Há algumas condições minimamente razoáveis para quem quiser entender o caso Celso Daniel sem cair do cavalo da precipitação. O senador José Jorge é exemplo rigorosamente a ser evitado, porque insiste em descontextualizar declarações que repassa aos membros da CPI dos Bingos e à audiência da TV Senado. Quando o senador puxa a sardinha da politização para a própria brasa de criminalização do empresário Sérgio Gomes ao afirmar que o presidente da República, Lula da Silva, à época pretendente ao cargo, disse que o crime contra Celso Daniel foi político, há evidente equívoco de interpretação.
Recuperar as informações a partir da notícia de que Celso Daniel fora sequestrado em 18 de janeiro de 2002 é a primeira providência para quem pretende tratar os fatos com responsabilidade.
A retirada do caso Celso Daniel do berço em que inicialmente foi embalado, isto é, crime comum, transplantando-o para o tormentoso vendaval de crime encomendado, foi apenas questão de tempo. E tem origem na reação política do PT, de olho nas urnas presidenciais e também estaduais de outubro de 2002. Resultado: Sérgio Gomes virou a bola da vez. Quem mandou estar com seu melhor amigo numa noite de sexta-feira numa São Paulo infestada de sequestros, como provam as estatísticas e a crônica policial daquele período?
No domingo, 20 de janeiro de 2002, os jornais deram amplo destaque ao arrebatamento do prefeito de Santo André, inclusive com manchete principal de primeira página. O Estadão abriu título interno para as primeiras providências do presidente Fernando Henrique Cardoso: “FHC põe PF na apuração do sequestro de Daniel”. Uma matéria com menos destaque (”Suplicy admite hipótese de que crime seja político”) começa a responder à persistente incorreção do senador José Jorge.
Alguns trechos da reportagem:
O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) chegou visivelmente nervoso à Câmara Municipal de Santo André, onde representantes do partido se reuniram ontem, depois de serem informados do sequestro do prefeito Celso Daniel. Suplicy não descartou a hipótese de crime político. “Diversos companheiros do PT têm recebido ameaças e isso nos preocupa”, comentou.
Já o Diário do Grande ABC de 20 de janeiro abriu manchete interna que procurava recuperar os lances do sequestro: “Ação da quadrilha foi violenta”. O texto, como é natural em situações análogas, contém muitas incorreções. Um exemplo: afirma que a Pajero blindada de Sérgio Gomes foi seguida desde a saída do Restaurante Rubaiyat quando, de fato, os sequestradores estavam postados nas imediações dos Três Tombos, local do arrebatamento.
O editorial do Diário de 20 de janeiro é auto-explicativo do quadro de criminalidade que dominava a Grande São Paulo naquele período: “Basta!”. Um trecho da opinião do jornal: “O crescimento exponencial dos casos de sequestros, assaltos a caminhões de cargas, latrocínios e outros delitos mostra claramente que o Estado perdeu a luta contra o crime organizado”.
No dia 21 de janeiro de 2002 os jornais retratavam o encontro do corpo de Celso Daniel numa estrada vicinal de Juquitiba, na Grande São Paulo. A Folha de São Paulo abriu a página de editoriais com “Segurança no cativeiro”. Um dos trechos: “Como sempre, depois de arrombada a porta, se recorre ao cadeado. Foi preciso que a ousadia do banditismo organizado chegasse ao ponto de sequestrar e assassinar o político que cumpria seu terceiro mandato na direção da maior cidade do ABC Paulista para que o governo do Estado de São Paulo se movesse” — referindo-se às medidas anunciadas pelo governador Geraldo Alckmin, duramente criticado pelo PT.
Alckmin chegou a oferecer R$ 50 mil pela prisão dos assassinos de Celso Daniel e defendeu prisão perpétua. Nada mais natural, porque a repercussão do crime abalava sua candidatura à reeleição.
O editorial do Diário do Grande ABC da mesma segunda-feira, 21 de janeiro, ocupou de alto a baixo duas amplas colunas sob o título “À frente, Grande ABC”, numa linha condenatória aos altos índices de criminalidade na Grande São Paulo.
O noticiário dos jornais daquela segunda-feira em que o corpo de Celso Daniel era sepultado foi extenso sobre o crime e suas consequências. E registram a politização pelo Partido dos Trabalhadores que, por ignorância ou oportunismo, o senador José Jorge procura reverter contra o partido ao sugerir que o próprio PT estaria apontando em direção a Sérgio Gomes da Silva. “Petistas convocam ato e vão ampliar segurança” foi uma das manchetes internas do Estadão. O texto diz que depois dos assassinatos de Celso Daniel e Toninho do PT, prefeito de Campinas, em 10 de setembro, o partido decidiu recomendar que seus principais políticos redobrem a segurança.
Também os petistas resolveram convocar para dois dias depois um ato de repúdio à violência, exigindo medidas dos governos estadual e federal, administrados pelos adversários tucanos.
