Entrevista Especial

Participação da
sociedade cresce

DANIEL LIMA - 05/08/2000

É cada vez mais frequente a ocorrência de programas e projetos públicos que contam com participação decisiva da população. A avaliação parte do economista Jorge Kayano, presidente do paulistano Instituto Pólis, e está fundamentada principalmente numa coletânea de programas municipais reunidos no livro 125 Dicas, Ideias Para a Ação Municipal recentemente lançado com apoio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).


Longe de querer ser um manual de boas práticas a serem imitadas, Kayano explica que pretende estimular os gestores e também lideranças sociais a estarem atentos às alternativas que tornem mais democráticas e transparentes a formulação, decisão e implementação de políticas públicas. Essa é uma das melhores práticas para diminuir as desigualdades sociais e racionalizar os recursos públicos, entende.


A temática articuladora dos 125 cases que compõem a publicação do Instituto Pólis busca estimular a promoção do desenvolvimento local além do ponto de vista exclusivamente econômico. Pretende-se com o trabalho interagir ações de sustentabilidade política, econômica, ambiental e cultural, além de democratizar o poder local, isto é, nos municípios.


Claramente identificado como defensor do Estado, Jorge Kayano não cai no extremo de idolatrar as ações públicas. Tanto que reconhece: a maioria dos municípios ainda dispensa a participação dos contribuintes no modelo de gestão pública. Ele acentua que a realidade das cidades paulistas é bastante diferente das demais.


A expectativa do economista é de que a Lei de Responsabilidade Fiscal deverá provocar grandes transformações, porque os municípios não poderão mais contar com as chamadas transferências voluntárias dos governos estaduais ou federal, ou com operações de crédito para se financiarem.


As prefeituras são o poder do Estado mais próximo da população, mas historicamente a repartição da carga tributária no País manteve-se centralizada na União, com os vícios de um colonialismo deletério que remonta à chegada dos portugueses há 500 anos. Essa é a melhor explicação para termos vivido um caótico processo de urbanização, agravado pelo fato de a população rural ter evadido para os municípios de maior porte quase num piscar de olhos?


Jorge Kayano – Vamos pela ordem: não vamos pensar apenas nos executivos municipais. É preciso lembrar também do Poder Legislativo e das câmaras municipais. Realmente, apesar de o Município ser a esfera de poder mais próxima do cidadão, e portanto mais demandada, sempre contou com pequena parcela das receitas públicas. Apesar de melhora na repartição com a Constituição de 1988, os mais de 5,5 mil municípios brasileiros ficam com apenas 17% das receitas disponíveis. Portanto, as queixas generalizadas dos prefeitos, de que são obrigados a dar respostas para encargos crescentes sem a necessária contrapartida de recursos, têm algum fundamento.


Em relação à urbanização caótica, não podemos jogar toda a culpa no passado colonial. Inclusive porque estudos recentes mostram que os portugueses tinham, sim, um projeto de cidade e, de acordo com esse modelo, chegaram a implementar projetos urbanísticos adequados. Penso que nosso processo acelerado e caótico de urbanização, através do qual em menos de 50 anos passamos de um País predominantemente rural para quase 80% morando nas cidades, deve-se à combinação de três fatores bastante nossos: a estrutura fundiária extremamente concentrada, que expulsou a população rural; a histórica e péssima distribuição de renda e a desmesurada especulação das terras urbanas que impediu que as pessoas conseguissem ocupar áreas mais adequadas e construíssem moradias mais adequadas.


O discurso comum de acadêmicos preocupados com o fosso social que temos no Brasil é de condenação ao capital. Escorraça-se o capital como o grande vilão da histórica deformidade socioeconômica do País. Não lhe parece que o viés ideológico congela a capacidade de interpretação desses agentes de cultura? Por que o Estado predador que caracteriza o País não é tão enfatizado pelos intelectuais? A apropriação do Estado por forças privadas não é a constatação de que jamais tivemos estrutura funcional decididamente democrática e participativa e de que a falta de preparo de administradores públicos é um convite à malversação, ao clientelismo, ao corporativismo? Enfim, que nosso Estado é um grande fracasso?


Jorge Kayano – Penso que o que se condena é a ideia de que o capital livre, sem freios adequados, é capaz de resolver todos os nossos problemas. Precisamos partir do reconhecimento de que a dinâmica do mercado, em si, tende sempre a concentrar cada vez mais a renda e a riqueza, aumentando a exclusão social, ainda mais nos tempos atuais de financeirização da economia. Cabe ao Estado — e mais uma vez estou falando do conjunto dos três poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário — regular e impor limites às forças do mercado, desenvolvendo um conjunto articulado de políticas públicas que ajudem a redistribuir melhor a riqueza produzida, melhorando as condições de vida da população.


