Grande ABC aí está para ser decifrado. Vive uma curva descendente? Sobreviverá apenas se sofrer amplas reformas urbanísticas, ambientais, políticas e administrativas? Perdeu o bonde da história por erro deste ou daquele administrador, deste ou daquele sistema político e econômico? Não tem identidade?
Há várias respostas. Mas nenhuma terá eficácia se for dada de supetão. Analisar o presente e jogar a responsabilidade pelas distorções existentes neste ou naquele personagem, nesta ou naquela postura filosófica ou ideológica, é uma tarefa simplista. Também não se pode querer resolver os problemas que se apresentam e esquematizar um planejamento racional a curto, médio e longo prazos a partir de fórmulas mirabolantes deste ou daquele urbanista ou cientista social que aparece como salvador de todos os males que a população enfrenta nestes tempos de refluxo industrial e transformações econômicas. Nem é possível pensar, meramente, em modelos que deram resultados satisfatórios em outras paragens. Mais do que nunca é preciso buscar respostas e inspiração na história local.
O Grande ABC tem uma história fascinante e constrói, com muitas dificuldades, a sua memória. De qualquer forma, se é verdade que notícias de época oferecem pistas de falhas, erros e caminhos mal percorridos, é possível encontrar também atos de resistência, idealismo, vontade de construir uma sociedade justa, digna e, em especial, independente por parte dos nossos antepassados. A eles devem ser creditados, entre tantos, dois pontos básicos:
1º) Nesse emaranhado de descaminhos que o Brasil vive, o Grande ABC soube conquistar um espaço importante e moderno — afirmação óbvia mas, no mais das vezes, ignorada pelos novos salvadores da pátria.
2º) A riqueza maior da região, a sua tecnologia industrial, pode ser reivindicada pela plataforma deste ou daquele organismo federal ou particular e, até mesmo, internacional. Mas somente a sociedade local tornou possível virar o jogo, oferecer condições para que aqui fosse criado um parque industrial modelar em todas as áreas — e que vai se esgarçando.
Sem olhar para trás
Poderiam ser citados outros pontos. Geralmente o são. Mas basta os dois acima para se compreender como a região tem avançado sem olhar para trás.
No início do século XIX, a sociedade local liderou o primeiro movimento autonomista que resultou na criação da Freguesia de São Bernardo, espécie de distrito de paz de São Paulo, como o eram a Sé, Cotia, Guarulhos, Mairiporã (Juqueri), Santo André, Penha de França, Santa Ifigênia e Freguesia do Ó, que preservou o termo. Como diz o historiador Wanderley dos Santos, os paulistanos do bairro disperso de São Bernardo ressentiam-se da ausência de um sacerdote que vez ou outra apenas aparecia. Então os moradores foram à luta e obrigaram as autoridades e religiosos a dar uma solução ao caso.
No final do mesmo século XIX, a região mais uma vez se organizou para conseguir a autonomia municipal. Tempo dos núcleos coloniais e dos primeiros anos de trabalho por aqui dos imigrantes, em especial os italianos. Foi preciso dialogar com a Câmara Municipal de São Paulo. Apresentar argumentos. Discutir e questionar o esquecimento desta área do planalto entre São Paulo e Santos, Mogi das Cruzes e Santo André. Produzir abaixo-assinados. Envolver o vigário local, os antigos brasileiros em cargos de mando, dentre os quais o coronel Oliveira Lima, e os recém-chegados estrangeiros. E mais uma luta foi vencida pela soberania local no início da República.
No apagar da Era Vargas, a região uniu esforços novamente e conseguiu manter a autonomia ameaçada, quando seus distritos mais desenvolvidos correram sério risco de ser incorporados ao Município de São Paulo — o que chegou a acontecer com Santo Amaro, que um dia também foi Município independente.
Divisão em sete partes
A partir dos anos 40, hegemonia municipal garantida, a região se esfacelou e se dividiu em sete partes desiguais, com seus pontos positivos e negativos. E quando preciso foi, impediu que novos esfacelamentos políticos ocorressem — são bem recentes os esforços do Segundo Subdistrito de Utinga para se separar da mãe Santo André, o que significaria a criação sem cabimento de mais uma rede burocrática a emperrar os caminhos da velha municipalidade.