Estava preparada a pólvora de um rastilho de retaliações político-eleitorais que prosseguem até hoje. Tanto que a Folha de S. Paulo, no mesmo 21 de janeiro, publicava uma reportagem cujo título “Candidatura Alckmin fica vulnerável” provavelmente dispensasse o texto que relacionava o assassinato de Celso Daniel a uma nuvem de incertezas sobre a viabilidade eleitoral do governador. “Alckmin tornou-se, depois da tragédia de anteontem, o candidato que mais tem a perder politicamente” — escreveu o jornal paulistano.
Na mesma segunda-feira do sepultamento do corpo de Celso Daniel, e diante de repercussões dilacerantes para o prestígio do governador Geraldo Alckmin, o Diário do Grande ABC revelava o que provavelmente poucos seriam capazes de diagnosticar como o primeiro grande ensaio de uma reviravolta no caso: “Polícia investiga cartel do lixo”.
Alguns trechos da matéria que, vista retrospectivamente, contribui para a compreensão da passagem do caso Celso Daniel de crime comum para crime político-administrativo:
“Um dos pontos de partida para as investigações do assassinato do ex-prefeito Celso Daniel é uma pasta amarela que tem como registro de controle interno o número 17/2000 e está arquivada no Ministério Público de Santo André, apurou ontem a reportagem do Diário. São cerca de 40 páginas de documentos, entre eles um dossiê que conteria as alterações patrimoniais do empresário Sérgio Gomes da Silva, ex-assessor e amigo de Celso, além de provas de um suposto esquema de favorecimento à Rotedalli, do empresário Ronan Maria Pinto, sócio majoritário da empresa de coleta urbana Rotedalli. Na pasta também haveria registro das alterações patrimoniais de Ronan e outros empresários do setor de transportes, provas que caracterizariam enriquecimento ilícito” — escreveu o Diário.
O dossiê em questão é o mesmo que, mais tarde, foi elevado à insustentável condição de denúncias do prefeito Celso Daniel contra supostos mandantes de seu assassinato.
A unanimidade em torno do ambiente de precarização da segurança pública na Grande São Paulo também foi reconhecida pelo conservador Estadão. Em editorial publicado quarta-feira, 23 de janeiro, sob o título “Mobilização, sem exploração política”, o jornal criticava a ideologização do crime, num claro recado ao PT. Nas páginas seguintes, outro indício de que o caso Celso Daniel teria desdobramentos que perduram até hoje: “Porta da Pajero não poderia destravar sozinha”.
O texto explica que a MMC Automotores do Brasil, representante no Brasil da Mitsubishi, descartava a hipótese de qualquer tipo de problema na trava das portas da Pajero de onde os sequestradores retiraram o prefeito Celso Daniel. “O sistema de trava estava e está funcionando”, afirmou o vice-presidente da MMC, Paulo Ferraz.
O destravamento foi a versão dada pelo empresário Sérgio Gomes da Silva para a abertura das portas — o que permitiu o sequestro — escreveu o jornal.
Recentemente, publicamos entrevista com o delegado-titular do DHPP, Armando de Oliveira, e tivemos acesso a depoimentos dos sequestradores. Um dos quais, Ivan Monstro Rodrigues, disse que foi o próprio prefeito que, após o tiroteio, puxou a trava e saiu do veículo de braços levantados, aos pedidos de “calma, calma”.
Uma matéria publicada pela Folha na edição de 24 de janeiro de 2002 (”Cúpula petista critica forma como polícia conduz as investigações”) ajuda a explicar os inquietos diálogos entre membros da administração petista de Santo André mais tarde transformados em gravações suspeitas de que se pretendia esconder informações tanto relacionadas ao suposto crime de mando como às supostas propinas na Prefeitura. Alguns trechos da matéria:
A cúpula do PT está contrariada com a condução da investigação do assassinato de Celso Daniel. Avalia que, sem provas, a polícia está apontando o empresário Sérgio Gomes da Silva como suspeito da morte de Daniel, de quem era amigo. A Folha apurou que o PT fez uma checagem entre familiares e amigos de Daniel para averiguar se havia alguma desavença entre Silva e o prefeito. (…) Os petistas foram informados de que não havia nenhum problema entre Daniel e Silva. A cúpula petista acredita que a polícia paulista esteja completamente perdida no caso e que, para tentar mostrar serviço, estaria tentando passar para a mídia a hipótese de que Silva poderia ter negócios ilegais com a administração do partido. Para um dirigente do PT, a polícia estaria apontando falhas ou contradições insignificantes no depoimento de Silva a respeito do sequestro de Daniel (…). Anteontem, durante audiência com o presidente Fernando Henrique Cardoso, o líder petista Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do PT, José Dirceu, reclamaram da forma como o governador Geraldo Alckmin e a polícia paulista conduziram a apuração do caso (…) Na visão do PT, apontar Silva como suspeito é uma forma de tentar envolver o partido negativamente no episódio, levando suspeita sobre a honestidade de Celso Daniel” — escreveu a Folha.
Mesmo sem alarde inicial, estava confirmada a grande batalha pelo domínio da informação do caso Celso Daniel, amplamente favorável aos tucanos na guerra que se estabeleceu com a transposição de um caso de sequestro ocasional — como acabou por concluir a Polícia Civil e a Polícia Federal tão inicialmente atacadas pelos petistas — para um caso político-administrativo, como defendem os promotores públicos de Santo André.