Caso contrário, estaremos condenados ao aumento contínuo das desigualdades, com reflexo direto na explosão da violência, que não poderá ser contida apenas com o aumento da polícia e nem mesmo com a segurança privada. Pesquisas de opinião vêm apontando que a população está insegura e insatisfeita com o desempenho dos nossos governos, principalmente supra-municipais, que não conseguiram cumprir a maioria das suas promessas.


Quais os aspectos mais importantes observados pelo Instituto Pólis em relação a ações administrativas do Poder Público municipal e que constam do livro 125 Dicas? O que os cases municipais nessa área oferecem como tendências sólidas de reestruturação do Estado na esfera municipal?


Jorge Kayano – Aproveito para retomar uma parte da questão anterior: pelo menos nos municípios, temos observado que é cada vez mais frequente a ocorrência de programas e projetos que contam com a decisiva participação da população, desde a concepção até a implantação e o acompanhamento e avaliação. A democratização da gestão da coisa pública, que ajuda na consolidação de uma verdadeira cultura democrática, é uma das manifestações mais importantes da reforma do Estado. Pena que ainda não é uma prática disseminada, apesar de no discurso ser elogiada e defendida pela grande maioria dos nossos governantes.


As outras tendências inovadoras, que temos documentado e procurado disseminar através das 125 Dicas, são os avanços que se obtêm com a integração intersetorial, principalmente quando praticada em territórios definidos do Município, adaptando e adequando o desenvolvimento de projetos sociais à realidade local, e a emergência de diferentes formas de parcerias público/privado, inclusive procurando enfrentar questões como desenvolvimento econômico local articulado com a melhoria da qualidade de vida. A região do ABC, inclusive, é uma das que mostram vitalidade e viabilidade destas propostas.


E os programas de desenvolvimento social? A comunidade está realmente mais sintonizada com as políticas públicas? A iniciativa privada tem se lançado mais nas campanhas?


Jorge Kayano – Penso que evoluímos bastante, apesar de termos muito para avançar. Um dos problemas que os governos (mais uma vez, penso nos executivos e legislativos como um todo) ainda precisam melhorar é a comunicação social, que não deve ser confundida com o marketing do governo. Isto é, no desenvolvimento de uma linguagem mais próxima do cidadão comum, que tem todos os motivos para desconfiar dos políticos em geral, capaz de motivá-lo a conhecer, aprovar e participar de projetos sociais relevantes. Em relação à atuação da iniciativa privada, principalmente na área social, podemos dizer que nos parece ainda muito tímida, caracterizando-se mais por apoios e ações isoladas.


Os cases relativos ao desenvolvimento urbano constam em menor número no livro 125 Dicas. São 20 no total. Também nesse ponto há algum programa cuja disseminação tem sido mais intensa do que outros?


Jorge Kayano – Realmente, esse é um campo complexo, no qual tradicionalmente se articulam setores com grande influência sobre o poder local, que tem o papel legal de regulação do uso da terra urbana. Justamente por isso, os avanços mais importantes que observamos estão na revisão da legislação urbanística, que só se consegue através de muito diálogo e negociações entre o Poder Público (mais uma vez: executivos e legislativos) e os vários interesses em conflito; particularmente destacaria a criação das Zonas de Especial Interesse Social — as ZEIS.


O quarto vértice do livro refere-se a Governo e Sociedade, com grande diversidade de atividades. De Internet à ação cultural descentralizada, de controle social do orçamento à ouvidoria pública, temos um grupo razoavelmente elevado de atividades. Existe entre essas ações conexão mais íntima ou o que vivemos são experiências isoladas?


Jorge Kayano – O que garante a unidade dessas experiências é a busca de maior transparência e participação cidadã nas decisões, na implementação e no controle do uso dos recursos públicos. Gostaria de aproveitar para enfatizar que o livro 125 Dicas é resultado de um trabalho contínuo de identificação, análise e sistematização de experiências que consideramos inovadoras, desenvolvido ao longo de seis anos. As Dicas são distribuídas quinzenalmente a mais de mil prefeituras, sendo que algumas, com apoio da Unicef e da Fundação Abrinq pelos Direitos das Crianças, são distribuídas a todas as 5,5 mil prefeituras. As dicas não devem ser vistas como receitas. Partem do pressuposto de que gestores locais podem ser estimulados a incorporar ideias inovadoras que podem contribuir para melhorar a qualidade de vida de seus cidadãos, podem apropriar-se das experiências para adaptá-las às realidades locais. Nesse sentido, a divisão em quatro áreas temáticas tem mais função pedagógica, na medida em que guardam um todo coerente.