Num outro extremo da formação regional, a presença da indústria. As unidades fabris transformaram a região. Ocuparam num primeiro momento o vale do Tamanduateí, sequência lógica da expansão paulistana vinda do Brás, da Mooca, do Ipiranga e transformando, literalmente, o trecho São Caetano/Santo André, por onde seguem os trilhos da São Paulo-Railway. Num outro momento, esse deslocamento industrial voltou-se para o vale do Ribeirão dos Meninos. Passou a acompanhar a Via Anchieta que chegou, orgulho da engenharia nacional.
Mais uma vez o desafio de substituir formas econômicas foi encarado de frente pela sociedade local. Se dependesse do regime imperial, e mesmo do republicano nascente, a região continuaria a ser um espaço voltado à agricultura, em especial à lavoura de subsistência que atendesse às necessidades da São Paulo Capital. Que história é essa de acabar com os canteiros de batatas e substituí-los por oficinas de produção em escala?!
Visita do presidente
Há o episódio da visita à região feita pelo presidente do Estado, hoje seria governador, em 1903. Integrando imensa comitiva, Bernardino de Campos visitou a chácara Beliche para assistir a uma demonstração do trabalho das máquinas destinadas à plantação de batata inglesa. A chácara ficava no espaço hoje ocupado pelo Parque Duque de Caxias, em Santo André, e a experiência foi desenvolvida pelo empreendedor Abílio Soares, hoje nome de rua tanto aqui como em São Paulo.
A plantação de batatas — e de milho, feijão, farinha, repolho –, sem a sofisticação do maquinário apresentado ao governo do Estado por Abílio Soares, continuaria por décadas. A colônia japonesa do Mizuho, em São Bernardo, tornou-se referência estadual na produção de ovos. O agrião plantado no atual (e abandonado) Parque Central, de Santo André, chegou a ser capa do suplemento agrícola do jornal O Estado de S. Paulo. Mas não eram mesmo a agricultura e a avicultura as vocações econômicas buscadas pelo Grande ABC ao longo do último século do segundo milênio.
Desde o final do século XIX, e seguindo a linha iniciada pelas fábricas de cerâmica e móveis das fazendas aqui mantidas pelos monges beneditinos já no século XVIII, a região apostaria verdadeiramente na industrialização — de resto uma atividade que as nações do hemisfério norte reservavam para si próprias e não para os países pobres do Terceiro Mundo. O Grande ABC já fizera uma feira agrícola e industrial em 1886 e já chamara a atenção pela plantação e industrialização do chá desde a primeira parte do século XIX, por iniciativa do alferes Francisco Martins Bonilha. Mas é na virada do século XIX para o XX que a região passou a revelar seus primeiros industriais.
Primeiros empreendedores
Os lotes coloniais de São Caetano, destinados ao trabalho na terra dos imigrantes de Vitório Vêneto e outros paeses do norte italiano, são adquiridos pelos primeiros empreendedores, tanto industriais como imobiliários. E o núcleo agrícola inaugurado em 1877 ganha olarias, produtores de carvão e fabricantes de vinho para, em 1892, abrir espaço a uma fábrica de formicida, a Companhia Formicida Paulista, de Fernando de Albuquerque.
Quando o século XX surge, a figura do fabricante de carvão começa a desaparecer em São Caetano — mantendo-se forte em São Bernardo e outros lugares. E virão: uma fábrica de chapéus aqui, uma fábrica de pólvora ali, uma nova fábrica de vinho e uma fábrica de sabão, a Pamplona Sobrinho e Cia., que logo diversificaria a produção passando a fabricar velas, graxas e óleos lubrificantes — um conglomerado de 40 mil metros quadrados na antiga sede da Fazenda dos Beneditinos, no Bairro Fundação dos dias atuais, onde o poderoso conde Matarazzo montaria um pequeno império industrial em poucos anos.
Outros empreendimentos nasceram, ainda no século XIX, em outros pontos, como as três primeiras grandes fábricas ao redor da Estação de Santo André, a tecelagem Ipiranguinha, o lanifício Kowarick e a fábrica de cadeiras Streiff.