O que petistas jamais poderiam imaginar é que as informações repassadas cuidadosamente a alguns veículos de Imprensa atribuindo a Sérgio Gomes sérias possibilidades de ter preparado o sequestro partiram de membros do Ministério Público.
Para que fosse possível dar credibilidade à teoria de que Celso Daniel não foi mais uma vítima da onda de sequestros na Grande São Paulo, entrou em ação o primeiro-irmão João Francisco Daniel. Afinal, quem poderia instaurar de vez a marca de questionamento insofismável senão alguém com o sobrenome do prefeito canonizado pela população?
Pouco interessava que as relações entre os irmãos fossem formais, senão distantes, como o próprio João Francisco afirmou em depoimento à Polícia Civil 15 dias depois do crime.
João Francisco Daniel aparece em cena para colocar lenha na fogueira de enviesamento do assassinato de Celso Daniel exatamente no dia 28 de janeiro, terça-feira. No dia seguinte, a Folha abriu uma página interna com o título “Irmão de Daniel descarta crime comum”. Alguns dos trechos mais importantes de uma entrevista concedida no dia seguinte às declarações de Ivone Santana, mulher de Celso Daniel, que apontava as circunstâncias da morte como crime comum:
”Eu não acredito em crime urbano em hipótese alguma”, afirmou, ontem, o médico oftalmologista João Francisco Daniel, irmão do prefeito assassinado de Santo André, Celso Daniel. “A família, nesse caso, não tem a menor idéia do que tenha ocorrido com ele”. (…) João Francisco concedeu entrevista ontem na Câmara Municipal de Santo André, para falar sobre remessas que fez ao exterior, que chegaram a ser investigadas pela Polícia Federal por causa de denúncias feitas por adversários de Celso Daniel na última campanha eleitoral. (…) Para o médico, as notícias sobre supostos favorecimentos de Celso Daniel a Sérgio Gomes são “tentativas de desviar a atenção das pessoas da tragédia”. Os irmãos tinham divergências políticas. “Eu era totalmente contrário às idéias do PT, mas, apesar disso, tínhamos uma relação fraternal”, disse, segundo a Folha de S. Paulo.
Não demorou para um novo lance protagonizado por João Francisco Daniel. Em 20 de junho ele passou o dia em entrevistas que os jornais do dia seguinte estamparam em manchetes de alto de página. Da Folha: “Celso Daniel se rebelou e foi morto, diz irmão”. Do Diário do Grande ABC: “Foi queima de arquivo”, diz João. Alguns trechos da entrevista à Folha:
O oftalmologista João Francisco Daniel acredita que seu irmão, Celso Daniel, foi assassinado porque teria “se rebelado” contra o suposto esquema de propinas cobradas por colaboradores seus na Prefeitura de Santo André “para financiar campanhas do PT”. “Ele chegou a falar para Miriam (Belchior, ex-mulher do prefeito) que iria tomar providências quanto a isso em setembro, mas não deu tempo” — disse. (…) Fui procurado pela promotoria e agora estou dando entrevistas. Quem me procurou foi a dra. Márcia (Monassi Bonfim) e depois dr. Amaro (Thomé Filho). (…) Falamos mais nas investigações da morte dele. (…) Não, não acho (que o crime é comum). O processo de investigação não foi bem conduzido, ele foi assassinado porque se rebelou contra o esquema” — disse João Francisco, em contraposição às declarações na entrevista coletiva de janeiro, quando refutou favorecimento de Celso Daniel a Sérgio Gomes da Silva.
Ao Diário do Grande ABC, perguntado sobre a possibilidade de Celso Daniel saber das supostas propinas, ele respondeu: “A Miriam (Belchior) conversou com ele e eu acho que ele quis começar a fazer algumas alterações. Eu acho. Tenho essa impressão, não tenho provas” — afirmou.
Duas semanas depois das declarações de João Francisco à Imprensa, o Ministério Público Estadual, em 5 de agosto de 2002, determinou a reabertura das investigações encerradas no início de abril pela Polícia Civil e pela Polícia Federal. A medida foi tomada exatamente com base no depoimento de João Francisco, que sustentou a existência de esquema de extorsão na Prefeitura de Santo André e de que a morte de Celso Daniel foi queima de arquivo.
Um trecho da matéria publicada em 6 de agosto pelo Estadão: “A decisão de reabrir o caso foi tomada pelo promotor de Itapecerica da Serra um mês após o depoimento prestado por João Francisco. O Estadão apurou que a retomada do caso foi incentivada pelo procurador-geral de Justiça, Luiz Antônio Guimarães Marrey, nomeado pelo governo estadual” — afirmou o jornal. Marrey, mais tarde, com a vitória de José Serra à Prefeitura de São Paulo, virou secretário municipal. Mesmo caso de Mara Gabrilli, membro da família Gabrilli, denunciadora do suposto esquema de propina em Santo André envolvendo concessionárias de transporte coletivo. José Serra foi derrotado por Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2002, mas ganhou a disputa pela Prefeitura de São Paulo em 2004.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP