Entrevista Especial

A solidariedade
está em baixa

MALU MARCOCCIA - 05/03/2000

Nunca, nos 17 anos de atividades, a Febes (Federação do Bem-Estar Social de São Bernardo) esteve com o caixa tão zerado. A situação de penúria de quem carrega o distintivo de maior instituição benemerente da região, com 65 entidades filiadas, só se assemelha ao bolso raso da população e à crise que emagreceu o faturamento das empresas, acredita a presidente sempre otimista, Dirce Gasperini Pereira. “Acho que as pessoas estão também em crise existencial, com o lado humano abalado” — teoriza essa incansável dona-de-casa de 65 anos, que há 32 se dedica às causas sociais no Município.


É difícil não vê-la ao telefone disparando pedidos de doações e patrocínio, mesmo que nos últimos dois anos a esmagadora maioria das respostas tenha sido não. Em 1998, a tradicional Feira da Amizade da Febes, por exemplo, não se realizou por falta de suporte financeiro. A mão econômica dos empresários de São Bernardo pôde ser também verificada na baixa adesão ao movimento da Câmara Regional Criança e Adolescente, Prioridade 1. O prefeito Maurício Soares amealhou não mais que R$ 78,5 mil em 1999 em doações equivalentes a 1% do Imposto de Renda, ou seja, em uma arrecadação incentivada.


Mas Dirce Gasperini não desiste. “Estamos sobrevivendo de pequenos eventos” — aponta ela, que não esmorece sequer diante da concorrência emergente das ONGs (Organizações Não-Governamentais) e da propalada empresa-cidadã. As ONGs ocupam cada vez mais espaço na organização social das comunidades, enquanto a disposição das empresas de incorporar a responsabilidade social no seu cotidiano fez surgir recentemente o Instituto Ethos.


Quantos anos tem a Febes?


Dirce Gasperini Pereira – A sede foi formada em 1983. Um grupo de voluntários se uniu a outros grupos que já trabalhavam com entidades em São Bernardo e decidiram formar a Federação como uma sociedade civil. Como essas entidades precisavam de uma assessoria formal, que cuidasse da contabilidade e da própria divulgação das ações, criaram então a Febes para dar esse suporte. Em 1986, foi registrada formalmente na legislação dos sindicatos, com eleições a cada três anos.


Quais eram essas entidades voluntárias? Lions, Rotarys, orfanatos, creches…


Dirce Gasperini – Desse grupo pioneiro faziam parte pessoas do Lions, mas eram mais de entidades de São Bernardo. A maioria dos membros era da comunidade local e resolveu criar a Federação. Como disse, era tudo informal e essas entidades tinham problemas, às vezes, com documentação para montar bazares, participar de feiras e fazer bingos beneficentes. A Febes começou ajudando na área de documentação e depois na própria orientação sobre como fazer benemerência: depois de registrada, a entidade contratou assistente social, pedagoga, contador e secretária. Das 10 iniciais, hoje administramos 65 filiadas, que se dedicam desde ao grupo de aidéticos Amor à Vida até a asilos, orfanatos, deficientes físicos e visuais, famílias carentes e creches.


Qual a quantidade de gente beneficiada?


Dirce Gasperini – Acredito que cada creche atende a mais de 40 crianças, e nós temos 17 creches. Os três asilos devem reunir uns 150 idosos e os três orfanatos estão perto de abrigar 90 crianças. A gente ainda não fez levantamento detalhado porque há muitas entidades que trabalham com famílias carentes, outras que ajudam em casos mais episódicos como uma enchente, tem entidades espíritas que fazem parte do trabalho na comunidade, por meio de grupos, e outra parte na própria entidade, individualmente. É muita gente.


Nunca houve curiosidade de medir esse universo? Com o desemprego que assola o Grande ABC e o crescimento recorde da população favelada, sobretudo de São Bernardo, o esforço de vocês deve ter multiplicado.


Dirce Gasperini – Este ano pretendo fazer acompanhamento mais pormenorizado. Planejamos fazer coisas diferentes, já que a maioria das entidades de São Bernardo é filiada a nós.


Como é que vocês amparam as ações?


Dirce Gasperini – Sobrevivemos à base de eventos. Não temos ajuda governamental, a não ser o prédio que a Prefeitura nos cede no Bairro Nova Petrópolis, o que nos poupa de impostos, água, luz e segurança noturno. Os cinco funcionários são custeados por nós e alguns voluntários também nos ajudam em trabalhos burocráticos. Um diretor da Febes que é advogado, por exemplo, auxilia em algumas questões jurídicas voluntariamente. Está difícil. Temos gastos mensais em torno de R$ 7 mil com telefone, correspondências, infra-estrutura material e cursos e palestras para coordenadores de creche, por exemplo. Como sobrevivemos só de eventos, está muito difícil manter isso aqui.


Por quê? Numa época em que se propaga o capital social nas empresas e o espírito de colaboração entre pessoas, a solidariedade está em baixa?