Enquanto isso, na Vila de São Bernardo, sede do Município que se afirma, imigrantes italianos criam as primeiras fábricas de móveis, ao lado de indústrias artesanais de charutos e bebidas. Como destaque, uma italiana de brios, parteira formada, Terezina Capitanio Fantinatti — ainda hoje com descendentes na região — alastra pela primeira vez o nome industrial da região para fora do País ao expor os produtos da sua fiação de seda, criada em 1910, numa feira internacional realizada no Uruguai. Tudo isso já no início do século XX.
Demografia e desafios
Claro que essa nova faceta encarada pela região significou o início de um processo que levaria a velha Borda do Campo a dobrar, triplicar e ampliar sua população e a gerar problemas e desafios, sem maiores preocupações com riquezas naturais representadas pelas matas e hidrografia. Um grande lago artificial — a Represa Billings, dos anos 20 — desbancou sítios e plantações a pretexto de gerar energia elétrica serra abaixo. E dane-se a fauna e a flora ricas e cantadas em prosa e verso por autores como Rossini Tavares de Lima.
O que sobreviveu da Serra do Mar — felizmente uma larga fatia ambiental dentro do mapa ecológico do Estado de São Paulo — passou a enfrentar a poluição que mata vinda do parque industrial vizinho de Cubatão, encabeçada pela Cosipa.
Quando São Paulo descobriu que era preciso realizar a revolução do refino de petróleo, mais uma vez a região foi escolhida para abrigar a primeira grande refinaria, no vale de Capuava. A Refinaria de Petróleo União, hoje Recap, se alojou por aqui e, de imediato, começou a matar o principal rio urbano, que é o Tamanduateí — o que fez surgir uma comissão com sigla complicada, Cicpaa (Comissão Intermunicipal de Controle da Poluição das Águas e do Ar) para tentar conter o abuso. De resto, uma iniciativa que por si só glorifica o nome de um técnico de raízes em Santo André, o engenheiro Antonio Pezzolo, e que deu origem à estatal Cetesb.
A região foi agredida e respondeu como pôde. Ganhou cognomes. Subúrbio porque está nas fraldas de São Paulo. Manchester Paulista — título esquecido e abraçado por Sorocaba — porque passou a receber as maiores indústrias. Ofereceu incentivos fiscais e criou fenômenos como o corredor polonês, que garante a Santo André os impostos gerados no pólo Solvay, muito mais próximo dos centros urbanos de Rio Grande da Serra, Ribeirão Pires e até mesmo Mauá.
Sistema de telefonia
O sistema de telefonia era péssimo nos anos 50. Falar com São Paulo, um desafio. Por que não criar um sistema telefônico próprio? E foi assim que empresários locais levaram adiante o sonho tornado realidade pela CTBC (Companhia Telefônica da Borda do Campo).
Quando São Paulo dispôs-se a preservar a natureza, a ordenar a expansão urbana que se mostrava desenfreada e oficializou os mananciais da Grande São Paulo, já na década de 70, a região pensou na alternativa do turismo industrial e ambiental. Encontra, até hoje, dificuldades para implementá-lo. Até porque estudos pioneiros e profundos desenvolvidos por um idealista da área, Rubens Peixoto Freire, de São Bernardo, são hoje esquecidos ou ignorados. Pelo caminho vão ficando pontos referenciais.
Paranapiacaba definha, com tantos planos e projetos, estudos acadêmicos, comissões oficiais e ONGs — e que região do Primeiro Mundo não adoraria explorar turisticamente uma vila ferroviária inglesa com características muito vivas do século XIX? Escondem-se os bens ao longo da Estrada Velha do Mar. Quem é que estuda hoje a riqueza representada pela engenharia da Calçada do Lorena? — que venceu a serra de maneira inteligente, em ziguezague, desviando-se dos cursos d’água, propiciando aos viajantes do século XVIII um mínimo de comodidade para superar a muralha verde que somente 70 anos depois seria superada pela estrada de ferro.
A arquitetura industrial de tantas informações desmancha-se nas sete cidades. O casario colonial ao longo da estrada do Vergueiro perdeu-se. Os pousos de tropeiros ficam apenas nas descrições de cronistas e viajantes — ou em fotografias igualmente esquecidas tiradas pelo jornalista Hermano Pini Filho no fim da década de 50. Sem uma preocupação mínima com essa história que se perde, os governantes regionais, de hoje e de ontem, insistem em comemorar 400 e tantos anos de fundação desta ou daquela cidade, o que faz a alegria dos animadores culturais que encomendam folders e cartazes a ilustradores competentes que adoram acentuar nos seus riscados estes números tão fáceis de ser assimilados: 444…
Ufanismo permanente
Claro que o Grande ABC pode e deve estudar o quinhentismo e o que representou na história brasileira a Vila de Santo André da Borda do Campo. Mas é preciso que se estude o surgimento, vida e desaparecimento da Vila de Santo André da Borda do Campo dentro do seu verdadeiro contexto, de uma importância muito maior para o surgimento de São Paulo do que das sete cidades que compõem a região.
Festejando, ano a ano, os enganosos quatrocentos e tantos anos, a história oficial abraçada pelas administrações públicas conservadoras, e seguida pelas ditas populares e de esquerda, sepulta ou coloca no ostracismo outras riquezas e outros personagens. É mais fácil (e ufanista) eleger João Ramalho e os jesuítas do que o negro, o índio escravizado e o migrante. Com isso, vai se perdendo a tecnologia que a região absorveu em várias fases de sua formação.
Que maior riqueza teria a região que a trazida pela indústria pioneira? Como funcionaram as nossas primeiras tecelagens e fiações, fábricas de móveis, pedreiras, cerâmicas, curtumes, indústrias químicas, indústrias pneumáticas, metalúrgicas e as hodiernas indústrias de plástico? Que fim levaram as fórmulas industriais um dia mantidas a sete chaves pelas unidades industriais que fizeram a riqueza do ABC — e depois Grande ABC? Quem sistematiza o cotidiano das nossas primeiras montadoras? Quem saberia, hoje, projetar e construir uma chaminé cujos últimos exemplares vão se perdendo entre as estruturas civis e comerciais que tomam o espaço das unidades Villares, por exemplo?
Fórmulas antigas disfarçadas
Não é de todo errado dizer que as alternativas buscadas pelos políticos e tecnocratas deste novo milênio se assemelham às mesmas tentadas e testadas em outros governos e em outros momentos — com suas virtudes e defeitos. Tudo é apresentado como algo novo e revolucionário, quando na verdade é fácil identificar fórmulas antigas disfarçadas por rótulos com cara de modernidade.
Se há uma lição a ser absorvida hoje, quando se pensa uma vez mais a realidade do Grande ABC, a maior é justamente esse descaso com o erro maior que também foi dos antigos — o de começar tudo de novo sem se espelhar nas experiências anteriores. Por que um ex-ministro da Guerra da República Velha, Pandiá Calógeras (por sinal civil e patrão do quase andreense Adoniran Barbosa), elegeu Santo André para montar a indústria que antecedeu a Pirelli? Como é que personalidades como Roberto Simonsen, misto de empresário e intelectual, Armando de Arruda Pereira, Ermelino Matarazzo, Wallace Cockrane Simonsen, Charles Murray, Baby Pignatari, Miguel Etchenique e tantos outros vieram parar nestas paragens? O que fizeram? O que pensaram? O que deixaram?
O que dizer da obra de Irineu Evangelista de Souza, o barão e visconde de Mauá? Será que seus empreendimentos ferroviários, e suas desventuras, nada significam para o momento presente e para os passos futuros do Grande ABC?
E os capitães de indústrias tipicamente locais? Os Tognato e os Corazza, para citar duas famílias que tocam neste 2001 as duas mais antigas indústrias em funcionamento na região. E Salvador Arena? — engenheiro empregado do investidor João Firmino Corrêia Araújo, este o criador da Confab, em São Caetano. Arena descobriu a região e depois montou seu próprio negócio, a Termomecânica. Encontrou um jeito diferente de negociar com os dirigentes do novo sistema sindical que ajuda a derrubar o regime militar — como é que se assimila sua experiência e história de vida?
Populista e aproveitador?