A que conclusão você chega diante da divulgação das mudanças que estão ocorrendo em nível municipal e que formam a coletânea de 125 Dicas? Temos esperanças concretas de que governo, mercado e sociedade estão iniciando etapa de transformações num País em que o Estado provedor sempre foi interpretado como a panacéia do desenvolvimento sustentado? Estamos vivendo o descortinar de novos tempos, em que sociedade, mercado e instituições públicas convergem interesses, ou os casos detectados pelo Instituto Pólis são uma grande exceção à regra?


Jorge Kayano – Talvez possam ser encaradas como exceções que vão se popularizando, ganhando corpo, e que apontam algumas tendências. Nós, do Pólis, acreditamos que, em meio às inúmeras denúncias de corrupção, às recentes cassações e às muito poucas prisões, a população vai aprendendo. Afinal, nosso histórico de democracia política é muito curto. A tendência é de crescimento das gestões participativas e cidadãs. Por outro lado, precisamos também reconhecer que muitos municípios, talvez a maioria, não mudou. Em geral são pequenos municípios, muito pobres, que não têm quadros técnicos nem capacidade financeira para uma ação autônoma, independente dos Estados e da União.


A Lei de Responsabilidade Fiscal, em vigor há poucos meses, já está provocando transformações nas administrações municipais. Tanto que o Programa de Administração Tributária, linha do BNDES para financiar projetos de melhoria na gestão municipal, cresceu este ano, depois de ter firmado apenas 11 contratos desde sua criação, em 1997. De maio até julho, foram assinados e aprovados 25 projetos. Teremos, finalmente, um salto de qualidade na administração pública municipal por força da nova legislação? Acabou a farra do boi de prefeito derrotado em eleições deixar a bomba de mais despesas para o sucessor?


Jorge Kayano – Talvez uma das maiores provas da Lei de Responsabilidade Fiscal, que mostrará se é para valer, está na tentativa do prefeito paulistano Celso Pitta de deixar algo próximo de R$ 1,5 bilhão de restos a pagar para o próximo governo, que já vai ter muitas dificuldades para saldar os R$ 2,5 bilhões em 30 meses referentes ao refinanciamento da dívida. Se um prefeito totalmente desmoralizado como o de São Paulo conseguir, com apoio de uma Câmara de Vereadores sem nenhuma legitimidade, fazer a sua farra de fim de mandato, todas as boas intenções contidas nessa lei ficarão comprometidas. Essa ameaça que paira sobre a população de São Paulo deveria merecer atenção especial dos formuladores da Lei de Responsabilidade Fiscal, para evitar que se torne mais uma dessas leis que não pegam.


Dentre as 645 prefeituras paulistas analisadas pelo Tribunal de Contas do Estado, a proporção de municípios cujo orçamento dependia de 75% a 100% dos repasses governamentais caiu de 65% em 1997 para 53% no ano passado. Esse dado sinaliza que a arrecadação própria está subindo e que teremos cada vez menos municípios dependente dos cofres governamentais?


Jorge Kayano – Precisamos destacar que a realidade dos municípios paulistas é bastante diferente dos demais. Por exemplo: as transferências do ICMS, que é arrecadado pelo governo estadual mas que é repassado automaticamente (sem negociações) para os municípios, têm peso enorme nas receitas dos municípios paulistas. Nos outros Estados, que recolhem menos ICMS, as transferências constitucionais da União — a quota-parte do FPM — compõem boa parte das receitas municipais.


Podemos afirmar que certamente, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, os municípios não poderão mais contar com as chamadas transferências voluntárias dos governos estaduais ou do federal, ou com operações de crédito para se financiarem. Precisarão investir pesadamente no aumento das receitas tributárias próprias, principalmente IPTU e ISS. Existe estudo de técnicos do BNDES que mostra que a maioria dos municípios ainda arrecada abaixo das suas possibilidades. Mesmo no Estado de São Paulo, o número de municípios que contam principalmente com receitas tributárias próprias é muito pequeno.


Enfim, dada a resistência dos contribuintes em pagar mais impostos, os governos municipais precisarão cada vez mais negociar com transparência com a sociedade, mostrando onde pretendem investir cada centavo arrecadado, para conseguir legitimidade em suas tentativas de aumentar as receitas próprias. A contrapartida é que a chamada guerra fiscal entre municípios, oferecendo vantagens tributárias, deverá diminuir nos próximos anos.


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