Política

Voto esquadrinhado

DANIEL LIMA - 21/09/2004

Se não faltam candidatos de diferentes matizes a engendrar maquinações para
capturar votos, num jogo em que muitos se travestem e tornam a corrida eleitoral
grande teatro, a outra face da moeda é igualmente verdadeira. Não faltam
eleitores que superam todas as expectativas e contribuem extraordinariamente
para perpetuar a idéia de que a cada temporada de votos o que se pratica é mesmo
o mais deslavado jogo de interesses. Vejam esses casos:

Sanguessuga – Está com o candidato escolhido e não rasga.
Faz de tudo por quem quer ver vitorioso. Entrega-se de corpo e alma às batalhas
metafóricas ou reais para aumentar a aceitação do eleitorado. Não desgruda um
instante do candidato a vereador ou prefeito. Surpreende quando o escolhido
duvida de sua lealdade. Uma bobagem sem tamanho, porque, afinal, a contrapartida
será cobrada com o mesmo empenho se as urnas consagrarem um ou outro, ou os
dois. Passará pelo menos quatro anos no bem-bom. Um investimento de risco, como
se vê, mas bastante rentável.

Multiplicador – É do tipo que gosta de fazer muitos gols. É
dono do pedaço, geralmente de periferia, e mantém contrato verbal digno dos
melhores tempos dos bilhetes do jogo-do-bicho: não é preciso assinar para
confirmar. O rebanho geralmente de excluídos sociais segue rigorosamente seus
mandamentos. Ganha por voto confirmado nas urnas eletrônicas que, setorizadas
por bairro, tornam-se provas da produtividade. Quanto mais votos, mais obras
para a comunidade no futuro e, principalmente, mais força na órbita do Paço. O
próximo capítulo é tornar-se candidato a vereador.

Seletivista — Sua missão é catequizar boas cabeças para os
candidatos que resolveu apoiar. Não se propõe a carimbar o passaporte do voto de
interlocutores que não lhe despertem admiração. Acha imperdoável que a
democracia dos vitoriosos imponha que seu vereador preferido, seu prefeito
querido, sejam vilipendiados por votos sem agregado de valor. Para o
seletivista, as eleições deveriam ser um campo de batalha de luvas de pelica, ao
qual só teriam acesso legal os egressos de alguma escola de pós-graduação em
qualquer coisa. Formandos e universitários não teriam vez. Seria preciso mesmo
muita massa encefálica comprovadamente testada.

Aliciador — Em nome do candidato escolhido a vereador e a
prefeito, ele faz das tripas coração. Transforma-se em equilibrista social,
desses que se penduram em todas as possibilidades para sustentar que seus
preferidos representam mais que a salvação da lavoura, mas a própria purificação
da alma. Nem se pode duvidar do talento inato de aliciar a todo custo, porque
seu prazer é esse mesmo, ou seja, a possibilidade de converter ovelhas
desgarradas. Pouco se dá, em muitos casos, à recompensa. Como bom vendedor, vale
mais o prazer da consumação do negócio do que os dividendos. Mesmo que os
métodos sejam, digamos, heterodoxos, ou pouco éticos.

Sedutor – Conquistar um voto aqui outro acolá para seus
candidatos é a paixão do sedutor. Não interessa a classe social, o credo
religioso, o time de coração. Para o sedutor, nada se compara à satisfação de
dobrar os feixes de aço de uma aparente irrevogável posição de apoio a
candidatos que não lhe apetecem a alma. Sua principal arma é a sinceridade, o
conhecimento dos valores de seus candidatos preferidos. É incapaz de mentir
porque sabe que, se mentisse, não seria sedutor na acepção do termo, mas um
réles aliciador, que ele detesta do fundo da alma.

Sexista – Se pudesse ele mesmo sairia candidato a vereador
ou a prefeito, mas acha que a homossexualidade transgrediria as regras
hipócritas de uma sociedade que finge tolerância aos diferentes. Como não tem
vocação a suicida eleitoral, ele se junta a seus iguais tão desiguais para os
ortodoxos e todos, bingo, esmeram-se em apoiar coletivamente uns poucos
sinceramente adeptos da máxima de que o amor é lindo, não interessa o sexo.
Todos têm queda em apontar a digital de votos em direção a candidatos que de
alguma forma reúnem alguma potencialidade de, digamos, chegar lá um dia. Lá, no
caso, não é o Paço Municipal, claro.

Corporativista – Nada melhor do que transformar o voto em
extensão do próprio trabalho ou interesse mais saliente. Quem zela pelos
taxistas? Quem fala das empregadas domésticas? Quem cuida dos transtornos
burocrático-legais? E quem aparece na hora do sufoco de saúde ou do desemprego?
Quem não curte o voto-emoção, do craque do passado ou mesmo do presente que se
mete a deputar ou governar? Eleitor engajado é isso: está disponível aos
candidatos que de alguma maneira mexeram com seu coração, com sua alma, com seu
bolso, com sua vaidade.

Celebridade – Embora possa ter algum grau de contaminação
com o voto corporativista, o voto celebridade tem muito de personalismo do
beneficiário, capaz de enfeitiçar o eleitor. Quem vota em celebridade pela
simples razão de que se trata de celebridade geralmente é um cantor frustrado,
um craque que não passou das peladas, uma cozinheira que se imaginou defronte à
telinha ditando regras às telespectadoras, uma eterna romântica que se embevece
com o beijo da novela das oito, um sanguinolento disfarçado que vibra com os
programas de violência que invadem todas as tardes em nossa televisão, uma
vítima indefesa que enxerga um militar popular como paradigma de seus desejos
mais recônditos de botar os bandidos na cadeia.