De outro lado, a classe política. Lauro Gomes de Almeida é cantado em prosa e verso como administrador que soube compreender que esse eixo a meio caminho da Capital e do porto teria vocação para o desenvolvimento na segunda metade do século XX. É justo apontá-lo, simplesmente, como um populista e aproveitador? Quais foram seus erros e acertos? O que pensava Armando Mazzo, o marceneiro eleito nosso primeiro deputado estadual e que, com a pecha de comunista, conseguiu eleger-se prefeito de Santo André? — quando o Município abrangia a linha entre São Caetano e Paranapiacaba.
No outro extremo, como analisar, hoje, a figura do radialista Osvaldo Gimenez, que fez da pioneira Rádio Clube seu palanque e conseguiu eleger-se também prefeito? Em barcos diferentes, Mazzo e Gimenez, autênticos forasteiros, conseguiram num intervalo de pouco mais de 10 anos peitar a classe política dominante de um dos mais importantes municípios brasileiros e alcançar o posto máximo municipal. É certo que sofreram contra-ataque e não prosperaram em seus planos políticos. Mas que lições ambos deixaram para se compreender, hoje, os meandros da política local? Não teríamos, até hoje, versões modernizadas de Mazzo, Gimenez e do único senador eleito representante da região, o médico — na verdade era professor — José Luiz Flaquer, eleito e empossado senador estadual no início do século?
Os anais das Câmaras Municipais são ricos em homenagens, muitas vezes laudatórias, a personalidades do mundo empresarial que aqui fincaram raízes. Tirante esse lado bajulatório da classe política para com os poderosos, que pautas ricas poderiam nascer de uma análise dos nomes que hoje adormecem numa documentação oficial muitas vezes mal preservada! Que fim levou o acervo de cada um deles e das suas organizações, no passado vitoriosas e cantadas como desenvolvimentistas?
Um caso exemplar
O caso do engenheiro químico Carlos Eduardo Paes Barreto é exemplar. Nos anos 40, já trabalhando no Conselho Nacional do Petróleo, Paes Barreto procurou o presidente do órgão, um general cearense chamado João Carlos Barreto — que não era seu parente –, e defendeu a criação de uma refinaria nacional. Seu argumento era simples, mas definitivo: o petróleo é riqueza que o Brasil tem no subsolo (foi descoberto em 1938, em Lobato). Mas como recurso natural só vira riqueza de verdade depois de refinado e transformado em gasolina.
Paes Barreto tornou-se o maior especialista em refino de petróleo do Brasil. Participou da criação de uma primeira refinaria em Mataripe, na Bahia. Logo depois estava pisando barro literalmente em Capuava para acompanhar primeiro as obras da Recap e depois da Petroquímica União, das quais foi o primeiro superintendente.
Nos primórdios da construção da refinaria em Capuava, Paes Barreto administrou toda a obra. Trabalhou com técnicos do mundo inteiro que para aqui vieram, dentre os quais muitos holandeses, um deles Pieter Jacobus Been, o Mr. Been — residindo ainda hoje em Santo André. E vieram: americanos, chineses, italianos, alemães, espanhóis, eslavos, húngaros, quase uma assembléia das Nações Unidas, como se dizia. Foram eles, esses técnicos estrangeiros, os primeiros professores da mão-de-obra tipicamente brasileira que hoje toca todo o processo.
Claro que o Pólo Petroquímico de Capuava trouxe problemas ambientais que deixaram de pé os cabelos dos técnicos da Cicpaa. Mas o projeto foi vitorioso em todos os pontos. Hoje Capuava moderniza-se e seu instrumental vai sendo informatizado e substituído. O que sobrará da sua memória?
O carioca Paes Barreto já passou dos 80 anos. É consultor em São Paulo. Antigos colegas e subordinados o idolatram. Raramente visita a região. Quem, além dos amigos, fala dele? Ao seu tempo de Capuava, foi bajulado e homenageado por várias Câmaras Municipais do Grande ABC com o título de cidadão.
Campo e cidade
Num outro patamar, a massa produtiva. Que gente é essa que largou o campo pela cidade? Como veio parar aqui? Quem retornou? São os imigrantes tornados migrantes. O filho, neto e bisneto do italiano, espanhol, árabe, alemão e japonês que não quiseram saber de tocar o projeto dos antepassados e vieram procurar uma alternativa de vida na terra da Rhodia ou da Volkswagen.