Dirce Gasperini – A Febes sobreviveu durante muitos anos só com a Feira da Amizade, que ganhou fama e nos dava sustentação anual de custos entre oito e 10 meses. Quando o dinheiro estava quase acabando, vinha nova feira e íamos tocando. Mas acho que as feiras se tornaram um pouco desgastantes pela quantidade de realizações. Muitas entidades dispersas fazem exposições subsequentes. A da Amizade, em São Bernardo, primeiro perdeu um espaço nobre, a Vera Cruz, que está em reforma. Segundo, acho que perdeu também o foco no mix. São artigos diversos, expositores que trabalham com um pouco de cada produto.


O público não tem mais interesse e os patrocinadores estão escassos. Pela primeira vez em 12 anos, deixamos de fazer a Feira da Amizade em 1998. Voltamos no ano passado, na 13ª edição, no Espaço Redenção, ainda desconhecido do grande público e sem a visibilidade que tem a Vera Cruz.


O que é um grande público?


Dirce Gasperini – A Feira da Amizade, programada geralmente nos meses de outubro, sempre atraiu de 40 mil a 60 mil pessoas. Já chegamos a fazer R$ 100 mil em receitas. A edição de 1999, apesar da cobertura da Imprensa e das pessoas nos ajudando na divulgação, não trouxe metade disso. Creio que foram cerca de 20 mil pessoas. Acredito também que o desemprego e a crise estejam fazendo as pessoas e as empresas ficar mais econômicas.


Tenho cerca de 200 nomes de organizações cadastradas e pessoas que já colaboraram conosco, para as quais mandamos ofícios, convites para patrocínio, cartas sobre nossos trabalhos para que nos façam doações materiais ou de recursos. Só de mala-direta foram mais de 500 no ano passado. Nem 10% me deu retorno e, mesmo assim, a negativa foi unânime. Nunca passamos por período de migalhas como em 98 e 99. Tive muita compreensão dos funcionários, pois chegamos a atrasar salários por até três meses.


O apelo à caridade já não sensibiliza tanto ou não estariam pesando nesse refluxo iniciativas como a da empresa-cidadã, que desenvolve os próprios projetos sociais, além do surgimento de ONGs (Organizações Não-Governamentais) diversas. Segundo o Ministério da Fazenda, há cerca de 250 mil ONGs cadastradas no Brasil. São também trabalhos benemerentes e comunitários.


Dirce Gasperini – Isso pesou, sem dúvida. A justificativa sobretudo das empresas, nos últimos tempos, é de que estão ajudando outras entidades ou movimentos. Muitas dizem claramente que não têm disponibilidade de caixa. Só para a última Feira da Amizade, fiz 15 contatos em busca de patrocínio. Não consegui nenhum. O único apoio veio da Brinquedos Bandeirantes, que montou um playground e cedeu brinquedos para sorteios. De resto, tivemos colaboração da Prefeitura com a cessão do Espaço Redenção, da Imprensa com a divulgação e da Novelli com seis outdoors.


Nos últimos eventos as pessoas estavam reclamando até de pagar R$ 2 pela entrada da feira e R$ 3 pelo estacionamento, mesmo sabendo tratar-se de filantropia. Tem bazares de filiadas para os quais as mulheres fazem peças de crochê durante metade do ano e, no evento, arrecadam R$ 5 mil ou R$ 6 mil, que acaba sendo o orçamento anual.


Como vocês tentam sensibilizar uma empresa para o papel social?


Dirce Gasperini – Primeiro, mostrando o que é a Febes. Nessa divulgação, graças a Deus, a mídia tem ajudado com matérias jornalísticas. Mesmo assim, muitos acham que, por sermos uma Federação, temos ajuda da Prefeitura e das filiadas, mal sabendo que nenhum desses canais injeta recursos. Depois, esclarecemos que não se trata exclusivamente de doação em dinheiro. Pode ser em cestas básicas ou bens diversos, porque fazemos bingos, leilões, chás, seja o que for para complementar a receita que não temos mais da Feira da Amizade.


As filiadas também estão passando por dificuldades. Trazem isso às reuniões e assembléias. Faltam 20 quilos de arroz em uma, remédio em outra. Então, pego o telefone e fico ligando. Ponho gasolina do meu bolso e corro atrás de donativos. Deus tem sido bom. Temos nos safado dos apertos. Tem uma pessoa dentro da Multibrás que conhece nosso trabalho e outro dia ligou avisando que nos estava disponibilizando uma série de móveis de escritório usados. Liguei imediatamente para as entidades para apurar quem precisava mais. Acabamos ajudando 12. No final do ano, um senhor doou umas bonecas em consignação, a preço de custo, para vender num chá beneficente de Natal. Tem sido um trabalho de formiguinha.


Não estaria faltando à Feira da Amizade algo mais profissional, como uma atração artística para chamar o público?


