazer política, que nesse caso é politicagem, a ação do ombudsman será francamente prejudicada. Agora, não entendo que serviço público seja política. É serviço. Quando alguém vai a uma repartição pública tirar documento, não está atrás de política: quer serviço, quer ser tratado como cidadão, com cortesia, rapidez e eficiência. Não faz sentido o ombudsman agir na gestão política da coisa pública. Ele tem de agir no serviço que a coisa pública oferece.


O Grupo Pão de Açúcar deu uma guinada nos últimos anos. Reverteu situação financeira delicada e está em ritmo de pleno crescimento. De que forma a ação desenvolvida pela senhora ajudou nessa recuperação?


Vera Giangrande – A ação do ombudsman não muda nada. Ele age como provocador de mudanças, questionador permanente das operações, dos sistemas, das normas da empresa, da maneira como as coisas são feitas. Vou citar como exemplo o atendimento pessoal dos funcionários. O ombudsman ouve do consumidor uma queixa sobre a morosidade do atendimento. O que a empresa faz? Analisa o que é e obviamente chega à conclusão de que está faltando treinar e capacitar o funcionário para atender bem. É assim que as coisas vão mudando. Só que não muda porque o ombudsman diz mude assim, assado ou cozido. O papel do ombudsman é questionar. Ele pode até sugerir, se também for bom administrador. Não é proibido sugerir.


A ação do ombudsman deve ser unicamente pontual?


Vera Giangrande – O importante é a dinâmica com a qual o ombudsman colabora com a empresa, seja pública ou privada, apontando falhas que precisam ser corrigidas. Ele não deve ser pontual, pedindo castigo para este ou aquele funcionário que tenha agido de forma errada. Precisa ser mais abrangente na análise do problema, mostrando que a falha existe porque alguma coisa está errada no sistema como um todo.


Quando assumiu o cargo de ombudsman da rede Pão de Açúcar a senhora enfrentou algum tipo de resistência?


Vera Giangrande – Sim, é claro. Sempre existem pessoas que acham que as queixas dos consumidores são críticas de caráter pessoal, contra o trabalho do departamento, da pessoa, do atendente ou da loja.


E no âmbito da diretoria, a senhora também enfrentou problemas?


Vera Giangrande – Não, no âmbito da diretoria não. Eles estavam todos absolutamente conscientes do que queriam quando apoiaram a idéia da criação do ombudsman. Eles queriam crítica e questionamento. Muitas vezes fui questionada sobre por que não estava fazendo mais críticas.


Quando começou a atuar, os consumidores se queixavam mais do quê?


Vera Giangrande – O primeiro quesito quando assumi o cargo, em 1993, era atendimento. 28% das reclamações diziam respeito ao atendimento do pessoal do Pão de Açúcar.


Que tipo de atendimento?


Vera Giangrande – O atendimento do dia-a-dia, no caixa, no açougue, na peixaria, no bazar. O atendimento feito por pessoas, coisas como dizer boa tarde, saber receber um cheque, cortar um quilo de carne ou apanhar um queijo no estoque. Hoje as queixas contra atendimento caíram para apenas 8%.


Quais são as principais queixas agora?


Vera Giangrande – Os consumidores se queixam mais de produtos. Produtos perecíveis como frutas, verduras, legumes, carnes, peixes e aves são mais questionados porque são mais suscetíveis de sofrer com a ação do tempo ou devido à forma de estocagem. É muito importante que os consumidores estejam sempre atentos à qualidade desses produtos e aos prazos de validade.


Tem alguma marca que recebe maior número de queixas?


Vera Giangrande – Não, as queixas são mais voltadas mesmo para os produtos.


Que melhorias o ombudsman proporcionou para o Pão de Açúcar?


Vera Giangrande – O recrutamento melhorou fantasticamente. Hoje se recruta pessoal muito mais qualificado e mais motivado a trabalhar no varejo. Além da seleção, melhoraram os treinamentos operacionais e os cursos. Hoje o Pão de Açúcar ministra 64 cursos diferentes, nos quais os funcionários podem se inscrever dependendo de suas disponibilidades. Tem até o Telecurso Segundo Grau. Todos são dentro das lojas, nos refeitórios. Os funcionários trabalham oito horas e depois do expediente, mesmo cansados, ficam mais duas horas assistindo aos cursos. Com isso, melhoram o desempenho profissional e promovem a satisfação do cliente.


Qual a importância para a empresa do olhar externo do ombudsman?


Vera Giangrande – No momento em que se tem uma crítica de fora, e que se começa a analisar com olhos de fora o seu serviço, seja público ou privado, a empresa começa a melhorar.


Quais os tipos mais comuns de consumidores que a procuram?


Vera Giangrande – Existem dois. Um é o irado, o cliente que acabou de sair da loja e sente que foi ofendido ou não foi atendido corretamente, ou então acha que determinado produto não está bom. Quando esse consumidor percebe que está sendo ouvido com toda a atenção e dizemos a ele uma frase mágica — “Queremos resolver o seu problema” — ele baixa o tom de voz e a conversa fica agradável. O outro tipo de cliente é aquele que ama a loja, tem uma relação emocional com a loja. Ele começa dizendo “Eu quero fazer uma queixa da minha loja”.


A senhora diz ao consumidor que concorda com a queixa dele?


Vera Giangrande – É lógico, sou paga para isso. No dia em que começar a colocar panos quentes, o Pão de Açúcar me manda embora. A empresa quer um ombudsman ativo.


Qual é a vantagem da empresa que tem ombudsman sobre a que não tem?


Vera Giangrande – Ah, é enorme. A empresa que tem ouve o consumidor todos os dias sobre todos os assuntos e serviços. Além de fazer pesquisas frequentes com usuários das lojas, o Pão de Açúcar dispõe todos os dias de uma realimentação de dados sobre todas as coisas que acontecem na rede.


O que é mais importante para exercer o cargo de ombudsman: conhecer leis de defesa do consumidor ou ser pessoa de bom senso?


Vera Giangrande – Bom senso é um caminho muito simplório e fácil. Não vamos reduzir competência, inteligência, conhecimento, senso ético e senso de justiça a bom senso. É como aquele pessoal que pede para você ter jogo de cintura. Eu não gosto desse tipo de linguagem, porque você reduz as coisas a uma mínima dimensão. O que precisa para ser jornalista? É jeitinho para escrever ou competência para escrever bem? É competência, conhecimento, saber buscar a notícia, fazer boas perguntas. Não vamos reduzir as coisas a uma mínima dimensão. Para ser um bom ombudsman tem de ter perfil de pessoa muito séria.


E qual é esse perfil?


Vera Giangrande – Primeiro: tem de saber ouvir, com isenção de ânimo, sem idéias pré-concebidas ou preconceituosas. Segundo: precisa ter o espírito de justiça que têm as pessoas que querem ir fundo em cada história. Tem de buscar sempre os dois lados da moeda, ouvir o consumidor e também ouvir o outro lado. Terceiro: tem de saber questionar sem ofender brios pessoais, sem magoar ou humilhar. Tem de saber castigar sem humilhar, porque o ombudsman às vezes sugere o castigo. E para sugerir o castigo tem de ser ético e dizer: “Fulano, vou sugerir um castigo para você”. As normas internacionais do ombudsman sugerem que se castigue quem não quer se corrigir. Por fim, é preciso ser paciente para ouvir e impaciente para agir. Nunca se deve deixar para o dia seguinte a reparação de um erro. Tem de ser sempre para já.


Qual foi o caso mais complicado com que a senhora se deparou?


Vera Giangrande – Difícil nenhum caso é. Às vezes complica porque a pessoa que reclama não acredita que você vá resolver. Então ela não conta a história inteira, você tem de telefonar de novo porque foram omitidos detalhes muito importantes. Também tem o caso da versão deturpada, que atrapalha. Mas toda vez que se retoma o contato com o reclamante e se expõe a posição da loja, ele se corrige e diz coisas como: “Quando eu falei com a senhora, estava bravo e nervoso”. Na realidade, os casos se complicam quando o primeiro atendimento é muito mal feito. Suponha que a pessoa foi à loja comprar determinado produto, recebeu mau atendimento, reclamou e não foi ouvida. Quando isso chega ao ombudsman fica difícil resolver porque o cliente não acredita mais em solução.


A senhora pode dar exemplo de caso complicado?


Vera Giangrande – Temos um que é típico. A pessoa paga a compra com cheque pré-datado e depois telefona informando que está para vencer o prazo do cheque e não pode pagar no dia do vencimento. Pede então para que resgatemos o cheque enquanto providencia uma visita à loja, para trocar o documento por dinheiro. É um cliente, uma pessoa honesta que não quer ficar inadimplente. Só que o Pão de Açúcar recebe diariamente milhares de cheques e é muito complicado localizar o cheque que, a essa altura, está de posse de empresas depositárias. Realizamos uma verdadeira operação de busca.


A senhora já propôs ao Pão de Açúcar a adoção de algum sistema informatizado que facilite a localização de cheques?


Vera Giangrande – Não dá, por causa do volume. Acredito que são depositados diariamente acima de 50 mil cheques nos caixas das lojas da rede. É um volume brutal. Seria até possível criar um sistema informatizado, mas o custo não compensa. De toda forma, o lado bom é que sempre conseguimos resolver o problema do cliente, localizando o cheque e aguardando a troca por dinheiro.


Há limites na filosofia do tudo pelo cliente?


Vera Giangrande – Existem normas. Como os caixas especiais para idosos, deficientes físicos, gestantes e senhoras com crianças pequenas. Aí chega um cidadão que diz que está com pressa e quer entrar naquela fila, para passar direto naquele caixa. Não pode. Assim como ele tem direito de ser atendido, aquelas pessoas que estão na fila também têm. Não adianta se queixar.


Que tipo de queixa descabida costuma chegar até a senhora?


Vera Giangrande – São comuns os casos de clientes, homens e mulheres, que deixam bolsa ou carteira com dinheiro no carrinho de compras. Eles deixam o carrinho no corredor, vão até a gôndola buscar produtos e quando voltam se dão conta de que a bolsa ou a carteira não está mais no carrinho, o ladrão surrupiou. Eles querem que a loja prenda o ladrão, mas não podemos fazer isso. Não temos direito de polícia, não podemos revistar pessoas, não podemos sequer suspeitar.


A senhora fala diariamente com o empresário Abílio Diniz. Como é esse contato?


Vera Giangrande – É extremamente informal e rápido. Ele é uma pessoa muito objetiva. Me diz: “Resolva, você tem autoridade, resolva”.


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