Foi essa brava gente que ocupou os novos bairros rasgados. Famílias que batalharam pelo lote adquirido à prestação. Que afundaram o poço raso e a fossa para o depósito do esgoto caseiro. Que protagonizaram o mutirão para o levantamento do quarto e cozinha. Que acreditaram no ajuntamento em torno do projeto da sociedade amigos, do clube de futebol e da comissão interessada em erguer uma igreja e, quem sabe, oferecer à vila uma nova paróquia. Personalidades anônimas que estabeleceram a formação étnica do Grande ABC, outra riqueza poucas vezes observada em outras regiões.
Enquanto áreas existiram, o particular projetou cada uma das sete cidades. Mais uma vez é necessário recorrer à documentação oficial muito mal preservada nas nossas municipalidades. Como é que foram idealizadas vilas como Camilópolis, Baeta Neves, Barcelona, Serraria, Capuava, Aurora e Conde Siciliano? O que oferecia o empreendedor? O que pagava o comprador? O que levou os irmãos Pujol a descobrirem o ABC no início do século XX? Que inspiração os levou a criar bairros como o Jardim, o Campestre, o Santa Maria e Nova Petrópolis e a estabelecer espaços voltados a receber indústrias?
Foram os Pujol que rasgaram a Avenida Industrial, em Santo André, e proporcionaram infra-estrutura para a chegada de indústrias como a Companhia Brasileira Fichet & Schwartz-Hautment, de origem francesa. Os caixas-fortes blindados produzidos pela Fichet ainda funcionam nas matrizes mais antigas de bancos brasileiros e internacionais. Os pavilhões da indústria, abandonados, servem para refúgio de excluídos na Avenida Industrial, em Santo André.
Chegada de imigrantes
Os Pujol que planejaram uma parte substancial da área urbana do ABC não venceram a virada da República Velha para a era getulista. Perderam suas propriedades em hasta pública. E os Simonsen se encarregaram de tocar os projetos, que ora ocupam as mais valorizadas áreas do eixo São Bernardo, Santo André e São Caetano.
A região pensada no final do século XIX para ser o abastecedor agrícola de São Paulo viu desaparecer fazendas como as dos beneditinos, substituídas por lotes coloniais. O imigrante que substituiu a mão-de-obra brasileira de origem escrava, indígena e portuguesa faz vinho caseiro, pão de forno, carvão, mucuta, planta verdura e legume, e vende sua mercadoria pelas ruas paulistanas. Depois, assiste a transformação desse conjunto de chácaras e hortas em lotes urbanos, industriais e residenciais — porque é preciso atender à demanda da fábrica moderna que chega.
Bom? Ruim? Os mesmos empreendedores e políticos projetam uma nova estrutura de vizinhança sem ligar para pontos herdados do passado — daí o fim dos exemplares arquitetônicos de outras eras. Em compensação, fazem nascer nos arredores paulistanos uma nova sociedade, que passa a ser cantada em prosa e verso.
Chegam partes industriais
E lá se vão: as olarias, os canteiros de flores, as ruelas das carroças, as nascentes e beiras de rios, o bucolismo dos nossos ancestrais. E chegam: os parques industriais, substituídos mais tarde por indústrias modernas, por sua vez substituídas mais recentemente pelo comércio e setor de serviços dos arcabouços pré-fabricados. Em cada fábrica, um novo shopping center. Mas e a memória dos empreendimentos que um dia foram modernos? É certo simplesmente encobri-los para apostar no modismo do novo meio de produção ou consumo?
Perguntas, perguntas… geralmente perguntas que precisariam ser feitas, refletidas e respondidas. Suas respostas poderiam, ou não, trazer novas perspectivas. Em caso positivo, aí está a receita para se pensar e programar — quem sabe imaginar — o futuro que bate às portas. Em caso negativo, no mínimo o Grande ABC sistematizaria um conjunto de informações tão valioso que o levaria a refletir sobre sua real identidade, hoje talvez o maior desafio que estudiosos contemporâneos não conseguem domesticar.
