A Câmara Regional ainda não pegou no breu, o Consórcio Intermunicipal de Prefeitos avançou, mas ainda precisa de novos saltos, e o Fórum da Cidadania anda rateando? Nada disso deve ser encarado com desespero e desmotivação. É o que se deduz dos estudos preliminares de Márcia de Paula Leite, doutora em Sociologia pela USP (Universidade de São Paulo) e professora da especialidade na Unicamp (Universidade de Campinas), para quem as dificuldades enfrentadas pelo Grande ABC não diferem do que existe no Brasil colonizado pelos portugueses há 500 anos.
Nesta entrevista feita através de e-mail, a especialista em Sociologia do Trabalho e autora de vários livros e artigos sobre o tema, entre os quais O Futuro do Trabalho, revela pesquisas sobre as transformações sociais e econômicas que fazem do Grande ABC laboratório de aplicação de critérios de regionalidade pouco comum no País.
Márcia Leite esteve em Santo André em maio, quando participou de debate sobre regionalidade promovido pela Agência de Desenvolvimento Econômico, braço estratégico da Câmara do Grande ABC. Celso Daniel, de Santo André, que preside a ADE, foi o único prefeito da região a participar. Ele se juntou à platéia como um dos perto de 40 convidados. Cópias de sucinto relatório da professora foram distribuídas dois dias antes pelo secretário-executivo da Agência, José Carlos Paim.
É provável que o aprofundamento dos estudos da professora, que reside em São Paulo, contemple uma fonte de informações até então desconhecida dela: os 10 anos de prospecções de LivreMercado. Márcia Leite recebeu vários exemplares de edições que analisam de forma inédita o comportamento de agentes econômicos, sociais e culturais da região industrial mais importante do País.
Contrariamente a muitos acadêmicos que se julgam detentores do monopólio da informação, Márcia Leite repetiu nos contatos subsequentes à apresentação-debate em Santo André, em telefonemas e troca de e-mails, a receptividade de quem reconhece as dificuldades de avaliar uma região tão complexa como o Grande ABC.
Para quem observa de fora, como a senhora, o Grande ABC transmite a impressão de que reúne a chamada densidade institucional, que pode ser traduzida como a capacidade dos atores econômicos, governamentais e sociais de oxigenarem ações regionais. Se lhe for colocada uma realidade diferente, de que no passado o Grande ABC foi extremamente displicente com a amarração integrativa e só mais recentemente houve avanços, com a criação do Consórcio de Prefeitos, da Câmara Regional e do Fórum da Cidadania, qual é sua avaliação?
Márcia Leite – Tendo a achar que a dificuldade de organização da sociedade civil não é realidade apenas do ABC. Essa dificuldade me parece um problema nacional e tem a ver com toda nossa história pregressa, desde o período da colonização. É nesse contexto que a realidade do ABC se destaca nos últimos anos, na medida em que (também por uma situação histórica particular) foi se formando e se consolidando na região um conjunto de movimentos e organizações da sociedade que hoje apontam para uma capacidade de integração bastante peculiar, que não pode ser desprezada.
Isso não significa dizer que estão dadas todas as condições para que a região enfrente exitosamente o conjunto de problemas com que vem se deparando. O que deve ser destacado é que hoje apresenta condições que podem ser aproveitadas nesse sentido, talvez mais do que qualquer outra região do País. Agora, se os atores sociais serão capazes de se aproveitar dessa situação, é outra questão.
Tenho a impressão de que há algumas conquistas importantes que não podem ser ignoradas, casos da criação da Agência de Desenvolvimento, o levantamento de um conjunto de dados e diagnósticos econômicos e sociais, as obras rodoviárias, a construção dos piscinões, a proposta de criação do Polo de Difusão Tecnológica e o Planejamento Estratégico Regional. Evidentemente, isso não significa que os problemas estejam todos equacionados e sendo solucionados.
A Câmara ainda enfrenta uma série de problemas muito sérios que vão desde a integração efetiva de empresas, de importantes setores econômicos e de governos locais até dificuldades financeiras e a política industrial nacional (ou a falta de), só para lembrar alguns dos mais complicados.
Há no Estado de São Paulo algum outro exemplo de regionalização institucional e operacional que o Grande ABC desenvolve ou o que se observa são simples tentativas ainda pouco aprofundadas?
Márcia Leite – Não conheço no Estado de São Paulo outro exemplo de regionalização institucional e operacional como o do ABC e acredito que efetivamente não exista. Há, entretanto, alguns exemplos interessantes de consórcios intermunicipais de saúde e de cultura. Em Minas Gerais há o Consórcio Intermunicipal do Alto São Francisco, que reúne 27 municípios da região no desenvolvimento de atividades voltadas à saúde e que vem sendo muito exitoso em seus objetivos.