Dirce Gasperini – Estamos pensando em algo assim. A Rádio Capital, de São Paulo, disse que poderia nos ajudar a montar um show. Na última feira até que conseguimos trazer voluntariamente o cantor Donizete, mas não lotamos o espaço, como imaginávamos. Tem outro fator que também acredito estar ajudando a diminuir o público nos eventos: a violência. As pessoas não saem mais de casa como antes. Trabalho com assistência social há 32 anos, 18 dos quais na Oficina Santa Rita, e nunca vi tão pouca participação, inclusive de novos voluntários. Acho que a crise não é só econômica. É também existencial.


O homem está cheio de dúvidas quanto à vida, à sua condição, e isso afeta o lado humano — seja como caridade, seja como doação de si próprio. Há 18 anos trabalham quase que as mesmas pessoas na Oficina Santa Rita. Os jovens estão totalmente alheios, o que é uma pena. A nova geração tem mais ideias e recursos que minha geração. Muito poucos estão se abrindo à filantropia.


Há entidades que ameaçam fechar também por falta de voluntários, como ocorreu recentemente com uma que trabalhava com enxovais de bebê e receitas médicas. Eram cerca de 20 pessoas, que foram envelhecendo, saindo porque foram arrumando outras atividades, muitas mulheres tendo de trabalhar fora para ajudar em casa…


Falando ainda em profissionalização, não seria o caso de, mesmo por meio de quantia pequena, começar a arrecadar mensalidades das 65 entidades filiadas?


Dirce Gasperini – Também pensamos nisso. As entidades cobram pequena taxa de suas sócias e nós não cobramos nada das filiadas. Mas a penúria é geral, por isso não avançamos na discussão. Na Feira de Móveis deste ano, a Febes teve de custear sozinha R$ 15 mil de um gerador porque o Espaço Redenção não comportava sobrecarga de energia elétrica. A Prefeitura nos cedeu uma área, dividida entre nossas filiadas que quiseram expor, mas nenhuma tinha condições de ratear o custo do equipamento. Esse gerador foi um espinho para nós, porque significou dois meses do orçamento da Febes, já que a pouca receita das expositoras ficou para elas.


Como a família vê seu trabalho?


Dirce Gasperini – Às vezes acha minha dedicação exagerada, mas nunca descuidei de ninguém. Meu neto de 19 anos arrancou um dente nestes dias e liguei para saber se estava tudo bem. Venho todos os dias após o almoço e não tenho horário para voltar. Meus três filhos já casaram e desde pequenos acompanham minha batalha. Fazia todas as tarefas de casa pela manhã, deixava-os na escola e corria para minha entidade. Sou muito religiosa e, há 40 anos em São Bernardo, fui acompanhando o crescimento da população carente.


No Bairro Demarchi, onde sempre morei, durante anos comandei a diretora social da Sociedade Amigos de Bairro. Passei por várias entidades, até que me identifiquei com a Oficina Santa Rita e há cinco anos abracei a causa da Federação. Tem dias que estou aqui logo cedo e também aos sábados e domingos, se tiver eventos. Pelo estatuto, anualmente a diretoria tem de visitar todas as entidades. Vejo como estão os trabalhos, o que está faltando e ajudamos a organizar as agendas de realizações, muitas feitas em conjunto com a Febes.


Qual o perfil de um voluntário? Há um conceito segundo o qual mulheres dondocas e artistas só fazem benemerência quando precisam elevar o ibope pessoal.


Dirce Gasperini – (Risos) Não é bem assim. Diria que a maioria, uns 80%, é mulher e a quase totalidade, adulta. Na diretoria da Febes, os sete cargos são ocupados por mulheres. Só nos conselhos Administrativo e Fiscal temos homens. Talvez porque a mulher tenha mais disponibilidade que os maridos, já que a maioria dos homens trabalha fora. Talvez porque a mulher tem a virtude de se doar mais, já que há muitas voluntárias que se aposentam no emprego formal e passam a se dedicar à filantropia. E a mulher que o faz, mesmo sendo bem-nascida, não tem fricote: põe a mão na massa como nós.


Temos muitas esposas de políticos e de homens públicos, por exemplo, que até fazem questão de não aparecer. Chegam com a proposta de trabalhar. Se precisar, servem café e lavam pratos, algo que não fazem em casa. Não temos tido problemas de exibicionismos por aqui. Mesmo porque, nosso trabalho é apolítico e independe de crença religiosa.


É até bom que essas esposas de políticos vejam o gigantismo do trabalho da Febes. Afinal, muitas entidades executam tarefas sociais que competem ao Poder Público, não?


Dirce Gasperini – Veja só o crescimento das filiadas: de 10, temos hoje 65. Isso dá ideia de como a população excluída e carente explodiu em São Bernardo e fez aumentar os grupos de assistência. A Febes está precisando urgentemente de uma psicopedagoga e de uma coordenadora técnica para orientar as assistentes sociais que trabalham fora, mas não tem condições de custear essas profissionais. Precisamos também de um carro para dar conta das visitas. Por enquanto, saio com meu próprio veículo e assumo o combustível.


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