Meias Verdades

Quando a interpretação
fica no banco de reservas

DANIEL LIMA - 01/04/2003

  •  Trecho de matéria em O Estado de S. Paulo de 11 de março de 2003 sob o título “Federação diz que vantagem na final é do São Paulo:

Agora é oficial. O São Paulo entra com a vantagem de jogar por dois resultados iguais na final do Campeonato Paulista contra o Corinthians, cujas partidas serão disputadas nos dias 16, às 18h05, e dia 22, às 18 horas, no estádio do Morumbi. As informações foram divulgadas ontem pelo Departamento Técnico da Federação Paulista de Futebol.


A confirmação da vantagem do São Paulo na decisão põe fim à polêmica envolvendo o regulamento da competição, que dá margem a diferentes interpretações. Os finalistas fizeram campanhas idênticas em pontos ganhos (20), somando-se todas as fases, mas o São Paulo leva vantagem no saldo de gols: 17 contra 8 do Corinthians.



  •  Trecho de matéria do Diário do Grande ABC de 11 de março, “Federação garante vantagem tricolor”:

A FPF (Federação Paulista de Futebol) confirmou ontem à tarde, oficialmente, que o São Paulo tem a vantagem dos empates contra o Corinthians, nas finais da primeira divisão, com o primeiro jogo marcado para domingo, às 18h, e o segundo, dia 22, também às 18h, no Morumbi. Assim, o desempate por cartões vermelhos e, se necessário, por cartões amarelos, não vai prevalecer.



  •  Trechos de matéria da Folha de S. Paulo de 11 de março, “FPF rasga regulamento e põe finalíssima no sábado”:

A Federação Paulista rasgou ontem o regulamento que redigiu, mudou a data da final que agendou, marcou as partidas para um horário que inventou e mostrou, mais uma vez, que o desprestigiado Estadual-2003 é um instrumento a seu serviço.


O presidente licenciado da entidade, Eduardo José Farah, admitiu anteontem, em entrevista à TV Gazeta, que o regulamento do Paulista está “mal redigido”, o que gerou dúvidas sobre quem jogará por dois empates na decisão: Corinthians ou São Paulo.


Pelo que está escrito, o Corinthians levaria vantagem por ter recebido menor número de cartões vermelhos (2×3). Mas Farah alegou que devem prevalecer “critérios técnicos”. Como os dois rivais têm o mesmo número de pontos (20) e de vitórias (6), o terceiro “critério técnico” seria o saldo de gols – e o São Paulo teria de ser premiado.


No ano passado, porém, a Liga Rio-São Paulo, presidida pelo mesmo Farah, não rasgou seu regulamento e fez valer critérios disciplinares que beneficiaram o São Paulo – a equipe do Morumbi fez pior campanha que o Palmeiras, mas eliminou o rival por ter recebido menor número de cartões amarelos na disputa da semifinal.


A reportagem da Folha de S. Paulo é preciosa verdade por inteiro e uma aula de jornalismo interpretativo. Mais que isso: revela também a visão estratégica de diferenciar a edição de um assunto que fervilhava no noticiário esportivo. O tratamento à informação qualificada da Folha, manchete do caderno de Esporte, ajuda a entender como uma publicação que, tempos atrás, não despertava o menor interesse nas coberturas esportivas acabou se consolidando como a melhor opção para quem não se satisfaz com os concorrentes impressos e também com a mídia eletrônica. A Folha não se limitou a registrar (e a lavar as mãos) a decisão da Federação Paulista de Futebol. Preferiu o caminho mais trabalhoso, complexo e perscrutador da interpretação fundamentada.


Somente três dias depois, já às vésperas do primeiro jogo da finalíssima, o Corinthians resolveu reagir por meio do vice-presidente Roque Citadini, que contestou a decisão da FPF. Resultado? Na quarta-feira, 19 de março, o Comitê Executivo da entidade se reuniu para interpretar o regulamento. De novo, a Folha de S. Paulo interpretou o encontro com lucidez.



  •  Trechos da Folha de S. Paulo de 20 de março de 2003, com o título “Corinthians apela à Justiça por vantagem”:

Pouco depois de a FPF definir que o São Paulo deveria ter vantagem nas finais do Paulistão-2003, o Corinthians protocolou no Tribunal de Justiça Desportiva da federação recurso para fazer valer o que está escrito no regulamento. O clube não concordou com a decisão do Comitê Executivo da entidade, que ontem ratificou a intenção do seu presidente licenciado, Eduardo José Farah, de ignorar o que estava estabelecido pelas regras do Estadual e dar ao São Paulo o benefício do empate na soma de resultados das finais contra o rival — o Corinthians venceu o primeiro jogo por 3 a 2.


O direito de vantagem do clube (Corinthians), bastante claro pelo regulamento, foi defendido no Comitê Executivo apenas pelo gerente de futebol corintiano, Edvar Simões.



  •  Trecho de matéria do Diário do Grande ABC de 20 de março de 2003, “Corinthians já recorre contra decisão da FPF”:

O São Paulo ganhou, ao menos momentaneamente, a primeira na decisão contra o Corinthians. Por seis votos a um, o comitê executivo da FPF, que se reuniu ontem, ratificou a posição da semana passada, confirmando que a vantagem na final do Campeonato Paulista vai obedecer ao critério técnico.


O jornalista Orlando Duarte (um dos membros do comitê) afirmou que “houve um descuido, mas não má-fé na elaboração do regulamento”. Por esse motivo, foi considerado válido “o espírito da lei”, que dá a vantagem do empate ao time com melhor campanha.



  •  Trecho de matéria em O Estado de S. Paulo de 20 de março de 2003, “Corinthians sofre goleada da FPF”:

O Comitê Executivo da Federação Paulista de Futebol confirmou o que já era esperado. Após apresentação de análise do regulamento do Campeonato Paulista por parte do Corinthians e do São Paulo, o grupo anunciou no início da tarde de ontem que a vantagem do empate na final do Campeonato Paulista é mesmo do time do Morumbi.


Como se percebe, a toada das três publicações não sofreu qualquer mudança de rumo em relação às manchetes de 11 de março. A Folha de S. Paulo poderia ter complementado a qualidade de informação agregando o perfil dos membros do Conselho Executivo da FPF. Todos os integrantes representam os clubes grandes. Mais relevante que as cores clubísticas tradicionalmente rivais em primeiro grau do Corinthians, pesou no alinhamento à decisão do todo-poderoso Eduardo José Farah o fato de que essa instância de poder da entidade obedece rigorosamente às determinações do presidente, responsável único pela escolha dos membros.


A historiografia do futebol é farta em patetices regulamentares. Entra temporada, sai temporada, repetem-se as falhas. Na maioria dos casos, a crônica esportiva, exceções conhecidas, simplesmente registra ou expõe as contradições sem assumir posicionamento semelhante ao da Folha de S. Paulo nesse caso.


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