Como interpreta o fato de que somente com os atuais prefeitos, eleitos há três anos e meio, o Grande ABC criou nos organogramas municipais as chamadas secretarias de Desenvolvimento Econômico? Não lhe parece que essa resposta tardia ao esvaziamento econômico regional explica, mais que qualquer outro indicador, a extrema falta de visão estratégica que marcou os administradores públicos ao longo do período de desenvolvimento industrial?
Márcia Leite – Bem, não conheço a história dos governos municipais do ABC em profundidade e não tinha conhecimento dessa informação. Se, de fato, as secretarias de Desenvolvimento Econômico são tão recentes, é claro que houve dificuldade de visão estratégica por parte dos governos municipais. Mas essa análise tem de levar em conta também a situação particular da região, que é o fato de ser realmente uma região no sentido forte do termo, uma região com identidade própria, o que faz com que os processos que enfrenta sejam difíceis de serem solucionados pelos governos municipais tomados isoladamente.
Essa consciência não é tão fácil de ser adquirida, especialmente para uma região que teve passado tão glorioso e por tanto tempo, até anos muito recentes. Ou seja, até 20 anos atrás, quando a economia nacional começou a derrapar. Por outro lado, não se pode esquecer que tínhamos uma tradição muito forte, sem dúvida uma das mais fortes e exitosas de toda a América Latina, de esperar do Estado federal, com sua longa trajetória de desenvolvimentismo, a resolução de quase todos os problemas econômicos. Foi necessário que a crise se aprofundasse para que os governos locais, assim como a sociedade civil, se dessem conta de que era chegada a hora de intervir de maneira mais efetiva, antes que a situação se tornasse irreversível.
O Estado brasileiro, como o latino-americano de maneira geral, sempre funcionou muito mal. O acúmulo de fracassos e de locupletações está se expressando fortemente nos últimos anos, coincidindo com a aplicação das teorias do Consenso de Washington. Não lhe parece que, de maneira geral, os estudiosos que destilam justas imprecações contra o neoliberalismo esquecem-se de que as políticas econômicas ditadas pelo FMI e tão execradas só vicejam onde o Estado permeou atuação com atividades puramente estatais e não públicas? Não seria mais conveniente escorraçar o capitalismo financeiro e comercial exacerbado, como se faz permanentemente, sem se esquecer, entretanto, do Estado imprevidente e malversador?
Márcia Leite – Novamente diria que é difícil fazer análise sobre o Estado sem pensar historicamente. Se é fato que o Estado brasileiro, assim como os demais Estados latino-americanos, sempre abusou do populismo, de políticas corruptas, da malversação de fundos e da privatização das finanças públicas pelos setores mais poderosos da sociedade, há que se considerar, por outro lado, que o Estado não foi só isso. Especialmente no caso brasileiro, um pouco diferente do resto da América Latina nesse sentido, o Estado teve papel fundamental na promoção do desenvolvimento econômico, o que nos transformou em quatro décadas (de 1930 a 1970) num dos 10 países mais industrializados do mundo, permitindo a criação de um parque industrial moderno e integrado.
É verdade que esse processo foi sempre acompanhado por uma distância muito grande entre o desenvolvimento econômico e o social. Embora as misérias sociais continuassem se acumulando, com muita concentração da terra e da renda, é inegável que o próprio desenvolvimento econômico acelerado foi inclusivo em relação a amplos setores da população, que apesar de ficarem sempre com a fatia menor do bolo, estiveram presentes na festa. Ou seja, tiveram acesso importante às benesses do desenvolvimento, ainda que em dimensões muito pequenas quando comparadas com a minoria de privilegiados que sempre abocanhou a maior parte do bolo.
O problema é que, hoje, ao seguir o Consenso de Washington, o Estado adota medidas extremamente excludentes, seja em relação aos trabalhadores, seja inclusive em relação a uma parte importante do capital, beneficiando quase que exclusivamente o grande capital multinacional, especialmente o capital financeiro. Nesse sentido, tendo a concordar com a análise que LivreMercado faz de que essas políticas tendem a vicejar onde o Estado atuou historicamente concedendo muito pouco espírito público às suas atividades.
Mas não concordo que os críticos das políticas estatais em vigência tendam a se esquecer do caráter malversador e imprevidente do Estado. Pelo contrário, acho que não só as análises de economistas de oposição de peso como Maria da Conceição Tavares, Aloizio Mercadante, José Luís Fiori, Luiz Gonzaga Belluzo, Wilson Cano e muitos outros têm insistido nesse ponto, como a própria sociedade vem se conscientizando disso. Uma expressão evidente dessa conscientização tem sido a cassação e prisão de políticos, altos funcionários do governo e atualmente até banqueiros corruptos, em função da difusão de um sentimento anticorrupção que tem recrudescido muito desde o impeachment de Fernando Collor.