O Grande ABC acostumou-se, como de resto toda a Nação brasileira, a substituir empreendimentos e projetos por outros, sem dar a mínima para a reconstrução da memória. Com isso, não consegue responder às suas próprias ansiedades. É verdadeiramente comovente:
1) Assistir aos esforços desenvolvidos pelo Museu de Mauá para escrever, a muitas mãos, a história da indústria ceramista que um dia foi a maior empregadora da cidade. Localizar junto às famílias exemplares com o carimbo de empresas como Fábrica Grande, Paulista, Cerqueira Leite, Porcelana Mauá…
2) Entrevistar homens e mulheres que comandaram empresas ou fizeram parte da sua mão-de-obra e que se esforçam em passar ao repórter o máximo possível de informações acerca do processo produtivo para que esses dados não se percam.
3) Descobrir que processos administrativos das sete prefeituras, com as plantas originais de unidades empresariais, são microfilmados e depois incinerados, sem uma proposta de ordenamento e preservação.
4) Receber em doação acervos inteiros de personagens que, ao longo da vida, se preocuparam em fotografar e anotar dados básicos sobre o cotidiano que os rodeia: na fábrica, no bairro, na igreja, no âmbito familiar.
5) Testemunhar avós que levam os netos à escola e retornam do portão para casa — quando poderiam adentrar o estabelecimento e passar aos netos e colegas dos netos toda a experiência de vida acumulada.
6) Acompanhar um historiador do porte do brasilianista John French adentrar no arquivo morto do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, sujar a camisa social de poeira e vibrar ao descobrir que o acervo do Cedi (Centro Ecumênico de Documentação e Informatização), que registra passagens importantes dos movimentos populares, não se perdeu com a estúpida briga das lideranças metalúrgicas regionais.
7) Conhecer um marceneiro como Rodolpho Galetti que durante 25 anos guardou em sua oficina um painel entalhado pelo escultor andreense Antonio Canever para expor a história da Sociedade Italiana de Santo André.
8) Ser chamado pela família do radialista Rolando Marques para receber, de mão beijada, as fitas originais com sua voz. E ouvir novamente o gol que levou o Santo André à Primeira Divisão 20 anos atrás. Emocionar-se com a emoção do amigo que jamais se deixou levar pelo canto da sereia e acreditou no rádio do Grande ABC até o fim.
9) Observar o brilho nos olhos de senhores e senhoras que voltam à escola nas chamadas faculdades da Terceira Idade com a perspectiva de contar suas histórias de vida.
10) Receber os e-mails do professor José de Souza Martins dando conta de mais um passeio à Paranapiacaba para fotografar o que restou do velho sistema funicular.
11) Visitar a igreja matriz de Ilhabela, no Litoral Norte de São Paulo, e descobrir que o altar mór da igreja matriz antiga de São Bernardo está lá, intacto. Uma obra colonial que a cidade desprezou e Ilhabela recebeu de braços abertos, sem nunca deixar de dar crédito à origem da peça.
12) Ouvir na televisão o repórter Otávio Mesquita se admirar que a imagem original do santo Bernardo, uma obra de arte dos primórdios da região, está em ponto de honra no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, porque São Bernardo não fez a mínima questão de aqui mantê-la.
13) Retornar às unidades química e têxtil da Rhodia, em Santo André, e ser informado de que os dois museus internos, com verdadeiras relíquias da história da empresa, não existem mais — e ninguém sabe onde foi parar o acervo, se é que ainda existe.
14) Indignar-se ao saber que ninguém ligou quando a General Motors anunciou a desistência de oferecer a São Caetano um museu com sua história.
O jornalista Lourenço Diaféria costuma dizer que ninguém gosta daquilo que não conhece. As novas e futuras gerações têm um único jeito de conhecer a beleza que é o Grande ABC — estudar sua história, participar da construção da nova história. Compete ao empresariado oferecer essa oportunidade aos próprios filhos e netos. Ou então, em pouco tempo, passar pelo processo que levou ao esquecimento os saudosos capitães de indústria que ajudaram a construir a história regional.
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27/07/2001 Aparelho cultural está desatualizado