O modelo de regiões metropolitanas produzido pelo regime militar jamais funcionou. A prova prática de que tudo não passou de proposição enfiada goela abaixo dos municípios é a própria realidade caótica de todas as regiões metropolitanas, principalmente de São Paulo. Por que, então, se assiste passivamente à manutenção legal desse arcabouço comprovadamente inútil? Por que nossos parlamentares federais são tão omissos na construção de uma rede mais segura de desenvolvimento regional?
Márcia Leite – Concordo inteiramente no sentido de que o modelo de regiões metropolitanas está falido e que a questão do desenvolvimento regional parece não ter chegado até o momento ao Congresso, o que acaba dificultando a mudança do arcabouço legal. Tenho a impressão de que a própria sociedade, os próprios municípios que hoje estão se pensando mais em termos regionais, só se deram conta disso muito recentemente, como coloquei anteriormente. Nesse sentido, considero que cabe também à sociedade organizada cobrar isso dos parlamentares, colocar essa questão na pauta política, mobilizar-se mais em função desse tema. Não há dúvida de que essa movimentação é fundamental para que as coisas mudem.
Corremos o risco de, num futuro não tão distante quanto parece, vivermos realidades complexas em novas regiões metropolitanas paulistas, no caso envolvendo grupos de municípios que se vêm desenvolvendo grandemente, casos específicos da Grande Campinas e da Grande São José dos Campos? O que fazer para evitar que pontos estratégicos do Interior do Estado venham a ser contaminados pelos problemas que abateram a Grande São Paulo em produtividade e em qualidade de vida?
Márcia Leite – Acho quase inevitável que os problemas que enfrentamos atualmente na Grande São Paulo se estendam a outras regiões metropolitanas se a política econômica e social do País não mudar rapidamente. Problemas como desemprego e aumento do emprego precário e mal pago, falta de moradia, serviços de saúde e educação deficientes, além da violência urbana, têm tudo a ver com o modelo econômico e as políticas sociais que são implementadas pelo governo federal e suas repercussões no nível local.
Por um lado, a inserção no mundo globalizado de forma absolutamente descuidada em relação a todo o esforço anterior de construção de um parque industrial moderno e integrado, que vem desmontando setores inteiros de nossa indústria como o de autopeças, de máquinas e de calçados, tem efeitos muito perversos no que se refere ao emprego.
Por outro lado, a pouca atenção à área social, com a priorização do pagamento da dívida externa, não poderia produzir coisa muito diferente do que as mazelas sociais. O efeito excludente e altamente concentrador da renda que esse modelo possui é responsável não só pelas altas taxas de violência urbana, como pelo que chamaria de esgarçamento do tecido social, que se expressa na enorme quantidade de pessoas (entre as quais se inclui alta porcentagem de jovens) marginalizadas, desesperançadas, drogadas etc.
Não quero dizer com isso que os governos municipais não têm nada a fazer diante desse quadro. Em primeiro lugar, seria necessário destacar a importância da criação de estratégias regionais. Devido ao rápido processo de urbanização que o País viveu nas últimas décadas, há enorme integração entre a vida dos municípios, o que faz com que já não se possa intervir adequadamente sem se pensar em regiões. De outro lado, haveria que pensar que as políticas regionais, ao invés de serem inócuas, adquirem ainda mais importância nesse quadro difícil. Se há algumas questões que dependem efetivamente da intervenção do governo federal, acho que cabe aos governos locais a compreensão não só de que sua ação é fundamental para mitigar os efeitos perversos das políticas centrais, como de que as políticas locais, especialmente as regionais, têm a possibilidade de fazer com que o impacto das ações federais em nível municipal seja muito diferente do que se não houvesse sua intervenção.
Que diferenças fundamentais a senhora estabelece, considerando-se o histórico de administração pública no Brasil, entre os representantes tradicionais da direita e os esquerdistas que assumiram prefeituras e governos estaduais nos últimos tempos? Seria possível construir uma linha divisória tipificando na prática um governo de direita e de esquerda, ou, na realidade, quando no poder, os dois espectros se confundem?
Márcia Leite – Acho muito difícil falar em direita e esquerda hoje no Brasil, assim como no resto do mundo. Não é fácil nem mesmo se utilizarmos a conceituação do economista Norberto Bobbio — que tentou desvincular os termos direita e esquerda da questão do apoio ao capitalismo e ao comunismo para propor que a direita incorporaria aqueles setores que defendem a atual ordem social e a esquerda seria formada por aqueles que lutam pela sua transformação, buscando sempre uma sociedade mais igualitária, mais democrática e mais inclusiva. Temos visto sistematicamente governantes serem eleitos com discurso de esquerda e, quando chegam ao poder, começam a agir como a direita; ou seja, adequando sua política à ordem estabelecida e abrindo mão de suas propostas de transformação. Aliás, a meu ver é exatamente o que está acontecendo com o atual governo brasileiro.
Mas, não diria que tudo se confunde e que todos são iguais no poder. É fácil hoje encontrar, especialmente em governos locais, políticos que se elegeram com programas que propunham processos importantes de transformação na forma de governar, nas prioridades políticas e que os vêm levando adiante por maior que sejam os obstáculos e dificuldades, os quais, diga-se de passagem, não são poucos, tendo em vista que é sempre muito mais fácil nadar a favor da corrente.
Considero que os governos do ABC que estão verdadeiramente empenhados na Câmara Regional são exemplos nesse sentido. Na minha análise, a entidade é extremamente promissora porque propõe e efetiva uma nova forma de governabilidade, de democracia e de cidadania baseada não só na representação, mas também na participação dos vários atores sociais e na negociação dos diferentes interesses em jogo.
Outro exemplo que me parece muito interessante nesse sentido é o do orçamento participativo de Porto Alegre, não só por seu êxito como por sua capacidade de difusão para outros municípios e outros partidos. Trata-se de proposta extremamente inovadora, no sentido de propor nova forma de governar, que extrapolou o local e o partido de origem, colocando-se hoje como alternativa importante à forma de governo clientelista e carente de espírito público que a gente já criticou tanto aqui.
Há alguns meses, participando de um seminário, fui informada que em Minas Gerais vêm surgindo várias iniciativas de parceria de governos locais com sindicatos representantes de pequenos agricultores, preocupadas com a plantação de produtos ambientalmente mais sustentáveis e organicamente mais saudáveis, sem uso de agrotóxicos, que parece basear-se também no princípio da organização e participação desses sindicatos nas decisões políticas do Município.
Quero destacar com esses exemplos a impressão de que estão ocorrendo mudanças moleculares nas sociedades atuais, que apontam para uma proposta de regulação social que se diferencia tanto do Estado do Bem-Estar Social como do neoliberalismo. São mudanças extremamente promissoras no sentido de colocar a possibilidade de emergência de uma sociedade mais participativa, mais igualitária e mais democrática.
Por outro lado, como não acredito mais em determinismos históricos, estou convencida de que esse novo arranjo é ainda uma experiência em gestação e que sua capacidade de se impor, especialmente frente à força do modelo neoliberal do Estado mínimo, dependerá antes de tudo da capacidade dos atores e movimentos sociais de propor novas experiências, de se integrar nas experiências já existentes, de empurrá-las adiante e difundi-las para novas regiões.
Como a senhora observa, numa visão histórica, a atuação do sindicalismo no Grande ABC? Outras regiões do Estado de São Paulo, onde a industrialização emerge, correriam o mesmo risco de embates entre capital e trabalho? Vai se consagrar o modelo de São José dos Campos, de enfrentamento contínuo ao capital, porque é comandado pela Convergência Socialista, ou vai prevalecer o que encontramos no Grande ABC e em Taubaté, por exemplo, de aproximação entre capital e trabalho?
Márcia Leite – Bem, depois de tudo o que já disse, acho que ficou claro que acredito que só conseguiremos construir uma sociedade melhor se adquirirmos a capacidade de promover a negociação dos diferentes interesses em jogo, respeitando as diferenças sociais (de classe, de gênero, de etnia, de visão de mundo etc), as necessidades, fragilidades e dificuldades de cada setor.
Não consigo pensar, nos dias atuais, numa forma diferente disso que seja democrática. Seria sempre a imposição da visão de um determinado grupo social, de determinados interesses sobre todos os demais. Acho que muito mais que a diferença entre comunismo e capitalismo, essas são as duas visões de sociedade que estão colocadas no momento e é em torno delas que estão referenciados os conflitos sociais. Nesse sentido, acho que cabe outro papel aos sindicatos neste momento, em relação ao que cumpriram nos anos áureos do fordismo. Refiro-me a um papel mais voltado ao diálogo e à negociação, que se abre para problemas mais amplos do que os relacionados apenas aos interesses imediatos de seus associados.
Acredito que o momento está mais para o sindicato-cidadão do que para o sindicato voltado exclusivamente aos interesses de classe, embora isso não signifique, evidentemente, que não deva continuar a defender a categoria que representa. Mas significa, sim, que assim como a sociedade se vê desafiada por muitos outros problemas, não basta mais ao movimento sindical continuar dirigindo sua atuação aos mesmos atores, utilizando antigas palavras de ordem. A forma de atuação sindical hoje deve estar mais voltada à negociação, à interlocução com outros atores e à inclusão de problemas mais amplos, até para poder representar melhor sua categoria.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira